Da força de Cézanne diante da natureza,
do cinza sempiterno e dos contrastes
Vejamos uma frase de Cézanne: “A luz não existe para o pintor,
tem que ser substituída por uma outra coisa, a cor. Fiquei contente
comigo mesmo quando descobri isto.” Penso que ele despreza
o modo como os impressionistas e pós pensavam a cor, isto é, a
partir do espectro.
Monet, com a série da catedral de Rouen, é um exemplo. Ele
procurou pintá-la cada vez de acordo com a qualidade da luz em
determinado momento obedecendo à ordem das cores do espectro.
Seurat, pelos contrastes simultâneos, procurava representar a luz.
Quando Cézanne diz que a luz não existe para o pintor, que tem que
ser substituída por outra coisa, a cor, nos faz pensar, logicamente,
que ele tinha uma outra ideia da cor e do colorido. Não se interessou
pelo colorido impressionista, é claro. Qual era então o colorido que
ele tanto procurou, sobre o qual afirmava que não tinha nada de
absurdo e era perfeitamente lógico? Certamente não um a partir
de um círculo cromático absoluto que classifica as cores em primárias,
secundárias, etc. A lógica estática deste círculo, face à obra
de Cézanne, é absurda. Para ele, na natureza, tudo está colorido.
Em 1866, em carta a Pissarro, Cézanne escreveu: “Você tem perfeitamente
razão em falar do cinza, somente ele reina na natureza
e alcançá-lo é de uma dificuldade espantosa.” O mestre percebeu
que já não se tratava mais de um cinza resultante de misturas pigmentares,
pois este é facílimo de se obter. Considero esse cinza ao
qual Cézanne se referia como causa e efeito dos coloridos. Se utilizarmos
um pensamento próximo à geometria dos fractais - não
para que este pensamento em pintura seja uma simples ilustração
de descobertas científicas - veremos que no trajeto gradativo de
uma cor em direção a sua oposta, pelas sucessivas aproximações ou
fracionamentos, chega-se a um cinza sempiterno que é um ponto.
Este não tem nenhuma dimensão.
O trajeto de uma cor em direção a sua oposta se faz pelos
sucessivos rompimentos. Vejamos o trajeto entre um vermelho e
seu oposto, um determinado verde, por exemplo. O vermelho vai
gradativamente se esverdeando. Da outra ponta, é o verde que vai
gradativamente se avermelhando. No exato centro desses rompimentos
dos vermelhos e dos verdes temos um ponto - o cinza
sempiterno - que ao lado do vermelho é esverdeado e ao lado do
verde é avermelhado. Jamais poderemos dizer quando ele, o cinza
sempiterno, é ele mesmo. Observamos, também, a manifestação
do cinza sempiterno em cada fracionamento.
Pelos movimentos reversos, partindo do cinza sempiterno,
volta-se aos trajetos e às cores iniciais.
Se tomarmos um colorido, ele também encontra um ponto,
um cinza. Nesse colorido todas as cores se rompem, inclusive o
branco e o preto. Como nos é limitada a percepção de todos os
coloridos, mas somente daqueles que se nos mostram como uma
fração, podemos dizer que os cinzas sempiternos são causa e efeito
dos coloridos que nos são possíveis.
Escrevi em meu livro A Cor e o Cinza que “deste ponto nenhuma
notícia teremos, salvo a intuição de que ele é o local de
eliminação de tensões e de passagem entre cores opostas, considerando
estas concretas adjetivas, cuja condição é ser em um colorido.”
Não podemos nem mesmo dizer que são relativas, mas apenas que
buscam uma convivência simultaneamente com outras.
Há também as cores abstratas substantivas, idealizadas, platônicas,
que subsistem por si só, as quais não se podem descartar. São
quase infinitos os coloridos, daí serem também quase infinitos os
cinzas. Deles e para eles os coloridos, simultaneamente, convergem
e divergem. Esse cinza é assim em si dinâmico, potencialmente ativo
e sempre presente. Daí considerá-lo sempiterno.
Para compreendermos o cromatismo cezanneano é fundamental
entendermos a lógica do cinza sempiterno, pois este ocupa
todo o espaço cromático, que não é ilimitado e, também, percebermos
a dinâmica dos contrastes cromáticos. Tomemos uma fração do
trajeto anteriormente descrito. Teremos dele também seu oposto.
No centro sempre outro ponto sem nenhuma dimensão, outro cinza
sempiterno. Podemos fazer o mesmo com todas as outras cores. Por
isso Cézanne disse que “somente ele reina na natureza.”
Teóricos da cor do século XIX, que muito influenciaram os
pintores, estudaram os contrastes simultâneos observando inúmeras
espécies deles separadamente, e sem considerar o rompimento.
Já Cézanne, em seus estudos dos contrastes e rompimentos,
observava a natureza diretamente e esta devia ser vista sempre
como uma primeira vez. É um esforço hercúleo; para nós, ainda
inimaginável. Isso nos mostra uma enorme diferença em relação
aos seus pares. Não se sabe se ele leu o famoso livro de Chevreul,
Da Lei dos Contrastes Simultâneos. Certamente dele poderia ter
se informado quando esteve em Paris. Mas, ao retornar a Aix-en-
Provence, afirmou que queria fazer do impressionismo uma coisa
tão sólida como os quadros de museus, e por isso podemos deduzir
que esse livro não o interessou. Dizia que era preciso ser forte. A
Cézanne, por sua força moral, por sua obstinação, devemos este
inestimável ensinamento.
O rompimento do tom
Cézanne referia-se também a 1/2 tom, 1/4 de tom, etc. Vemos
em seus quadros que utilizava muito os rompimentos dos tons.
Nas teorias cromáticas tradicionais a partir do século XVIII, o
rompimento resultava das misturas pigmentares. Defino-o como
um tom que se transforma pela sobreposição nele de sua respectiva
oposta, a pós-imagem, pela convivência deste tom com outros, pela
qualidade das luzes e sombras, pelo tempo que escolhemos para
observá-lo, etc.
É fácil percebermos o rompimento do tom. Basta olharmos
uma cor circunscrita em um quadrado durante alguns segundos e
diminuirmos a distância de observação à metade. Veremos, sobrenadando
na cor, uma outra tonalidade acinzentada. E assim o tom
se rompe. Se o observarmos em diversos tempos, veremos várias
qualidades de rompimentos. Quanto maior o tempo de observação,
mais o tom se rompe. A qualidade da luz também interfere na
percepção das diversas possibilidades de rompimentos. Pode-se
afirmar, por essas experiências, que a cor e o colorido têm uma
dimensão temporal. Vale dizer, estão sempre se movendo face à
presença de uma testemunha.
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