sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Vittorio Gobbis

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Biografia

Vittorio Gobbis (Motta di Livrenza, Itália 1894 - São Paulo SP 1968). Pintor, desenhista, gravador e restaurador. Filho e neto de pintor e decorador, frequenta academias em Veneza e Roma, contrariando a opinião do pai, que deseja que ele siga carreira no comércio. Gobbis trabalha como pintor e restaurador em Veneza até 1923, quando resolve abandonar a profissão e partir para o Brasil. Segundo depoimentos de seus contemporâneos,1 vem guiado pelo espírito aventureiro e decidido a não mais pintar. Mas rapidamente retoma os pincéis. Segundo Sérgio Milliet, sua melhor fase vai de 1928 a 1932. Em 1931 participa do Salão Revolucionário, realizado por Lucio Costa na Escola Nacional de Belas Artes - Enba, e a qualidade técnica de sua obra chama a atenção de Mário de Andrade. No decorrer da década Gobbis participa ativamente da cena artística paulistana, torna-se sócio-fundador da Sociedade Pró-Arte Moderna - Spam e do Clube dos Artistas Modernos - CAM, criados em 1932. Realiza sua primeira mostra individual, na rua Barão de Itapetininga, em São Paulo, em 1933. Nesse mesmo ano é agraciado com a medalha de ouro do Salão Nacional de Belas Artes - SNBA. Em 1935 participa, ao lado de Candido Portinari, da International Exhibition of Painting [Exposição Internacional de Pintura], no Carnegie Institute, em Pittsburgh, Estados Unidos. Destaca-se também sua participação como idealizador e membro da Família Artística Paulista - FAP, grupo formado em 1937 e dirigido por Rossi Osir; seu envolvimento na criação do Salão de Maio; e a proximidade com os artistas do Grupo Santa Helena, 1934, em sua maioria artesãos que trabalham em um ateliê comum no Palacete Santa Helena, localizado na praça da Sé, em São Paulo. Organiza o 1º Salão de Arte da Feira Nacional de Indústrias, em 1941. Nas décadas de 1930 e 1940, o próprio ateliê de Gobbis funciona como um núcleo disseminador de arte. Expõe na 1ª e 2ª Bienal Internacional de São Paulo. Em 1965, em função de sua experiência no campo do restauro, é incumbido de transportar e restaurar o afresco da Santa Ceia, de Antonio Gomide, que acaba de ser doado ao Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo - MAC/USP, num trabalho que, segundo Aracy Amaral,2 tem resultados polêmicos.
Comentário crítico
O virtuosismo técnico, a tradição classicizante que ele traz de seu país natal e o engajamento no processo de modernização da arte brasileira - que desemboca na formação da Família Artística Paulista - FAP, em 1937 - fazem de Vittorio Gobbis figura de destaque na produção artística nacional do período entre guerras (1918-1939). Ao lado de alguns poucos artistas de formação italiana, como Hugo Adami e Rossi Osir, o que enfatiza ainda mais a aproximação entre o modernismo bem-comportado de segunda geração no Brasil e as experiências do Novecento Italiano -, Gobbis materializa em suas obras alguns dos principais aspectos do "retorno à ordem", o fenômeno artístico que marca fortemente a produção entre as décadas de 1920 e 1940.

Sua formação em academias de arte de Roma e Veneza bem como a importância da tradição familiar (avô e pai já trabalhavam com pintura e restauro e é o pai que lhe ensina os primeiros procedimentos do metiê), refletem-se no apurado acabamento de suas telas. O tratamento das cores, a escolha dos temas e a estrutura sintética acompanham essa combinação entre virtuosismo técnico e apreço ao naturalismo e à sensualidade plástica.

Mário de Andrade, que descobre Gobbis no 38º Salão da Escola Nacional de Belas Artes - Enba, ou Salão Revolucionário, de 1931, destaca sua "lógica de construção" e fala em "sensualidade realmente esplêndida" ao referir-se a um dos retratos de sua autoria expostos no salão. Em outra ocasião, Andrade aponta a vinda de Gobbis e de Osir ao Brasil como fator importante de renovação, afirmando que o fato de eles serem "homens capazes de conversar sobre as diferenças de pincelada de um Rafael e de um Ticiano e sabendo o que é ligar uma cor à sua vizinha, veio mansamente destruir o nosso analfabetismo pictórico".

Sua escolha de temas é ampla, da natureza-morta (com destaque para elegantes vasos de flores) à paisagem, e as cores são quentes e harmônicas, como se pode ver em uma de suas mais célebres telas, Nu Recostado, de 1931, pertencente ao acervo do Museu de Arte Moderna de São Paulo - MAM/SP. Para o crítico Tadeu Chiarelli, essa tela mostra como Gobbis é "um artista sensível à luz, sabendo porém conter a cor nos limites plásticos do desenho que contorna sensualmente a figura".3 Chiarelli também enfatiza a estrutura sintética de suas obras, sem enveredar nunca por experimentalismos, permanecendo sempre fiel aos preceitos do realismo e ao tratamento virtuoso da matéria pictórica.

Curiosamente, Gobbis mantém, simultaneamente, dois tipos de produção pictórica. Ao mesmo tempo que não faz concessões nas telas que assina com seu verdadeiro nome, tem por hábito produzir uma outra espécie de pintura mais vendável, "à vontade do freguês", como diz Sérgio Milliet.4 Um de seus pseudônimos para esses quadrinhos, que, segundo depoimento de Quirino da Silva são produzidos em série, é Professor Bizoni. Informa o autor: "Os quadrinhos pintados eram marinhas, paisagens, todos sobre tabuazinhas de cedro. Distribuía o pintor essas tábuas sobre uma grande prancheta, e depois com um pote de tinta azul, Gobbis pintava o céu de todas elas. Isto feito, com um outro pote de tinta verde pintava o mar..."5

Essa pintura de sobrevivência, que atende aqueles que, segundo ele, não gostam e não entendem de arte, nada tem a ver com o esforço de consolidar cada vez mais um campo autônomo para a produção artística.

Quirino da Silva conta que Gobbis alugava quartos a artistas como Hélios Seelinger e Wasth Rodrigues, transformando sua casa, na praça da República, num "reduto da boemia artística de São Paulo". Ele também se engaja em todos os principais eventos do período, tornando-se sócio-fundador da Sociedade Pró-Arte Moderna - Spam e do Clube dos Artistas Modernos - CAM, criados em 1932, e articulador ativo de movimentos como o Salão de Maio e a Família Artística Paulista.


Notas
1 Ver por exemplo as seguintes reportagens: SILVA, Quirino. Vittorio Gobbis. Diário da Noite, São Paulo, Notas de Arte, 13 e 14 jan. 1959; MARANCA, Paolo. Vittorio Gobbis. Notícias de Hoje, 1º mar. 1959; MILLIET, Sergio. Vittorio Gobbis. O Estado de S. Paulo, São Paulo, Suplemento Literário, 3 mar. 1962.
2 AMARAL, Aracy. Textos do Trópico de Capricórnio: artigos e ensaios (1980-2005) - Vol. 1: Modernismo, arte moderna e o compromisso com o lugar. São Paulo: Editora 34, 2006.
3 CHIARELLI, Tadeu. Arte internacional brasileira. São Paulo, Lemos Editorial, 2002, p. 75.
4 MILLIET, Sérgio. Vittorio Gobbis. O Estado de S. Paulo, São Paulo, Suplemento Literário, 3 mar. 1962.
5 SILVA, Quirino da. Vitorio Gobbis. Diário da Noite, São Paulo, Notas de Arte, 13 e 14 jan. 1959.

Fonte Itaú Cultural  








segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Etre vista com HJo´se Maria Dias da Cruz

terça-feira, 10 de maio de 2011

Conversando sobre Arte Entrevistado José Maria Dias da Cruz



Conheci o artista e professor José Maria Dias da Cruz como seu aluno na Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Impressionou-me seu conhecimento sobre arte e, especialmente cores, assunto estudado por ele durante anos. Ao mesmo tempo, era professor interessado em transferir para o aluno todo seu saber. Sua educação esmerada, sua permanente disponibilidade e sua sólida cultura causaram em todos nós uma impressão muito significativa. Saí de lá com a sensação que cada aluno acabava um amigo e admiridor do grande mestre. Fico feliz em oferecer aos leitores do blog seu depoimento. O vídeo é de sua exposição no Paço Imperial.


Como a arte entrou em sua vida?
Perde-se no passado a entrada da pintura em minha vida. Talvez possa dar uma explicação psicanalítica. Sou filho de um grande escritor, Marques Rebelo (Nomes como Graciliano Ramos, Antônio Houaiss, João Cabral de Melo Neto, Millôr Fernandes e outros o consideravam melhor que Machado de Assis. Infelizmente um advogado psicopata e muito poderoso se apropriou do inventário de meu pai, do formal de partilha e outros bens da família impedindo-a, assim, de reeditá-lo, e hoje está um pouco esquecido). O fato é que, inconscientemente, não quis enfrentá-lo e escolhi a pintura como escape, esta que para meu pai, depois da literatura, era a arte que mais o fascinava, muito embora fosse incapaz de desenhar ou pintar qualquer coisa. Na condição de filho de escritor e apaixonado por pintura a arte, fui tomado por estas paixões, mas diferente dele escolhi as artes plásticas.



Qual foi sua formação artística?
Como disse acima, meu pai como escritor tinha uma boa biblioteca, e muitos livros de arte. Encantava-me com estes. Com 11 anos já pintava meus primeiros quadros a óleo. Como recebíamos muitas visitas de artistas (Pancetti, Milton Dacosta Di Cavalcanti, Tarsila, quando esta vinha ao Rio, e alguns outros) sempre mostrava meus quadros e, assim, acabava sendo muito bem orientado.
Quando completei meus12 anos comecei a estudar sistematicamente com Santa Rosa, Aldary Toledo, Flávio de Aquino e Jean Zach. Quando terminei o segundo grau meu pai conseguiu uma bolsa de estudos do Itamaraty e do Governo Francês e fui estudar em Paris durante dois anos sob a orientação de Emílio Pettoruti. Lá frequentei também Académie de la Grande Chaumière.
Lembro-me como fiquei deslumbrado com a minha primeira visita ao Louvre. Foi uma emoção indescritível. Uma reprodução, por melhor que seja, jamais irá substituir um quadro ao vivo.

Que artistas influenciam seu pensamento?
Muitos, mas principalmente Poussin, Chardin, Delacroix, Braque e mais que todos, Cézanne.
Além de estudar os quadros desses mestres ao vivo, sempre gostei de ler o que os artistas escreviam. O Tratado da Pintura do Leonardo, por exemplo, até hoje o estudo. O mesmo com os pensamentos de Braque. Assim como Cézanne, acredito que Braque deve ser mais estudado.

Como você descreve sua obra?
Já tenho mais de 60 anos de carreira. Quando voltei de Paris estava muito dividido entre ser figurativo ou abstrato. Eram tantas as dúvidas que parei de pintar em 1962. Em 1967 voltei a pintar e surgiu o primeiro formulário, e com ele defini meu projeto plástico. A cor já estava presente nos meus objetivos. Infelizmente não consegui espaço para expô-los, o que me fez abandonar a pintura por uma segunda vez. Em 1973 retornei à pintura. Dos formulários passei para as naturezas mortas, mas na medida em que meus estudos da cores se aprofundaram, o abstracionismo se afirmava, muito embora hoje já não vejo essa classificação (abstrato x figurativo) como pertinente.



Como exemplo de como se formou meu projeto plástico, segue um dos primeiros formulários.




Nessa ocasião trabalhava em uma empresa subsidiária da Rede Ferroviária Federal, AGEF- Armazéns Gerais Ferroviários. Trabalhava como programador visual e era incumbido, além de outras tarefas, de projetar os formulários da empresa. Criei umas normas para tal, mas na verdade estava criando as bases de meu projeto plástico.


Atualmente me interessa uma geometria das cores como o quadro acima talvez possa ilustrar. Esse Azul

Você foi professor da EAV do Parque Lage por um longo período, como foi a experiência?
Fui professor do Parque Lage e também do MAM-Rio durante 30 anos. Creio que aprendi mais do que ensinei, tal riqueza e profundidade das trocas de ideias. E tanto numa como noutra instituição conversava muito com outros professores. Felizmente sempre tive bons alunos.

Como você vê a pintura no século XXI?
Vejo a pintura como uma manifestação, não obstante tantos meios técnicos à disposição dos artistas atualmente, com muitas questões que podem ser exploradas por ela somente. No meu caso, por exemplo, vejo a cor, que sempre foi recalcada em nossa cultura, desde os filósofos gregos, passando por Kant, que consideravam-na supérflua, como uma campo enorme para ser explorado. E tem muitas outras questões bem específicas da pintura. Infelizmente vemos muita pouca pintura nas Bienais ou exposições oficiais. Pintores coloristas, então, quase nada. Não foi à toa que Sêneca afirmou que em cada 10 pintores um apenas é colorista. Há ainda o fato ocorrido nas décadas de 60 e 70. Artistas importantes, como o Hélio Oiticica, por exemplo, embora tivesse dito que havia uma questão importante para ser resolvida na pintura, a cor, disse também que a era do quadro de cavalete estava definitivamente inaugurada.


Que sugestões você daria a um jovem artista para conduzir sua carreira?
Repetiria o que me disseram meus orientadores. Do arquiteto Aladary Toledo: “Aprende-se mais pintura lendo-se poesia.” Do Pancetti: “O importante é a obra circular. Se não conseguimos vendê-la, é melhor doá-las” (É curioso acrescentar-se que a coleção do Gilberto Chateuabrinad foi iniciada com um quadro presenteado por Pancetti.) Do Goeldi: “Não existe artista mau caráter.” É bom sempre lembrar que a arte não é somente uma questão estética, mas também ética.

O Cromatismo Cezaneanno foi seu último livro, que mensagem podemos retirar dele?
Escrevi dois livros; A Cor e o Cinza e O Cromatismo Cezanneano, e ambos considero inconclusos.
Estou tentando mostrar que podemos pensar não considerando as coisas com valores absolutos. E mais, como nosso pensamento pode ser simultaneamente sincrético e analítico ou quantitativo e qualitativo. Estudando a obra de Cézanne compreendi porque ele disse que a luz não existe para o pintor, tem que ser substituída por uma outra coisa, a cor. Percebi, então, que um círculo cromático que classifica as cores em primárias e secundárias é limitante. Por ele as cores têm um valor absoluto. Compreendi também o que Cézanne estava pensando quando afirmou que somente um cinza dificílimo de se alcançar reina na natureza. Denominei esse cinza de sempiterno e percebi que ele é, simultaneamente, a causa e efeito dos coloridos. Compreendi, também, uma frase de Leonardo que está no Tratado da Pintura na qual ele diz que devemos observar com muito cuidado os limites de qualquer corpo e o modo como serpenteiam para julgar se suas voltas participam de curvaturas circulares ou concavidades angulares. Isso me fez ver que devemos observar com muito cuidado as questões teóricas levantadas pelos “homens de letras”, como assim se referia Gauguin ao afirmar que esses teóricos acabam criando dogmas que desorientam não somente os artistas, mas o público em geral. Lemos em quase todas as histórias das artes que Leonardo introduziu o esfumato na pintura. Esfumato é um procedimento e não uma questão teórica e no Tratado da Pintura nada sobre essa questão é dito. Leonardo faz uma referência teórica sobre o serpenteamento bem complexa quando escreve sobre os limites dos corpos.
Tento abordar as questões acima, entre outras, no livro sobre o cromatismo cezanneano. Acredito que os leitores possam se interessar em explorar mais profundamente essas questões.

Quais são seus planos para o futuro?
Como disse acima já publiquei dois livros os quais considero ambos inconclusos. Portanto, planejo ir em frente com meus estudos.
Cézanne é um pintor muito complexo. Se ele disse que devemos ver a natureza como ninguém a viu antes, creio que hoje podemos dizer que devemos ver Cézanne como ninguém o viu antes.



O número de novas galerias inauguradas recentemente no Rio e São Paulo é impressionante, você sente o mercado aquecido?
Sem dúvida o mercado, aqui no Brasil, sobretudo, está bastante aquecido, mas devemos considerar esse fato com muitas reservas. Hoje vivemos um momento crítico onde predomina um neoliberalismo selvagem no qual o poder do dinheiro praticamente tudo domina. Nesse sentido concordo com Sérgio Milliet que afirma no livro Marginalidade da Arte Moderna, editado na década de 40 que, em momentos de crises profundas, o artista é um marginal.

José Maria Dias da Cruz
Maio 2011

Etreviusta co Flávia Duzzo e Jociele Lampert




Flávia Duzzo:  Como você relaciona a sua atividade de artista, escritor e teórico da cor?

José Maria: Tenho que falar um pouco da
         minha formação: sou filho do escritor Marques Rebelo, o fundador desse museu, o MASC. Ele tinha uma excelente biblioteca, muitos livros sobre pintura, e de outras disciplinas também, claro. Era um escritor que tinha um enorme prestígio. Hoje ele está esquecido, mas nomes como Graciliano Ramos, Millôr Fernandes, Antônio Houaiss, João Cabral de Mello Neto, há provas, consideravam-no melhor que Machado de Assis. (Vá se entender nosso país)
         Estou falando isso porque para mim era um embate complicado, filho de escritor famoso. Luiz Fernando Veríssimo é um excelente escritor, mas uma vez ele, em uma entrevista, falou que nunca escreveu um romance porque tinha o pai que o constrangia. Estou comentando isso, porque eu acho que, inconscientemente, claro, fui me apegar à pintura, que era arte que meu pai mais gostava depois da literatura, para evitar este enfrentamento. Meu pai era incapaz de dar um traço, era uma negação para as artes visuais. Como disse, tinha uma boa biblioteca. Então comecei a ler desde cedo o Tratado de Pintura e vários livros de pintores: Léger, Delacroix, Redon, Van Gogh, Braque, Klee, André Lhote, Vasari e outros. O que eu quero dizer é o seguinte: comecei com as fontes primárias e isso foi muito importante para minha formação. Sou um pintor, quer dizer: não sou escritor. Então comecei fazer muitas anotações, e a partir delas pude publicar alguns livros. Sobre o primeiro, A cor e o cinza: estava com tantas anotações que me perguntei o que farei com elas? Resolvi revisar tudo, simplificar; e daí surgiu o meu primeiro livro que acima citei, não foi uma vontade de ser escritor, foi uma ideia de arrumar minhas ideias como pintor. Comecei a ficar mais interessado na questão da cor, quando li, ainda muito garoto, um livro muito bom, o Tratado da Pintura e o Tratado de Paisagem do André Lhote.

(Professora Jociele Lampert que estava presente na entrevista, diz que conhece o livro).

Tem uma passagem que diz porque um pintor deve escolher uma escala cromática que começa com o laranja, para o claro, passando pelos avermelhados, violáceos, até o azul, para a sombra, ou então, outra escala, que começa com o laranja passando pelos amarelados, esverdeados, até o azul para a sombra. Assim, teríamos duas possibilidades de coloridos.
Pensei então: quer dizer que o artista não pode buscar outros coloridos? Tem que escolher uma ou outra escala básica? E foi assim que começou o meu interesse pela cor. Comecei a estudar a questão da cor, devagar, e fazendo minhas anotações, quer dizer, fui ver o que um pintor estava pensando, estava escrevendo, isso foi muito bom para mim, consultar as fontes primárias. Pude, então, criar outra teoria da cor. (Descartei o círculo cromático que classifica as cores em primárias e secundárias, redefini o rompimento do tom, pensei no cinza sempiterno como um pré ou pós fenômeno e  causa e efeito dos coloridos, classifiquei as cores em abstratas substantivas e concretas adjetivas, reinterpretei o serpenteamento vinciano, etc.) Porque acho que dizer que o pintor não pode fazer isso ou aquilo, como Lhote afirma em relação a um ou outro colorido, é impedir um estudo de novas ideias. O pintor pode e deve fazer tudo, desde que tenha uma lógica.

Flávia Duzzo: A sua mudança para Florianópolis influenciou seu trabalho, em que sentido?

José Maria: A sua pergunta é Interessante. Porque minha vinda para Florianópolis foi por motivo de saúde, minha filha ficou muito preocupada e eu estava mal no Rio, me dá até certa emoção ao falar. Aconteceram várias coisas simultâneas. Primeiro a morte da minha madrasta, Tem uma história. Um advogado psicopata que se fez amigo da família se apropriou de alguns bens da quando meu pai e minha madrasta morreram, e depois, por fofoca de outros artistas, minha situação piorou. Perdi o contrato que tinha com a Galeria Anita Schwartz, deixei de dar aulas no Parque Lage, fiquei zerado. Entrei num tal estado de desequilíbrio emocional, eu quase morri.

Jociele Lampert: Sabia mais ou menos, …assim, por cima…

José Maria: Eu quase morri mesmo, não morri por muita sorte, estava em frente a um hospital, perto da porta, passei mal, entrei, e me acudiram.

A par desses acontecimentos, essas coisas novas que descobri, tinha o fato de a crítica não me compreender. Durante muito tempo a crítica foi de uma violência comigo, me queimou mesmo. O Roberto Pontual, por exemplo. Participei de uma exposição de um panorama da arte brasileira em São Paulo, ele era crítico de O Globo. Naquela época, década de 80, os jornais abriam espaço para as manifestações culturais e ele ganhou uma página inteira falando de todos os artistas, e comecei a ler, fulano: ótimo, espetacular; beltrano: bom; sicrano: mais ou menos. Meu nome só apareceu na última frase: ”inteiramente fora de propósito, equivocada e sem sentido é a pintura de José Maria da Cruz”. Isso me queimou. E tem mais, dava aulas no Parque Lage, a algumas vezes, quando mudava o diretor, este me retirava do quadro de professores, tinha que me virar. Viver de pintura é meio complicado, temos que dar aula, ou fazer outras coisas. Fiquei queimado no mercado. Mas a vinda para Florianópolis não foi um negócio programado, foi um negócio do destino mesmo, e aqui eu me senti bem recebido.
Como eu gosto de conhecer o meio artístico, comecei a frequentar exposições, queria saber do artista que estava expondo, ia conversar com o expositor, me apresentava e trocava ideias. E fui conhecendo gente.  Numa exposição no Museu Histórico, conheci uns artistas e conheci também um professor de filosofia, o Nestor Habkost. Comecei a conversar com ele, comecei a expor minhas ideias etc. e ele gostou muito do que eu estava pensando e iniciamos uma troca de e-mails, e em um me escreveu: “Está programado um seminário no departamento de filosofia, já está tudo pronto, mas se você quiser, pode dar uma palestra.” e eu inconsequente falei: “tudo bem, eu dou a palestra”. Depois fiquei pensando: que maluquice, dar uma palestra para filósofo no departamento de filosofia. Felizmente me saí bem.
No Rio também fui convidado para umas palestras, mas sempre havia certa aflição, como me dissessem: “o que você está fazendo aqui?” Um negócio meio agressivo, mesmo. Mas aqui não, foi um negócio completamente diferente, bem diferente daquela pressão que tinha lá no Rio.  E sei que eu estava inspirado, sei que a palestra acabou ficando muito boa mesmo. Comecei a me sentir muito mais à vontade aqui em Florianópolis. Estou morando aqui faz oito anos - e aqui eu já escrevi três livros, lá no Rio só consegui escrever um, para se ver como aqui eu fiquei muito mais produtivo. Por esses motivos, me senti bem, me senti aceito, estou agora com vocês, lá no Rio não teria acontecido isso nunca, lá é muita politicagem. Em Florianópolis praticamente não tem mercado.

Jociele: José Maria, antes de passar para a outra pergunta, tem haver com isto que você está colocando aqui para nós, você viveu no Rio um período em que aconteceu não só no Rio, mas em todos os lugares do Brasil, aquele discurso da morte da pintura, ou que, o pintor era quase um marginal. Viver de pintura era uma coisa inacreditável…você estava em um lugar onde performance, intervenção…, é…  haviam outras linguagens artísticas, então, você sentiu essa “morte da pintura”? Ou como você sentiu isso, como você viveu isto?

José Maria: Não senti tanto, sempre achei isso bobagem. Cito até em um de meus livros o Hélio Oiticica que diz: “existe um problema complexo na pintura contemporânea:  a cor”, ele não está matando a pintura, ele fala outra coisa: “para mim a pintura de cavalete está definitivamente encerrada”. Ele está mudando o espaço da pintura, que é aquilo que eu anotei. Um espaço plástico não mais lá, além do suporte, e nem ali, na superfície do suporte, mas aqui, coincidindo com esse no qual nos orientamos. Então, não tive problemas. Meu problema estava com a crítica que não me compreendia. Mas, eu nunca acreditei neste negócio de morte da pintura.

Jociele Lampert: Que bom!

José Maria: Eu nunca acreditei. Muitos críticos e alguns artistas afirmaram a morte da pintura, mas outros continuaram pintando, por exemplo, Volpi, Iberê, e alguns mais, e da minha geração cito a Katie Van Scherpenberg. Agora a pintura está aí com toda a força novamente.

Jociele: Nós nunca deixamos de pintar por causa deste discurso, mas como você estava lá em um grande centro, eu imagino que lá a crítica deve ter sido muito mais feroz…

José Maria: Sim. Foi muito feroz mesmo, foi muito feroz. Lembro-me, conversei com o Jairo Smith; o Iberê Camargo, por exemplo, vivia muito mal, ele não vendia, um senhor pintor, entretanto a crítica o colocava de lado, ele só ganhou o renome que tem hoje, depois de 1980 com  o enfraquecimento do discurso sobre a morte da pintura.

Jociele Lampert: E com o apoio de um grande financiador: a Gerdau.

José Maria: Um grande financiador. Mas a crítica quase o ignorava, não se tocava em Iberê Camargo, e não se tocavam em outros artistas que estavam pintando também.  A questão do Volpi, por exemplo, não era esse nome todo que é hoje, ele ficava meio  de lado; Aliás a história do Volpi é muito curiosa, não sei se bem conhecida. Ele apareceu porque ganhou o prêmio da primeira Bienal de São Paulo na década de 50. Estava tudo armado para o premiado ser Di Cavalcanti, um nome bem badalado, inclusive um dos organizadores da Semana de 22 junto com Villa Lobos e Manuel Bandeira. Mas convidaram para membro do juri o Herbert Head e ele afirmou: “aquele ali que é bom”. O que era para esse crítico o bom era o Volpi, e então ficou todo mundo assim: “Poxa! o cara olha”.  Diziam: “ Tem aqui o Di Cavalvcanti”.  “Mas, o bom é aquele”, retrucava. O Volpi apareceu e começou a ser aquele nome reconhecido, mas em 60 e 70 o nome dele ficou menos falado, não era muito comentado, agora está voltando a ser estudado novamente.
Um período meio complicado para quem queria só pintar, muito complicado, porque era uma pressão, quase toda a crítica e alguns artistas consideravam que a pintura não tinha mais nada para se pensar. Eu estava estudando a questão da cor. Dizia: “quanta coisa tem ainda para se pensar em termos de pintura!” Foi um estudo longo, porque durante muito tempo ainda fiquei preso àquele círculo cromático de primárias e secundárias, etc, mas estudando Cézanne ficava intrigado com uma frase na qual ele diz que a luz não existe para o pintor, tem que ser substituído por outra coisa: a cor. Quer dizer, aquele círculo cromático tinha uma pretensão de racionalizar a cor e a cor é enigmática, e também de explicar todos os fenômenos cromáticos da natureza. É bem um pensamento iluminista, muito racional. Então a cor não tinha lugar nessa racionalidade, e eu comecei a estudar, estudar, estudar. Só me livrei daquele círculo em 1986, quando descobri o cinza sempiterno. Cézanne fala também de um cinza que reina em toda a natureza. Felizmente dava aulas e assim muitos artistas começaram e me apoiar. Agora alguns críticos, a crítica mais nova, está começando a ver meu trabalho e finalmente, acho que vou chegar a algum lugar.

Flávia Duzzo: Além de Cézanne quais seriam as suas grandes referências artísticas?
José Maria: Quando terminei o científico começou aquela história lá em casa: o que você vai ser?
Quero ser pintor, respondia.
Meu pai insistiu: mas é bom você ter um diploma, porque você não faz arquitetura? É interessante, inclusive tem certa afinidade com a  pintura. Respondia: Eu não quero ser arquiteto, eu quero ser pintor.
Meu pai, felizmente, era uma pessoa compreensiva e disse: então tudo bem, te apoio, vou te arranjar uma bolsa; já que você quer ser pintor, você vai estudar em Paris. E então, conseguiu uma bolsa do Itamaraty, e outra do governo francês. Fiquei dois anos na Europa, em Paris estudando com um pintor argentino: Emílio Pettoruti, que é um senhor artista. Ainda sobre minha formação e entra aqui, o MASC, que foi o primeiro Museu de Arte Moderna do Brasil de fato, o de São Paulo foi de direito,  foi registrado em cartório, mas começou a funcionar em 1949 e este já estava funcionando em 1948, precariamente, tudo bem, mas foi oficializado em 1949 e a exposição deste museu teve artistas franceses, alemães, etc. além de brasileiros, claro. Eram quadros da coleção de um embaixador que serviu na Europa durante a Segunda Guerra. Ele comprou muita pintura, tudo que se possa imaginar de 1900 a 1950, tinha mais de 2000 quadros. Logo, terminada a Guerra, ele se aposentou e trouxe essa coleção para o Brasil; e ela ficou pertinho lá de casa, em Laranjeiras, onde morava, e eu estudando pintura, frequentava-a muito. Então aquela coisa que eu estou repetindo muito: a minha formação foi muito em cima das fontes primárias. Passei a não ver reprodução, eu ia lá ver os quadros mesmo. Ele tinha quatro Picassos, quatro Braques, Paul Klee, Kandinsky, Mondrian, Leger. Juan Gris, tudo, qualquer nome que se possa imaginar. Quando fui a Paris ter aulas com Pettoruti já tinha uma boa formação. Ele começou a me mostrar Cézanne, e comecei a compreender, eu já tinha lido bastante os livros do André Lhote, e aquela sua opinião sobre as escalas cromáticas. Pettoruti me mostrando Cézanne, daí passei direto para o Poussin. Poussin instiga.  Reprodução não dá mesmo para se ver. Como ousado ele foi. Por exemplo, em um quadro tem uma personagem que está com uma roupa verde, e a sombra é avermelhada, outra personagem ao lado, roupa azul e a sombra mais amarelada, é inteiramente abstrato, quer dizer, compreendi aquela frase do Cézanne: “Eu quero refazer Poussin direto da natureza”. Então isso foi muito importante para eu entender Poussin, entender Cézanne e me levou também a entender Braque. Eu já tinha lido os pensamentos de Braque e aí fui vê-lo de perto e de perto com o Pettoruti, é uma coisa espantosa! Então foram três artistas que mexeram muito comigo: Poussin, Braque, Cézanne. Claro, outros, os venezianos, Chardin, Degas, Delacroix, artistas coloristas.
Tem um quadro do Poussin que eu sei quase de cor.  Quais os quadros que você já viu realmente, posso te perguntar? Já fiz essa pergunta para a Katie Van Scherpemberg e ela me respondeu, uns três ou quatro. Deve ter uns três ou quatro quadros que você conhece quase de cor. São quadros que marcam nossa formação. Daí entendermos Cézanne quando ele diz que o Louvre é um livro, nos leva à reflexão.
Jociele Lampert: Les Demoiselles  d’Avignon.
José Maria: Les Demoiselles dÁvignon, você sabe de cor.

Jociele Lampert: Durante três meses pelo menos três vezes na semana eu ia lá e eu olhava o quadro por duas horas…

José Maria: Tem quadros que acabam sendo uma referência muito forte. Tem um quadro do Poussin, realmente eu vi muito este quadro! Vi muito também outro que está no Museu D’Orsay, do Cézanne, aquele que tem as várias maçãs. Vi também outro que agora está no Museu Pompidou, de Braque. Esses quadros eu sei quase que de cor.
Jociele Lampert: Você percebe a influência dele nas suas lições que você faz com os seus alunos hoje?
José Maria: Muita, muita, muita, mesmo, Pettoruti me passava muitos exercícios. Meus cursos têm uma parte teórica e muitos exercícios que eu mesmo criei. Um pouco daquilo que eu falo do Leonardo da Vinci, o discípulo tem que ultrapassar o mestre, não ser melhor, mas pensar, levar o pensamento do mestre adiante.
Tive uma formação pesada, porque a tradição da pintura é pesada, não é brincadeira, é um peso, você não acha? Não é para qualquer um enfrentar a tradição da pintura.
Jociele Lampert: É que tem os extremos, não basta você só pintar fechadinho no seu atelier, você tem que pintar, mas você tem que também olhar para o mundo, e olhar para o mundo quer dizer: viajar, você tem que ir a museus, escolher as fontes, não basta você só ter acesso aos livros. Você ver um Manet de perto é incomensurável, a você ver um Manet no livro.
José Maria: Completamente, não dá mesmo, é muito pobre. E aí entra aquela coisa, você começa a ver o que nós estávamos conversando no início, que era muito importante esta questão da percepção, da percepção com o saber do olho, que é uma coisa que eu fui aprender com o Poussin. A simples percepção é quando ficamos só no aspecto do objeto, e quando nosso olhar é prospectivo nosso ver se baseia no saber do olho, nas diversas distância e nos eixos visuais. Por um olhar prospectivo desenvolvemos nosso pensamento plástico. Um pensamento que tem uma lógica, como Cézanne diz: “que não tem nada de absurda”. Hoje eu penso um quadro, eu não tenho uma ideia, vou pintar uma árvore, vou pintar não sei o que, vou pintar um bosque, um quadro amarelado. Penso na lógica do colorido. Agora a lógica vai ser esta, mas inteiramente plástica, procuro criar um fato pictórico. O tema ou o motivo ficam a esse fato subordinados.  Eu começo a pintar e sei que vai dar certo, porque tem uma lógica, tanto é que não dou retoque no quadro, não tem arrependimentos. Quando eu pinto um quadro é direto, está tudo na minha cabeça, quer dizer, a lógica, as formas vão surgindo na hora.
Jociele Lampert: Você faz estudos?
José Maria: Antigamente eu fazia, agora não, fica na cabeça mesmo. Antigamente, estava estudando ainda, fazia um diagrama cromático. Tinha uma escala básica, tinha também uma lógica, mas eu fui crescendo, crescendo, hoje eu não preciso fazer estudos, quer dizer, hoje a lógica está mais precisa e dá para ficar só na cabeça.
Jociele Lampert: Quanto tempo você leva para elaborar a sua paleta para determinado quadro por exemplo?
José Maria: Muito tempo. Outro dia eu estava lendo sobre um escritor americano. Ele estava sentado na cadeira na varanda de sua casa e passou um vizinho.
-   Está descansando?
-  Não, estou trabalhando.
No dia seguinte o escritor estaca arrumando o jardim, cortando a grama, subindo em árvore, etc. e o vizinho perguntou.
- Ah! Hoje você está trabalhando?
- Não hoje eu estou descansando.
Eu fico lá em casa, sentado e a cabeça tá pensando à beça. Levo muito tempo para pintar um quadro, porque é complexo. Não gosto de ficar me repetindo, tem muito pintor  que vemos que tem uma fórmula, e se repete sempre. Não, eu quero sempre buscar uma coisa nova, ou melhor, conhecer mais.
Flávia Duzzo: Como você relaciona sua atividade de artista, escritor e teórico da cor?
Primeiro quero dizer que nunca me considerei um escritor com preocupações literárias. Sim, publiquei três livros e tenho um quarto que em breve será editado. Como disse, são as minhas anotações, ou seja, creio que mostram muito mais como foi meu processo de conhecimento, tanto que digo que são livros inconclusos. E quanto mais conhecimento adquiro, mais inconclusos esses livros me parecem.
Assim direi que esses livros se ocupam de pintura em seus vários aspectos. Claro, me ocupei nessa caminhada já longa com a questão da cor e dos coloridos, mas eles não são os objetos únicos de meus estudos.
José Carlos Rocha: Com a tua mudança do Rio para Florianópolis, você expôs os motivos, mas eu gostaria de saber da tua arte, da tua produção, esta influência desta pressão que você teve no Rio sofreu também nos teus trabalhos? Você identifica esta diferença entre estar no Rio, produzindo no Rio e produzindo aqui em Florianópolis? Você acha que o lugar te influenciou em novas composições, novas formatações, um novo pensar do teu trabalho?
José Maria: Ah, não, aqui ficou muito mais leve. Você deixa de ter grandes preocupações. Vou falar, vou falar mesmo. Por exemplo, eu dava aula no Museu de Arte Moderna. Quando terminavam as aulas professores e alunos iam à cantina. Muitas ideias eram trocadas e conversava muito com certo professor, e naquela ocasião, na década de 80,eu já estava começando a pensar no cinza sempiterno.
De repente, esse professor me disse que estava preparando um a exposição, não tinha muito tempo para conversar comigo. Passaram-se três meses e certo dia leio no jornal que ele ia expor no Museu de Arte Moderna. Li a entrevista e eu percebi que ele estava repetindo várias frases minhas. Repetiu na maior caretice, na maior sacanagem. Fiquei uma arara. Pensei, no dia da abertura da exposição: vou falar com esse cara.
Mas aconteceu o seguinte e ele é que deve ter ficado uma arara. Quem estava comprando muito trabalho meu nessa ocasião era o João Sattamini e ele, no dia da abertura, na entrada do Museu, estava com um catálogo desse professor na mão mostrando para todo mundo e falando; “Olhem, este cara está copiando o José Maria!”
Jociele lampert: Quem falou para ele?
José Maria: Foi uma iniciativa do próprio Sattamini.
Jociele Lampert: Que barraco! E era o colecionador falando.
José Maria: Era um ambiente quente, eu sei que tenho amigos que me defendem, mas sei também que tem sempre alguém que está atacando, atacando mesmo, então, é desse peso que eu falo. Aqui em Florianópolis não tem esse peso, é muito mais agradável, você poder conversar, falar o que pensa. E agora  acho que eu tenho que falar essas coisas, como o meio artístico no Rio é pesado,  como é baixo o nível. Acredito que os verdadeiros artistas não devem se envolver nessas bobagens. Por isso digo, o artista não é um ego, é um eco. E a arte é, como dizem muitos filósofos, uma coisa ética e estética simultaneamente. O que acabei de contar foi a primeira que o um artista me aprontou. Um galerista quis conhecer o meu trabalho, começou a conversar comigo para eu fazer um contrato com ele e quando o outro artista, que vendia muito e praticamente sustentava essa galeria soube, e isto quem me contou foi um colecionador, e este colecionador perguntou para o galerista: porque você não faz um contrato com o José Maria? Sabe qual foi a resposta? Porque eu não posso, se eu fizer um contrato com o Zé Maria, perco um artista com o qual tenho um contrato. Esse artista me disse que sairia da minha galeria. É ele que sustenta a minha galeria. 
Mas felizmente tenho os meus amigos. E foi o Gonçalo Ivo que interveio e me apresentou aos donos da Galeria Saramenha, um deles o Vitor Arruda, e assim consegui um bom contrato.
Apesar do apoio dos amigos é difícil viver nesse meio.
Jociele Lampert: Meio artístico selvagem…selvagem é a palavra certa…
José Maria: O meio artístico é selvagem, selvagem mesmo.
Jociele Lampert: Mas você acha que a cor por exemplo, na tua pintura mudou?
José Maria: Mudou mesmo. Porque aqui tem uma atmosfera diferente. O Rio de Janeiro fica mais próximo do Equador, lá você não tem pequenos contrastes, tem grandes contrastes. A luz é muito intensa, então a cor é muito intensa também. Aqui não, a luz é de outro espectro, então você começa a ver mais sutilezas cromáticas. Nesse sentido acho que isso me enriqueceu muito. Não que eu esteja copiando esta atmosfera luminosa de Santa Catarina, mas mudou minha pintura no sentido de detalhar mais o colorido. Eu usava mais cores chapadas e próximas do espectro que deu origem ao círculo cromático iluminista que já descartei. Aqui, creio, estou aprofundando meus estudos. Aqui passei a explorar mais os rompimentos dos tons e, por consequência, a manifestação em meus quadros do cinza sempiterno. Aproximei-me mais de Espinosa quando ele diz que a natureza é causa de si mesma e mais, que Deus é a própria natureza. Compreendi melhor a frase de Cézanne quando ele diz que na natureza tudo está colorido. Compreendi também a relação do cinza sempiterno com serpenteamento vinciano. Intuí também que podemos pensar em uma geometria das cores, que nos pode permitir a construção de um espaço plástico com mais liberdade, chegar às formas não mais presos às regras de proporção que herdamos da tradição greco-romana. Resumindo, uma pintura que enfrente o conflito entre a percepção sensível e a linguagem verbal, ou que faça da arte e engenho uma coisa só.
Vale lembramo-nos de Krajcberg quando chegou aqui no Brasil quando disse que a luz mata a cor. Aqui em Florianópolis sentimos que há uma luz que faz com que percebamos mais as sutilezas cromáticas.
Jociele Lampert: Você está de frente para aquela montanha bonita…
José Maria: Pois é, aquela montanha bonita, outro dia estava falando com uma amiga minha. Tira aquelas antenas, tira a RBS, para ficar mais parecida com a montanha de Santa Vitória. Tira um poste que tem em frente a minha janela, uma placa enorme de trânsito, que atrapalha, tira tudo isso. Quero ser mais livre para ver essas riquezas cromáticas!
Jociele Lampert: Zé Maria, muito grata, obrigada, é sempre um prazer ouvir você, você é um arcabouço de histórias. Então, poder ficar um pouquinho e ter ouvir, acho que é um presente. Tenho certeza que a publicação ganha muito com as tuas respostas, isso enriquece também.