Pintar e desenhar, o descortinamento
Na frase em que Cézanne diz que à medida que pintamos,
desenhamos, e que quanto mais a cor se harmoniza, mais a forma
se precisa, há uma contradição: pintar não é desenhar, e desenhar
não é pintar. No entanto, esta contradição pode ser anulada e unificada,
sem ferir o axioma da não contradição, também pela lógica
do terceiro incluído, o que dá um novo sentido à dicotomia desenhar/
pintar presente na história da arte a partir da Renascença.
Os venezianos se opunham aos florentinos, Leonardo a Boticelli,
Poussin a Caravaggio, Delacroix a Ingres, numa dicotomia que
se resumia em uns defendendo na arte o primado do desenho, e
outros, o primado das cores.
Penso que Cézanne rompeu com essa dicotomia a partir do
momento em que intuiu que não podemos pensar em desenho e
pintura em termos absolutos. Quis chegar à perspectiva unicamente
pela cor, mas sem abolir a solidez das figuras. Para isto, que pretendo
ao menos apontar nestas anotações, procuro mostrar como
o mestre criou uma lógica para o colorido, lógica esta temporal.
Em Cézanne, o desenho se aproxima da percepção da solidez das
figuras, da consideração da não existência da linha na natureza
que se “descortina diante de nossos olhos”. Essa expressão fica em
conformidade com a frase do mestre que diz que “devemos ver
a natureza como ninguém a viu antes.” Hoje, creio, devemos ver
Cézanne como ninguém o viu antes.
Para revê-lo dessa forma voltamos ao conceito de descortinar,
que tem um duplo movimento. Um, de dentro para fora,
como dizem Klee (tornar visível) e o próprio Cézanne (quando se
refere a um cinza que não existe, nos levando ver o que antes era
invisível). Outro, de fora para dentro, que permite a entrada da
luz. Leva-nos também à percepção do espaço mediato e imediato.
Mais adiante comentaremos o quadro A Cabana do Jordão como
desenvolvimento desta anotação.
O azul
Leonardo fala que o azul é a cor intermediária entre a luz
e a sombra, estas consideradas por ele como cores. O cinza pode
ser esse azulado ao qual Leonardo refere-se como uma passagem
entre luzes e sombras. Vou ter que me estender além desta anotação
para deixar clara a questão do azul, notada por Rilke e Gauguin.
O primeiro diz que uma monografia do azul deveria ser escrita e
que o cinza não existia nos quadros de Cézanne, mas que ele se
manifestava como uma atmosfera. O segundo pergunta se uma
sombra deve ser pintada de um azul o mais azul possível ou talvez
azulada. Curioso é lembrarmos das palavras de Gagárin: “A terra
é azul.” Vemos aí a possibilidade de vários horizontes e até mesmo
de sua anulação no espaço em uma obra de arte.
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