sábado, 2 de julho de 2016

Concersa com Milton Machado - Cita-se Leonardo da Vinci, Cézanne, Daunier, Caravaggio, Magritte.



Breves anotações

“Fuja de estudar com aquele que produz uma obra destinada a morrer com ele”
“Triste o discípulo é aquele que não ultrapassa seu mestre”
Leonardo da Vinci

A crise do século XIX

Com a industrialização várias crises surgiram: a luta de classes, por exemplo, a neocolonização da África, problemas econômicos, desemprego, concentração de renda e a consequente desigualdade social, etc. A arte as percebeu. Surgiram escritores como Charles Dickens e artistas como Coubert, Daumier, os impressionista, uns mostrando o dia a dia dos menos favorecidos (Daumier, ver figura 1) e esses últimos, os impressionistas, saindo do atelier para pintar ao ar livre. Têm aqueles que saíram de Paris; Van Gogh, admirador de Millet que introduz o espressionismo, Gauguin que se interessa pela arte primitiva do Taiti que depois vai influenciar Picasso, e Cézanne que cria as bases da arte moderna. A arte para dar conta dessas crises, teve que pensar em um espaço plástico aqui, no espaço imediato, e não mais lá. E se lá, como muitos pintores continuaram a fazê-lo, mas que mostrasse, com novas ideias, as diversas faces dessas crises.


Fig 1 – Daumier

Alberti, considerando uma visão monocular, pensa no espaço plástico sendo o suporte a base de uma pirâmide e seu vértice, um ponto para o qual o olho de dirige além dessa base, portanto, lá. Leonardo ao estudar os limites dos corpos, passa a considerar uma visão bi ocular na medida em que esses limites não se definem mais como uma linha com um valor absoluto.
No Tratado da Pintura Leonardo da Vinci diz que “devemos observar com muito cuidado os limites de qualquer corpo para julgar se suas voltas participam de curvaturas circulares e concavidades angulares.” (ver figuras 2, 3, e 4)


Fig 2


Fig. 3


Fig. 4

Apesar dessa visão bi ocular, o espaço plástico vinciano permaneceu ocorrendo lá, além do plano do suporte.

Na época de Leonardo não havia termos específicos para texto sobre teoria da pintura. Michel Ângelo referia-se às superfícies de suas obras como ‘no finitas’. Leonardo da Vinci se refere aos serpenteamentos circulares e angulares. O termo serpenteamento hoje poderia ser definido como o deslocamento de um ponto que geraria uma linha potencialmente ativa e sempiterna. Um objeto quando visto seria circular na medida em que giraria em torno de seu eixo. Simultaneamente as concavidades angulares referiam-se a um espaço plástico além do objeto e que dariam a noção de profundidade. Essa frase de Leonardo da Vinci se relaciona, também, à construção de um espaço plástico. Curioso é lembrarmo-nos de uma frase de Cézanne: “Os objetos no espaço são todos convexos, as horizontais dariam a extensão e as verticais, a profundidade.” Tanto Leonardo como Cézanne estudaram uma perspectiva além da monocular proposta por Alberti.

Caravaggio, que abole a visão bi ocular, dá início a um espaço que enfatiza o plano do suporte, portando um espaço plástico ali, no plano do suporte. (Ver figura 5)


Fig, 5 – Caravaggio
Voltemos a Leonardo. Diz ele no Tratado da pintura que quando o pintor transpõe algo da natureza para o suporte mata a pintura pela primeira vez e cabe ao pintor evitar uma segunda morte, e isso ele consegue considerando o serpenteamento que anima o espaço plástico. Vale então, considerando o que estamos querendo mostrar, vermos o famoso quadro de Magritte. (Ver figura 6)


Fig. 6 - Magritte

Creio que, considerando o que acima escrevemos, podemos dizer que Magritte está matando a pintura por uma segunda vez ao recusar um espaço plástico lá, ali ou aqui. Ou, dialeticamente, nos mostrando a inutilidade de um esse espaço plástico lá para uma arte de seu tempo. Poderia ter escrito. Isto não é um espaço plástico. Mas esse quadro, contudo, é coisa mental. Podemos também, por esse quadro, aproximar Magrite e Duchamp, na medida em que recusa ocupar o espaço tradicional da pintura. 

Frases de Cézanne

“Somente um cinza reina na natureza e alcançá-lo é de uma dificuldade espantosa”
“Entre o modelo e o pintor se interpõe uma plano, a atmosfera.”

Com essa última frase Cézanne, considerando uma visão bi ocular, introduz um espaço plástico não mais além do suporte, lá, como preconizava Alberti, além do plano do suporte, ou ali, mas aqui, coincidindo com esse no qual nos orientamos. Temo aqui uma questão topológica, pois há uma fronteira entre o espaço plástico e o imediato. A arte ocorrendo em um espaço aqui, tem, então, como conviver com as crises que apontamos no início deste breve resumo, crises estas que se adensam atualmente.
Talvez, por uma questão de sincronicidade, apontada por Jung, o inconsciente coletivo, ou de espírito de época, me parece compreensível que Duchamp tenha colocado nesse espaço à frente do quadro sua obra A Fonte. Mais tarde Hélio Oiticica afirma que havia um problema na pintura contemporânea, a cor. Espacializa a pintura e cria o parangolé e os relevos. Nessas obras, o espaço plástico ocorre aqui, no espaço imediato. E diz mais ainda, que a era da pintura de cavalete estava definitivamente encerrada. Não o entendo afirmando a morte da pintura, mas condenando os quadros que insistiam com um espaço plástico lá ou ali, em minha opinião, uma pintura que cativa uma elite vivendo em outra realidade.

O Cinza sempiterno, o rompimento do tom e o serpenteamento vinciano

Hoje já não acreditamos nas coisas com valores absolutos ou como certezas inquestionáveis. Temos que romper o cerco, descartar o círculo cromático absoluto. E também redefinir as cores. Daí dizer que há as cores abstratas substantivas, que são ideias platônicas e subsistem por si mesmas. E há as concretas adjetivas, cuja condição é ser no colorido, se rompem e se dirigem para o cinza sempiterno e ocupam um espaço plástico aqui. O pintor lida com as duas. Ver umas assemblages por mim realizadas, figuras 7,8 e 9.


Fig. 7


Fig. 8



Fig. 9

Cézanne, ao usar o rompimento do tom, nos mostra a manifestação do cinza sempiterno – uma atmosfera entre o quadro e também considerando o serpenteamento vinciano – faz com que o espaço plástico coincida com esse no qual nos orientamos, aqui. Mas vale observar que o mestre afirmou que pintamos somente uma fração do espaço uma vez que um colorido total nos é interditado. Antevê, assim, a geometria dos fractais.
Há uma relação entre o cinza sempiterno e o serpenteamento e Cézanne a percebeu criando as bases de uma nova perspectiva, e não mais a idealizada como a que foi criada no Renascimento, ou seja, mono ocular e ocorrendo além do suporte.

Sobre o cinza sempiterno temos que considerar as cores concretas adjetivas. Elas são um par, contém em si sua oposta, estão sempre se rompendo por ação de sua oposta, e por contrastes, ora ganhando ou perdendo cromaticidade. Na passagem entre uma cor e sua oposta temos um ponto, um não espaço e um não tempo. Como todas as cores se rompem diremos que esse ponto é um pré ou pós-fenômeno, ou seja, as cores para ele convergem e divergem. Na assemblage por mim realizada (ver figura 10) mostro a passagem de um vermelho em direção a sua  cor oposta, um específico verde e sua reação com o serpenteamento vinciano. Assim podemos afirmar que o espaço da pintura na contemporaneidade ocorre aqui, nela também podemos observar que se baseia nas novas geometrias, com a topológia e a dos fractais. Uma arte ocorrendo aqui, no espaço no qual nos orientamos, se expandiu, incorporando outras manifestações. 

Na obra de Milton Machado podemos observar, além de uma visão obviamente bi ocular, até mesmo em seus quadros, uma relação com a música, com a poesia, com o olfato, com a filosofia, com o serpenteamento e o cinza sempiterno, a semiologia, a política, etc. 

O cinza sempiterno, o rompimento do tom e o serpenteamento 

Na assemblage abaixo podemos observar que o sexto intervalo ao lado do quinto e do sétimo, ora é avermelhado, ora esverdeado diante do observador ou de uma testemunha. Entre estas o serpenteamento que anima o espaço.
Aqui podemos nos referir às lógicas aristotélicas do terceiro excluído e a da do terceiro incluído. Na lógica aristotélica diz-se que um vermelho não é um verde. Permanecem, assim,  em um único nível de realidade.  Na lógica do terceiro incluído consideramos outro nível de realidade sem ferir a concebida por Aristóteles. Se incluirmos como um terceiro termo as ideias das cores abstratas e concretas podemos afirmar que um vermelho abstrato substantivo não é um vermelho concreto adjetivo.
No diagrama mostrado no quadro aqui assinalado como a figura 10 neste texto, podemos considerar como o terceiro termo o rompimento do tom, o cinza sempiterno ou o serpenteamento vinciano. Diremos, então, que o sexto intervalo ao lado do quinto é avermelhado, e ao lado do sétimo, esverdeado. Temos, então, mais um exemplo da lógica do terceiro incluído sem ferir o axioma de Aristóteles.
Tais considerações vão nos permitir ver as obras de Milton Machado que abaixo comentamos com maior profundidade.


Fig, 10

O QUE É UM QUADRO HOJE?

Abaixo uma troca de e-mails entre eu e Milton Machado. Desse vídeo abaixo citado foram retiradas as fotos que agora comento. Ver figura 11.


Fig. 11 – Milton Machado

“Tem um vídeo que se chama PINTURA. As imagens são de umas câmeras/salas de pintura com tintas líquidas de peças industriais. Um fundo de uns 3 x 5 m, com uma densa e profunda camada de graxa preta cheia de sulcos verticais, sobre a qual escorrem tintas que marcam e colorem essa superfície com imagens fortuitas muito belas. E, como se não bastasse tanta beleza pictórica, corre uma cascata de água, lavando a “pintura” o tempo todo, produzindo os sulcos, e respingos, e brilhos e refexos. Rapaz, é bonito demais, e poucos pintores seriam capazes de pintar imagens tão belas quanto aquelas, que podem lembrar um Iberê, mesmo um nosso querido Braque. Estou muito contente com o resultado.
Não sei de nada também. Quem sabe é porque se engana. De cabeça fria não nasce flor. Ainda mais maria-sem- vergonha.”

Minha resposta:

Caro Milton
Como disse, fiquei impressionadíssimo com as fotos. O escrito já está pronto na minha cabeça, mas confesso que não será imediatamente transcrito. Estou muito cansado. Trabalhando muito e, por sorte, você não está me vendo. Passo horas sentado sem nenhum gesto, salvo aqueles naturais, respiração, por exemplo. Ou deitado e idem. Às vezes caminhando, além do gesto da respiração, alguns passos. Mas dentro da cabeça! Acrobacias inimagináveis! Pintar um quadro, por enquanto, nada. Mas meus olhos ainda são de um pintor. Por eles escrevo. O fato é que seu trabalho me servirá para as aulas. Estou discutindo o que é um quadro hoje (ou pintura).
Um pequeno resumo. O seu trabalho não é um quadro. O axioma da não contradição é respeitado. Um não quadro não é um quadro. Por aí temos um único nível de percepção e realidade. A lógica aristotélica permanece. Uma coisa não pode ser verdadeira e falsa simultaneamente. Na minha frente vejo, entretanto, pelas fotos, a imagem de um quadro. Podemos dizer então que a PINTURA, a obra de Milton, não é uma pintura. Temos, então, outro nível de percepção e realidade. Seu trabalho é um quadro ou o pensamento de um, ou da própria pintura. O axioma da não contradição é respeitado. Um quadro não é um não quadro; uma pintura não é uma não pintura, etc. Aqui vale citar Poussin que diz que ou vemos simplesmente, e ver simplesmente é apenas considerar o objeto, e nesse caso vemos por dentro. E perdemos o que está por fora. Ou então vemos prospectivamente, e nesse caso três coisas têm que ser consideradas: o saber do olho, as diversas distâncias e os eixos visuais. Portanto já podemos pensar a partir da lógica do terceiro incluído, neste caso, através de um terceiro termo sem ferir o axioma da não contradição. Temos, a partir do olhar prospectivo que nos propõe Poussin, no mínimo, dois níveis de percepção e realidade. Se considerarmos esse olhar prospectivo, outros níveis de percepção e realidade são possíveis, nunca ferindo o princípio da não contradição. 

Em meus estudos sobre as cores, o terceiro termo pode ser, tenho que pensar mais, o cinza sempiterno que permite uma dimensão temporal. Um olhar que permita uma percepção pelos intervalos e de um espaço fracionado. Nessa sua obra, olhares que excluem dos objetos seus respectivos valores absolutos e as classificações estratificadas. Vale dizer, um objeto, sem um valor absoluto, pode permitir percepções além de seu simples aspecto. E tem mais, sua condição depende do contexto onde se encontra. Não existe por si só. Aquela questão que já conversamos: temos que vê-lo por fora para compreendê-lo, também, por dentro. Dependendo do que está fora o que está dentro se modifica. De qualquer forma podemos dizer que pintar um quadro é cobrir uma superfície com uma ou mais cores. E podemos fazê-lo usando pincéis. No seu caso não foram usados pincéis, mas as pinceladas aparecem. Rastros de pinceladas se fazendo. O eterno presente? 

Nas diversas distâncias, por exemplo, temos o que você defende, as distâncias em proximidade. Nos eixos visuais, o que Cézanne nos adverte: as horizontais dão a extensão; as verticais, a profundidade e estas últimas em seu trabalho jorram em cascatas. Mas a horizontalidade é uma só. Uma dialógica interessante entre o permanente e o transitório. E assim o espaço plástico torna-se multidimensional.

Pela citação de Francisco Inácio Peixoto, este grande contista que participou nos primórdios de nosso modernismo do movimento Verde, acontecido na pequena cidade mineira, Cataguases: “Sonhava e o sonho, desdobrando-se em mil facetas coloridas, prejudicava-me o sono e a vida. Vinha o desvario, vinha a hesitação e, entre hesitações e desvarios, passei dias.” Um fim, assim como nessa citação, se desenha, e isso se repete em seu trabalho com mais ênfase. Há o momento no qual a obra deixa de existir. Deixa?
A obra é iluminada por um raio poético, conforme nos aconselha nosso querido Braque.
Repare, Duchamp também está presente: um objeto encontrado, mesmo que nos cacos de sua imaginação, que se transforma. E, assim, se transformam também os cacos imaginados: aqueles emprestados de Beuys, a graxa, por exemplo. E “entre o sono e a vida...”, etc.

Outra obra de Milton Machado



Fig 12 - The Wicked One, and Two, Velas, mesa de aço e vidro, ferro, pavios, fogo. 1990

Desse trabalho comentarei como a segunda vela, acessa nas duas extremidades, topologicamente, quando a cera derretida cai sobre um pavio, gera outra vela. Vejo esse trabalho também, poeticamente, como uma metáfora; vida, morte e ressurreição.

Vale aqui transcrever uma observação do Milton em um livro sobre minha obra, Interiores de reflexão. 

“Devemos dizer que o primeiro não é primeiro se não houver depois dele, um segundo. Consequentemente, o segundo não é apenas aquilo que vem, como algo que chega com atraso, depois do primeiro, mas que permite ao primeiro ser o primeiro. Assim o primeiro não tem como ser o primeiro por sua própria potência, por seus próprios meios: o segundo deve ajudá-lo com toda força de sua demora. É através do segundo do que o primeiro é o primeiro. A ‘segunda vez’ tem, portanto, uma prioridade sobre a ‘primeira vez’, pois está presente, já desde a primeira vez, como condição prévia para a prioridade da primeira vez (sem que ela que ela seja, evidentemente, uma ‘primeira vez’ mais primitiva): daí que a ‘primeira vez’ é na realidade, a ‘terceira vez.”
( Vincent Descombe, Le même et l’outre: quarentecinq ans de phiolophie française (1933-1978), Paris, Minuit, 1979, pag. 170).

Volto aqui a falar de Poussin. Considerando só uma primeira vez veríamos simplesmente, de uma forma abstrata, seu aspecto, e vendo-a só por dentro. Com a chegada de uma segunda vez veríamos prospectivamente, e por fora para vermos também por dentro.

 
O semáforo


Fig. 13 - vidro pintado, lanterna e madeira.

Essa obra Milton Machado nos leva a perceber o cinza sempiterno e o serpenteamento. Um espaço plástico aqui, portanto, mas considerando-se vários níveis de realidade. Mostra também uma relação com a semiologia, metafórica e poeticamente, os momentos de parar, esperar e avançar.

Um poema de Raul de Leoni

Legenda dos dias
O Homem desperta e sai cada alvorada
Para o acaso das cousas... e, à saída,
Leva uma crença vaga, indefinida,

De achar o Ideal nalguma encruzilhada...
As horas morrem sobre as horas... Nada!
E ao poente, o Homem, com a sombra recolhida
Volta, pensando: Se o Ideal da Vida
Não vejo hoje, virá na outra jornada...
Ontem, hoje, amanhã, depois, e, assim,

Mais ele avança, mais distante é o fim,
Mais se afasta o horizonte pela esfera;

E a Vida passa... efêmera e vazia:
Um adiantamento eterno que se espera,
Numa eterna esperança que se adia...

José Maria Dias da Cruz – Florianópolis - maio de 2016

José Maria Dias da Cruz - Cor e forma



Sem título – o/s/t – 40 x 50 com – 2016

Nesse quadro procurei estudar o conflito ente forma, que é mais racional, e cor ou colorido, que é enigmático.
Do lado direito, enfatizado por uma faixa azul abaixo, um espaço se constrói, e o violeta é bem mais uma cor abstrata substantiva que concreta adjetiva. Se considerarmos somente essa parte a forma no todo do quadro de destrói, apesar na manifestação do cinza sempiterno acima. Ou seja, essa parte direita não se sustenta por si só. É um espaço morto, Entretanto o avermelhado se rompe e cria do lado esquerdo outro espaço no qual as cores concretas adjetivas prevalecem, e permitem que uma forma venha para o primeiro plano de percepção por uma visão sincrét, O contraste entre esses dois espaços, graças a uma visão mais analítica, dinamiza ou, pelo serpenteamento vinciano, anima ou dá vida à pintura. Temos, então, a sequência, vida, morte e ressurreição dentro de outra ordem, ou seja, como se deu a vida, o que se viveu, como se morreu, e como se deu a ressurreição.
José Maria Dias da Cruz – Florianópolis – julho de 2016