sexta-feira, 1 de janeiro de 2021




 Serpenteamento vinciano

Texto de Merleau-Ponty, O olho e o espírito.
"O esforço da pintura moderna tem consistido menos em escolher entre a linha e a cor, ou mesmo entre a figuração das coisas e a criação de sinais, do que em multiplicar os sistemas de equivalências, em quebrar a sua aderência ao envoltório das coisas. Isso pode exigir que se criem novos materiais ou novos meios de expressão, mas se consegue às vezes mediante reexame e reinvestimento daqueles que já existiam. Houve, por exemplo, uma concepção prosaica da linha como atributo positivo e propriedade do objeto em si. É o contorno da maçã ou o limite do campo lavrado e da campina tidos como presentes no mundo, pontilhados sobre os quais bastaria passar o lápis ou o pincel. Esse tipo de linha é contestado por toda a pintura moderna, provavelmente por toda pintura, visto como Da Vinci, no Tratado da Pintura, falava de "descobrir em cada objeto ( ...) a maneira particular como se dirige, através de toda a sua extensão ( ...) uma certa linha flexuosa que é como que o seu eixo gerador".
Ravaisson e Bergson sentiram aí algo de importante, sem ousarem decifrar o oráculo até o fim. Bergson quase não busca o "serpenteamento individual" senão nos seres vivos, e é assaz timidamente que afirma que a linha ondulada "pode não ser nenhuma das linhas visíveis da figura", que "ela não está mais aqui do que ali" e, no entanto, "dá a chave de tudo"
Transcrevo a frase de Leonardo da Vinci sobre o serpenteamento que se lê no Tratado da Pintura. "Devemos observar com muito cuidado os limites de qualquer corpo e o modo como serpenteiam para julgar se suas voltas participam de curvaturas circulares ou concavidades angulares."
As linhas vincianas decorrem de um visão binocular, têm uma potência que anima o espaço plástico. As linhas euclidianas têm um valor absolutos e são monoculares.,
Seguem as imagens sobre as curvaturas circulares, as concavidades angulares e o quadro de Cézanne, A Cabana do Jordão. Observemos a chaminé, ela tanto pode ser percebida inteira e também com o céu atrás dela, ou seja, por uma visão binocular (as concavidades angulares).
Sobre a curvaturas circulares. Marque em um cilindro um ponto. Fecho o olho direito e com o esquerdo faça esse ponto (a) coincidir com o limite do cilindro. Sem mudar a posição, feche o olho esquerdo. Observar como o ponto a se distancia do limite do cilindro e marque um ponto (b). Em uma visão binocular o limite do cilindo é uma distância entre os pontos a e b.
Concavidades angulares. Considere um ponto (a) além e coloque um anteparo entre o olho e esse ponto. Quando se fecha o olho esquerdo, por exemplo, o ponto (a) q não era percebido por conta do anteparo, passa a ser percebido pelo olho direito. Pode´se imaginar um triângulo, o ponto a invisível, o olho esquerdo, o olho direito. Uma visão binocular pode-se observar o que está encoberto pelo anteparo.
As curvaturas circulares e concavidades angulares agem simultaneamente.
Em uma visão monocular os contornos são absolutos e imóveis.
Podemos concluir, entre outras coisas, que há as linhas euclidianas, absolutas e estáticas e as linhas vincianas, não absolutas e dinâmicas que animam o espaço plástico.
José maria Dias da Cruz - janeiro de 2021