[ESPAÇO DO CONTO]
Meu ser vive na Noite e no Desejo.
Minha alma é uma lembrança que há em mim.
Fernando Pessoa
POR PERDAS E DANOS
(Jane Tutikian)
É que, de repente, no meio da casa, no meio da noite, no meio da vida,
me assola uma saudade enorme, dessas em que a gente nem sabe que rumo
tomar e se deixa ir por um frio qualquer, de uma fresta qualquer,
coração e vísceras expostos, desabrigada. Tantos foram os porquês?, que
percebo ter perdido o meu agora. E agora?
Luto para que o silêncio não me possua, mas o movimento único é o de me saber viva.
Não quero que me peças, nunca para te compreender, nem que me olhes
assim:................................................................................................................................................................................................................................................................................................–,
pedido que te ouça e aceite, simplesmente. É que, simplesmente, eu
teria de definir o indefinível, caminhar o estático, sorrir com a tua
boca grande de dentes pequenos e olhos rasgados, sorrir a minha própria
perda.
Ora, eu sei que o amor é uma teimosia invencível do
coração. É desnudar para a vida e levantar todas as cortinas e abrir
todas as portas e respirar todas as luzes no gozo pleno do exercício
estando e. Mas, é, também, eu sei, sair ferido pela palavra mais
inocente e mutilado do gesto mais brusco. E agora?
Agora, o que
será isso, afinal, o que será esse É QUE a que me submeto violentada e
passiva e que te dá a mim uma forma tão mais próxima e completa
justamente quando mais me perco para o nunca mais? Talvez te pareça
engraçado, mas às vezes penso que é meu destino o de carregar pela vida a
fora o nunca mais das pessoas que amei. Eu sei, a minha nudez só a mim
pertence, a tua nudez só a ti pertence, é a natureza de ser, não é?
Chorei quando não consegui aguentar, comi como uma louca para conseguir
te suportar, fumei até meu orgasmo estourar em crises e crises de asma
só porque na minha cabeça bate uma coração de mulher.
Odeio
esta lucidez que tanto admiro em ti. Odeio o que ela te destruiu, oque
ela te fez maior quando te sentias menor e te transformava, no gesto
estúpido, num animal fragilizado e débil.
Ao diabo os outros! A
injustiça! A crise! O anticoncepcional! A fome! Ao diabo os corpos que
não se querem donos, as almas que só se querem chão – ao diabo, queria
ter dito – se amo tua sensibilidade, se me banho em catarse no som da
tua voz, que permanece intacta nos meus ouvidos em dias escuros, de
escuridões quase intransponíveis, e em noites claras do mais puro prazer
de sentir... Ao diabo o diabo porque te odiei com todo o carinho de que
fui capaz e te amei raivando, filha irrecuperável.
Ora,
amadureci, eu sei, me cresci um tanto em tantas das tuas palavras
porque, despreparada e surpresa, me chamaram a pensar e a pensar e a
pensar e. Só que as pessoas maduras envolvem até o suportável e eu quero
também o insuportável porque a perfeição tem de ser o inteiro... Só
que, alucinada de tanto realismo, abri minha porta para quando tu
quisesses, se quisesses chegar.
Tu viste. Viste, sim. Mas
vistes com deboches, numa conversa que me soava tão estranha de “eu sou
mais eu”, “percebe minha senhora?”, “finja que sou malandro”, uma
alegria de cena: eu sei: quando eu estiver bem no alto, no perigo,
recolhe a rede: ela é a grande mentira... Mas também viestes com manhas e
lamúrias. Com choros fáceis e difíceis que só a ti diziam respeito.
Mas, sobretudo, viestes com verdades, assim, na cara, sem eufemismos,
olho no olho, letra na letra, doando-se, o irrefutável. E quem te pediu
verdades?
De verdades, estou farta. Sofro-as diariamente nos
jornais, nas pessoas, nos bichos, nas plantas, nos pedaços de carne que
me coube. Ai! Que sarcástica a alegria da consciência! Que dolorida a
emoção da consciência!
Tudo o que eu queria agora, no meio da
vida, era a presença, aquela que a Nana canta, tu lembras? “é o fim da
procura, infinita loucura de sempre acreditar que estas em mim”, a Doce
Presença desafiante e fiel num corpo rico de seus próprios ritmos: tua
força vital, e tu ficas aí, agora:
inerte
sem fazer absolutamente nada
as mão cruzadas sobre o peito
repetindo interminavelmente a mesma cena a mesma cena a mesma cena a
mesma cena a que, interminavelmente, eu vou ter de assistir a mesma c
Não perdoo teu tempo!
Inútil colocar um tempo dentro de outro! Cada um pertence a si próprio.
Não percebeste que não se pode jogar, para o passado, o presente e,
para o futuro, o passado, achando que ele vai resolver e mostrar quê?
Não percebeste que ele não resolve nada? Cada um pertence a si próprio.
Não percebeste que não se pode jogar, para o passado, o presente e,
para o futuro, o passado, achando que ele vai resolver e mostrar quê?
Não percebeste que ele não resolve nada? Que lembrar é tornar sonho o
que foi verdade e o que hoje é QUE É e que o tempo é a vida que a gente
cria do modo que pode e que teu tempo és tu e que o meu tempo sou eu e
que o depois também será, mas jamais será, o passado?
Se
descobrimos, o que nos coloca entre os poucos, o sentir, se descobrimos a
vida de sensações e emoções, por que não sentiste que fora disso que tu
és permitem te fazer e que eu sou permitem me fazer , tudo é morte em
nós? Poxa! Em cacos não há sobrevida, disso eu sei que não tenho feito
outra coisa a não ser juntar os meus, mas na fuga também não! É que tudo
vale porque existe o nada...
Ai que, só, no meio da vida, as escolhas estão cada vez mais escassas, percorro-as com o risco de mim.
Ai que são opções fechadas. Tu
Ai que ai!
Começo a. Sim.
Sim eu te compreendo. – Mas que inútil compreensão, essa que me mostra a fundura do meu abismo, a desvalia.
Ai que preciso agarrar urgente e com força às cordas que me teci e
abrir, ainda uma vez, minha porta à noite e negar, aceitando, ainda uma
vez, tua morte, minha morte, todas as mortes e, quem sabe?, entre
perdas e danos, ressurgir da vida. A porta.
* * *
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