domingo, 30 de junho de 2013

Delacroix A Lagosta

A Lagosta de Delacroix

Quem visita o Louvre encontra em uma das principais alas alguns quadros de Delacroix, entre eles um bastante citado por historiadores, críticos, etc., o quadro intitulado A Liberdade Guiando o Povo. Mas em outra ala, bem menor, vai se deparar com o quadro A Lagosta, pintura para pintores, infelizmente pouco conhecido e estudado. Esse quadro é fortíssimo. A vida e morte é o seu tema. Troquei algumas idéias com as amigas Elaine Pauvolid e Paula Laranjeira. Os comentários foram tão ricos que resolvi mostrar o quadro em meu blog para quem quiser estudá-lo possa fazê-lo.

Este texto é o resultado de conversas que mantive durante uma semana com Elaine Pauvolid, Paula Laranjeira e Orlando Mollica sobre um quadro de Dalacroix que eu denomino A Lagosta. Portanto eles são co-autores.
Nesse quadro de Delacroix há uma discussão bem complexa sobre a vida e a morte, e o curioso é que a morte, está representada pelos animais em primeiro plano: as lagostas, a lebre e os pássaros pintados em "cores vivas", menos um réptil anfíbio, uma salamandra, que esta viva. E a salamandra é um ser mítico que está bem presente no imaginário de alguns povos. No lado direito, abaixo, há um plano, com uma mancha escura acima, que pode ser um muro, e nosso olhar não consegue ir além dele. No lado esquerdo, em contraponto, há um outro espaço, este com linhas inclinadas, como se esboçasse um caminho que nos possibilitasse chegar ao segundo plano onde se nota, em tons mais brandos, bem distantes, uns cavaleiros, portanto, uma representação de coisas vivas. Curioso esse contraste. Há ainda as questões cromáticas. Predomina um contraste alaranjado-violáceo que potencializado faz surgir um esverdeado, e isso era teorizado pelo pintor que afirmava que na natureza tudo se resumia ao acorde laranja, verde e violeta. Repare que os esverdeados no quadro, menos evidentes, estão todos rompidos. Ganham alguma evidência induzidos pelos alaranjados e violáceos. Portanto o colorido se afirma e acaba, assim, dialogando com as formas e daí enfatiza o narrativo, mas deixando-o subordinado à plasticidade. Delacroix, me parece, nos aponta para o enigmático e, como já disse, nos faz pensar na nossa própria condição, ou no miserere, isto é, na imperfeição própria dos homens. Por isso que digo que é uma pintura para pintores. Curioso é se constatar que um dos quadros mais comentados e reproduzidos de Delacroix seja A Liberdade Guiando o Povo. Logo depois o pintor, desencantado, se refugia em seu atelier onde nunca mais pintou quadros panfletários.
Para terminar seguem umas frases retiradas de um e-mail que me foi enviado pelo artista plástico Orlando Mollica:

"É a forma romântica de se expressar ante a uma realidade política de esfacelamento social: uma Revolução que prometia tudo e que acabou muito mal.

Esse anti-climax que rolou no começo do século XIX e provocou, ou melhor, acirrou o ânimo dos românticos, abasteceu fortemente a criatividade desses artistas. Com Delacroix não foi diferente.

Mas, a bem da verdade, com o capitalismo ainda e cada vez mais forte e impiedoso, vide crise européia, USA, Oriente Médio, África, os milhões de miseráveis e desempregados espalhados desde o primeiro ao último mundo, e o planeta batendo pino, a atualidade de visões céticas e sinistras como a de Delacriox ainda são muito atuais."
José Maria Dias da Cruz
Abril - 2011

terça-feira, 25 de junho de 2013

Rothko



Rothko



Aspectos formais

Rothko trabalha os contrastes para criar essa pulsação. 

Vejamos o quadro acima.

Contraste claro/escuro. Qto maior for a for o intervalo mais a cor clara se ilumina e mais a cor escura se rebaixa. 

As cores avermelhadas se contrastam com as esverdeadas e se realçam simultaneamente. No quadro acima, o violáceo  (mais avermelhado) se realça pelos azulados q se tornam esverdeados. Mas como são cores afins tbm se rebaixam. Note-se uma menor luminosidade da aera violácea em comparação com a área azulada. 

Duas cores próximas por afinidade tendem a se rebaixar. O intervalo entre o escuro da borda e o da faixa entre as cores azuladas e violáceas faz sobretudo esta se romper, e assim possibilitar a manifestação do cinza sempiterno.

Como as cores, q se dão no tempo como concretas adjetivas ora convergem, ora divergem do cinza sempiterno simultaneamente. Esse cinza sempiterno antes de se manifestar no quadro é um ponto sem nenhuma dimensão. Daí ser um pré ou pós fenômeno. Nele ñ há nem tempo nem espaço. Um zero. Ma um vazuio-cheio na medida q é uma potência.

As bordas em Rotko possibilitam o plano pictórico. As cores, entretanto, têm movimentos concêntricos e excêntrico considerando-se o cinza sempiterno como um ñ espaço e ñ tempo.

Outras considerações

Esses contrastes criam uma oscilação. Reportam-se, assim, ao Q venho desenvolvendo em relação ao serpenteamento vinciano. O espaço plástico se anima com o serpenteamento gerado por essa oscilação. E mais ainda: segundo Leonardo da Vinci evita q a pintura morra por uma segunda vez. Temos então a questão de vida, morte e ressurreição. Talvez isso explique a aproximação de Rothko com Cézanne que afirmou que a arte é uma religião. E também porque Rothko não se considerava um pintor abstrato.
10 - Elasmovisor
As plataformas continentais, os bancos
oceânicos e as fossas abissais com profundidade
de cerca de 10.000 m constituem em conjunto
uma pequena porção do fundo do oceano. A
maior parte deste fundo é a planície abissal, cuja
profundidade varia entre 4.000 e 6.000 m
(REVELLE). A denominação “abissal” é indício de
quanto estas profundidades impressionam ao ser
humano. “Abismo” significa, entre outras coisas,
“tudo que é insondável, misterioso, assombroso”
(Houaiss & VILLAR). No entanto, o aspecto “abissal”
do oceano é uma impressão subjetiva do ser
humano, uma impressão que não corresponde
com a realidade objetiva. Na verdade a extensão
vertical do oceano é pequena, tanto relativamente
como em termos absolutos.
Tomando-se 5.000 m como a
profundidade da planície abissal do oceano, dois
cálculos revelam quão pequena é esta
profundidade em relação com a extensão
horizontal do oceano. A distância entre a costa
nordeste do Brasil e o continente da África é de
cerca de 5.000 km. Tomando-se esta cifra como
medida da largura do Oceano Atlântico, constatase
que a profundidade da planície abissal é cerca
de 0,1% da largura deste oceano. O Oceano
Atlântico tem as proporções de uma lâmina
retangular com largura de 1 m e espessura de 1
mm.
No equador, a circunferência da Terra
é de 360 graus de longitude, e um minuto de um
grau de longitude é aproximadamente 1,852 km
(BARETTA-BEKKER, DUURSMA & KUIPERS). Com a
expressão 360x60x1,852=2πr segundo HALE,
calcula-se que o diâmetro da Terra no equador é
cerca de 13.000 km. Portanto a profundidade de
5.000 m da planície abissal é cerca de 0,04% do
diâmetro da Terra. Em escala reduzida, o oceano
corresponde a uma lâmina de água de 0,4 mm
de espessura sobre a superfície de uma esfera
sólida de 1 m de diâmetro.
Distâncias verticais são experimentadas
pelo ser humano de maneira exagerada, em
comparação com distâncias horizontais da mesma
magnitude. Um penhasco com altura de 200 m, e
uma profundidade de 200 m no mar,
impressionam ao ser humano, ao passo que no
plano horizontal uma distância desta mesma
magnitude é sentida como sendo pequena,
correspondendo a uma caminhada de apenas
dois a três minutos. Na estrada asfaltada, um
trecho de 5 km é experimentado como curto,
podendo ser percorrido com um veículo
motorizado em menos de quatro minutos. Em
campo aberto, num dia claro, enxerga-se a olho
nu um edifício ou uma árvore à distância de 5.000
m, e o mesmo acontece na superfície do mar com
um navio a esta distância. Ora, o ser humano a
bordo de um barco no oceano, num dia claro,
enxergaria objetos e cardumes de peixes no
fundo da planície abissal e em toda a coluna d’água,
se esta fosse transparente e iluminada como o ar.
Então porque é que a profundidade de 5.000 m
é considerada como “abissal”, enquanto uma
distância de 5 km no plano horizontal é sentida
como pequena? Distâncias verticais, tanto em terra
Oceano pequeno
Carolus Maria Vooren
firme como no oceano, impressionam ao ser
humano não por causa da magnitude absoluta
das mesmas, mas por causa da dificuldade inerente
ao deslocar-se no plano vertical, e por causa da
magnitude das mudanças ao longo do gradiente
vertical de fatores ambientais como luminosidade,
temperatura, pressão atmosférica e hidroestática,
e intensidade do vento. Também em termos
absolutos, a distância entre a superfície do oceano
e a planície abissal é pequena. O oceano é uma
extensa porém rasa camada de água sobre a
crosta terrestre.
As forças exercidas sobre o oceano
pelos ventos, pela rotação da Terra, e pelos
campos gravitacionais do Sol e da Lua, empurram
ou puxam as águas do oceano principalmente em
direção tangencial e por isto, fazem com que o
lençol de água que é o oceano, flui sobre a crosta
terrestre. Com a visão das dimensões verdadeiras
do oceano, os fenômenos causados pela ação
destas forças são mais facilmente compreendidos.
Tais fenômenos são os correntes das marés, os
grandes correntes de superfície, e os desníveis
na superfície que dão origem aos grandes contracorrentes.
Ao mesmo tempo, o complexo sistema
de correntes que existe dentro da totalidade do
fino e curvo lençol de água que é o oceano, assume
um aspecto quase que microscópico, como se tudo
isto estivesse acontecendo dentro de um poço de
chuva. O enredo ordenado e dinamicamente
estável de tantos correntes extensos e simultâneos
dentro de tão fino lençol de água, causa admiração.
O tubarão-azul Prionace glauca possui distribuição
mundial nos oceanos temperados e tropicais, e
seu circuito migratório no Atlântico Norte abrange
todo esta porção do oceano entre as latitudes de
10o N e 47o N (VOOREN). Este tubarão é um exemplo
de um animal que se orienta dentro do raso labirinto
de correntes que é o oceano, como que dentro
de uma paisagem contínua e variada com extensão
de milhares de quilômetros.
A superestimação psicológica das
distâncias verticais explica a maneira
despreocupada e sem-cerimônia como o ser
humano deposita seu lixo no oceano. Exemplo
disto é o despejo de lixos militar e radiativo. Lixo
militar inclui explosivos, pesticidas, desfolhantes,
gás mostarda e outros materiais para a guerra
biológica e química (GESAMP, DOYLE). No final da
2a Guerra Mundial, lixo militar da Alemanha foi
despejado em grande escala nos mares da
Europa. Trinta e seis navios alemães carregados
com o total de 168 mil toneladas de material da
guerra química foram afundados a 600 m de
profundidade nas águas próximas à cidade de
Arendal, na costa sul da Noruega. O local é um
Literatura consultada:
BARETTA-BEKKER, Johanna G., Egbert K. DUURSMA & Bouwe
R. KUIPERS. 1992. Encyclopedia of Marine Sciences.
Berlin: Springer Verlag. 311p.
DOYLE, Alister 2004. Lixo de guerra no mar. Zero Hora,
Porto Alegre, 04/04/2004.
GESAMP 1976. Review of harmful substances. UN
Joint Group of Experts on the Scientific Aspects of
Marina Pollution (GESAMP), Reports and Studies No.
2, 80 p. New York: United Nations.
HALE, L.J. 1965. Biological Laboratory Data. London:
Methuen & Co. Ltd. 147 p.
HEATH, G. R., C. D. HOLLISTER, D. R. ANDERSON & M. LEINEN.
1983. Why consider subseabed disposal of high-level
radioactive wastes? In PARK, P. Kilho, Dana R. KESTER,
Iver W. DUEDALL & Bostwick H. KETCHUM (Eds.), Wastes in
the Ocean Vol. 3, Radioactive wastes in the Ocean.
New York: John Wiley & Sons p. 303-326.
HOUAISS, Antônio & Mauro de Salles VILLAR. 2002. Dicionário
Houaiss da Lingua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva.
2922 p.
NEILSOM, Robert M. Jr. & Martin W. KENDEIGH. 1983.
Analysis and evaluation of a radioactive waste package
retrieved from the Atlantic Ocean. In PARK, P. Kilho, Dana
R. KESTER, Iver W. DUEDALL & Bostwick H. KETCHUM (Eds.),
Wastes in the Ocean Vol. 3, Radioactive wastes in the
Ocean. New York: John Wiley & Sons p. 237-268.
REVELLE, Roger 1969. The Ocean. P. 3-13 In FLANAGAN,
Denis (Ed.), The Ocean. San Francisco: W. H. Freeman
and Company.
VOOREN, Carolus Maria. 2000. Quanto tempo até que um
tubarão-azul seja capturado? Elasmovisor Junho 2000:
3-5.
dos maiores depósitos de lixo químico do mundo.
Pescadores da região têm sofrido danos
permanentes à saúde pelo contato com gás
mostarda vazado de recipientes capturados nas
suas redes, e hoje não se sabe o que será mais
perigoso: retirar este lixo daquele local, ou deixar
que o material vaze e se dilua no oceano. Tais
lixões existem também no Mar Báltico e no Mar do
Norte. Greenpeace quer a retirada deste lixo da
guerra, mas os governos europeus preferem que
o material permanece como está nos mares: o
oceano, afinal, é grande... (DOYLE). Lixo radioativo
inclui combustível servido de reatores nucleares e
material oriundo da demolição de tais reatores no
fim da sua vida útil. NEILSOM & KENDEIGH descrevem
um lixão de material radioativo que existiu no ano
de 1983 no Oceano Atlântico a apenas 190 km da
costa dos EUA, na profundidade de 2.800 m. O
material radioativo era simplesmente jogado no
fundo do oceano, acondicionado em tonéis de aço
forrados internamente com uma camada de
concreto. HEATH e co-autores recomendam que
lixo radioativo seja depositado nas regiões centrais
do oceano, fora dos principais corredores de
navegação, e em profundidades de 5.000 a 6.000
m, fora do alcance de iniciativas ilegais de
recuperação do material.
Parece que as pessoas consideram
3.000 a 6.000 m como profundidades seguras
para o despejo de lixo perigoso no oceano, mas
quando tais profundidades são projetadas no
plano horizontal, percebe-se quão pequenas elas
realmente são. Quem se sentiria seguro com um
lixão de material bélico ou radioativo em terra firma
a uma distância de apenas 5 km da sua casa? E
quantos de tais lixões existem no oceano? É difícil
saber isto, porque dados sobre estes lixões são
pouco divulgados. Os seres vivos do oceano,
desde o fitoplâncton até tubarões, baleias,
tartarugas e aves, circulam a pequenas distâncias
de tais lixões, num ambiente que ao mesmo tempo,
pelo despejo direto e pelo aporte oriundo dos rios
e da atmosfera, recebe constantemente outros
poluentes tais como petróleo, plásticos, pesticidas
e águas de esgoto.
A impressão subjetiva de que o oceano
é infinito, conduz a superestimação, tanto da
capacidade do oceano de resistir a poluição, como
da magnitude dos recursos vivos do oceano. O
oceano é um ambiente absolutamente e
estreitamente limitado, constituído por um fino lençol
de água sobre a crosta terrestre. Ao mesmo tempo,
pela constante circulação das suas águas, ele é
um sistema único e integrado. O oceano é
pequeno. É esta a visão que deve determinar
atitudes e orientar o manejo ambiental do oceano

um quadro de Orlando Mollica

    Mollica - Acrílica sobre tela - 90 x 195 cm - 2013


Email sobre um quadro de Orlando Mollica

Mollica

Estou anexando uma imagem de seu quadro. Seguem algumas considerações.

Há uma horizontal e bem abaixo da pedra da Gávea vc rompe o tom e chega a uma cor oposta ao azul dominante, um certo alaranjado. Há inclusive uma pequena manifestação do cinza sempiterno. Não houvesse esse pequeno detalhe o quadro se desintegraria. Repare: há um preto à direita em baixo. Esse perderia totalmente o sentido sem aquele rompimento e o cinza sempiterno. Agora se você eliminasse esse preto mas deixando aquela manifestação do cinza sempiterno e a oposta do azul, você tem uma outra possibilidade de paisagem. Portanto há no quadro, se você querer vê-lo em possíveis desdobramentos, outras possíveis realidades.

O curioso e que esse detalhe do cinza sempiterno e da oposta situa-se na linha horizontal, ou na extensão segundo Cézanne.

Esses desdobramentos te impedem de se fechar em uma lógica conclusiva, e assim você nos faz pensar no enigma.

Agora um retrospecto. Os quadros de Mondrian reduzidos às horizontais, verticais às cores primárias e esbranquiçados são resultantes de uma síntese da paisagem. Creio que Mondrian deve ter percebido que esses quadros estavam tangenciando uma conclusão, daí ele os ter abandonados no fim de sua vida e pintado aqueles dois últimos quadros nos quais se até, além de um ritmo fantástico permitiu uma interação cromática e nessas até uma insiuação de esverdeados resultantes dos vermelhos ao lado dos cinzentos (prefiro me referir a cinzentos no lugar de cinzas para enfatizar que queria esses cinzentos como cores).

Daí estar insistindo no fato em que você está realmente nos trazendo uma outra percepção da paisagem. Aqui posso me corrigir. Você vai além de uma simples percepção. Há um saber do olho principalmente graças a um pensamento plástico muito sofisticado.

Para você pensar: segue abaixo um artigo que encontrei no Google. Faz uma referência  à extensão e à profundidade.

Me diga, será que com essa troca de ideias estamos reunindo elementos para um bom texto? De minha parte digo que estou entusiasmado. E acho que agora as coisas estão ficando mais claras para mim.

Forte abraço
JM

http://www.cfh.ufsc.br/~oceano/documents/OceanoPequeno1_001.pdf

domingo, 23 de junho de 2013

Jurgen Habermas

Entre capitalismo e democracia se estabelece uma indissolúvel relação de tensões, pois competem pela primazia dos princípios opostos de integração social [...] Estes dois imperativos colidem sobretudo na esfera da opinião público-política, na que há de se acreditar a autonomia do mundo da vida frente ao sistema de ação administrativo. A “opinião pública” que se articula nessa esfera significa da perspectiva do mundo da vida, algo distinto que da perspectiva sistêmica do aparato estatal.

Jurgen Habermas.

Jurgen Haberma

Entre capitalismo e democracia se estabelece uma indissolúvel relação de tensões, pois competem pela primazia dos princípios opostos de integração social [...] Estes dois imperativos colidem sobretudo na esfera da opinião público-política, na que há de se acreditar a autonomia do mundo da vida frente ao sistema de ação administrativo. A “opinião pública” que se articula nessa esfera significa da perspectiva do mundo da vida, algo distinto que da perspectiva sistêmica do aparato estatal.

Jurgen Haberma

CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário dos Símbolos.

O sonho é tão necessário ao equilíbrio biológico e mental como o sono, o oxigênio e a alimentação saudável. Alternativamente relaxamento e tensão do psiquismo, o sonho preenche uma função vital: a morte ou a demência podem ser o resultado de uma ausência total de sonhos (...). A sua função selectiva , como a da memória, alivia a vida consciente.

CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário dos Símbolos.

Michel Foucault - O corpo utópico


  • Basta acordar que não posso escapar deste lugar que Proust docemente, ansiosamente, ocupa uma vez mais em cada despertar. Não que me prenda ao lugar – porque depois de tudo eu posso não apenas mexer, andar por aí, mas posso movimentá-lo, removê-lo, mudá-lo de lugar –, mas somente por isso: não posso me deslocar sem ele. Não posso deixá-lo onde está para ir a outro lugar. Posso ir até o fim do mundo, posso me esconder de manhã debaixo das cobertas, encolher o máximo possível, posso deixar-me queimar ao sol na praia, mas o corpo sempre estará onde eu estou. Ele está aqui, irreparavelmente, nunca em outro lugar. Meu corpo é o contrário de uma utopia, é o que nunca está sob outro céu, é o lugar absoluto, o pequeno fragmento de espaço com o qual, em sentido estrito, eu me corporizo.
    Meu corpo, topia desapiedada. E se, por ventura, eu vivesse com ele em uma espécie de familiaridade gastada, como com uma sombra, como com essas coisas de todos os dias que finalmente deixei de ver e que a vida passou para segundo plano, como essas chaminés, esses telhados que se amontoam cada tarde diante da minha janela? Mas, todas as manhãs, a mesma ferida; sob os meus olhos se desenha a inevitável imagem que o espelho impõe: rosto magro, costas curvadas, olhos míopes, careca, nada lindo, na verdade. Meu corpo é uma jaula desagradável, na qual terei que me mostrar e passear. É através de suas grades que eu vou falar, olhar, ser visto. Meu corpo é o lugar irremediável a que estou condenado.
    Depois de tudo, creio que é contra ele e como que para apagá-lo, que nasceram todas as utopias. A que se devem o prestígio da utopia, da beleza, da maravilha da utopia? A utopia é um lugar fora de todos os lugares, mas é um lugar onde terei um corpo sem corpo, um corpo que será belo, límpido, transparente, luminoso, veloz, colossal em sua potência, infinito em sua duração, desligado, invisível, protegido, sempre transfigurado; e é bem possível que a utopia primeira, aquela que é a mais inextirpável no coração dos homens, seja precisamente a utopia de um corpo incorpóreo. O país das fadas, dos duendes, dos gênios, dos magos, e bem, é o país onde os corpos se transportam à velocidade da luz, onde as feridas se curam imediatamente, onde caímos de uma montanha sem nos machucar, onde se é visível quando se quer e invisível quando se deseja. Se há um país mágico é realmente para que nele eu seja um príncipe encantado e todos os lindos peraltas se tornem peludos e feios como ursos.
    Mas há ainda outra utopia dedicada a desfazer os corpos. Essa utopia é o país dos mortos, são as grandes cidades utópicas deixadas pela civilização egípcia. Mas, o que são as múmias? São a utopia do corpo negado e transfigurado. As múmias são o grande corpo utópico que persiste através do tempo. Há as pinturas e esculturas dos túmulos; as estátuas, que, desde a Idade Média, prolongam uma juventude que não terá fim. Atualmente, existem esses simples cubos de mármore, corpos geometrizados pela pedra, figuras regulares e brancas sobre o grande quadro negro dos cemitérios. E nessa cidade de utopia dos mortos, eis aqui que meu corpo se torna sólido como uma coisa, eterno como um deus.
    Mas, talvez, a mais obstinada, a mais poderosa dessas utopias através das quais apagamos a triste topologia do corpo nos seja administrada pelo grande mito da alma, fornecido desde o fundo da história ocidental. A alma funciona maravilhosamente dentro do meu corpo. Nele se aloja, evidentemente, mas sabe escapar dele: escapa para ver as coisas, através das janelas dos meus olhos, escapa para sonhar quando durmo, para sobreviver quando morro. A minha alma é bela, pura, branca. E se meu corpo barroso – em todo o caso não muito limpo – vem a se sujar, é certo que haverá uma virtude, um poder, mil gestos sagrados que a restabelecerão em sua pureza primeira. A minha alma durará muito tempo, e mais que muito tempo, quando o meu velho corpo apodrecer. Viva a minha alma! É o meu corpo luminoso, purificado, virtuoso, ágil, móvel, tíbio, fresco; é o meu corpo liso, castrado, arredondado como uma bolha de sabão.
    E eis que o meu corpo, pela virtude de todas essas utopias, desapareceu. Desapareceu como a chama de uma vela que alguém sopra. A alma, as tumbas, os gênios e as fadas se apropriaram pela força dele, o fizeram desaparecer em um piscar de olhos, sopraram sobre seu peso, sobre sua feiúra, e me restituíram um corpo fulgurante e perpétuo.
    Mas meu corpo, para dizer a verdade, não se deixa submeter com tanta facilidade. Depois de tudo, ele mesmo tem seus recursos próprios e fantásticos. Também ele possui lugares sem-lugar e lugares mais profundos, mais obstinados ainda que a alma, que a tumba, que o encanto dos magos. Tem suas bodegas e seus celeiros, seus lugares obscuros e praias luminosas. Minha cabeça, por exemplo, é uma estranha caverna aberta ao mundo exterior através de duas janelas, de duas aberturas – estou seguro disso, posto que as vejo no espelho. E, além disso, posso fechar um e outro separadamente. E, no entanto, não há mais que uma só dessas aberturas, porque diante de mim não vejo mais que uma única paisagem, contínua, sem tabiques nem cortes. E nessa cabeça, como acontecem as coisas? E, se as coisas entram na minha cabeça – e disso estou muito seguro, de que as coisas entram na minha cabeça quando olho, porque o sol, quando é muito forte e me deslumbra, vai a desgarrar até o fundo do meu cérebro –, e, no entanto, essas coisas ficam fora dela, posto que as vejo diante de mim e, para alcançá-las, devo me adiantar.
    Corpo incompreensível, penetrável e opaco, aberto e fechado: corpo utópico. Corpo absolutamente visível – porque sei muito bem o que é ser visto por alguém de alto a baixo, sei o que é ser espiado por trás, vigiado por cima do ombro, surpreendido quando menos espero, sei o que é estar nu. Entretanto, esse mesmo corpo é também tomado por certa invisibilidade da qual jamais posso separá-lo. A minha nuca, por exemplo, posso tocá-la, mas jamais vê-la; as costas, que posso ver apenas no espelho; e o que é esse ombro, cujos movimentos e posições conheço com precisão, mas que jamais poderei ver sem retorcer-me espantosamente. O corpo, fantasma que não aparece senão na miragem de um espelho e, mesmo assim, de maneira fragmentada. Necessito realmente dos gênios e das fadas, e da morte e da alma, para ser ao mesmo tempo indissociavelmente visível e invisível? E, além disso, esse corpo é ligeiro, transparente, imponderável; não é uma coisa: anda, mexe, vive, deseja, se deixa atravessar sem resistências por todas as minhas intenções. Sim. Mas até o dia em que fico doente, sinto dor de estômago e febre. Até o dia em que estala no fundo da minha boca a dor de dentes. Então, então deixo de ser ligeiro, imponderável, etc.: me torno coisa, arquitetura fantástica e arruinada.
    Não, realmente, não se necessita de magia, não se necessita de uma alma nem de uma morte para que eu seja ao mesmo tempo opaco e transparente, visível e invisível, vida e coisa. Para que eu seja utopia, basta que seja um corpo. Todas essas utopias pelas quais esquivava o meu corpo, simplesmente tinham seu modelo e seu ponto primeiro de aplicação, tinham seu lugar de origem em meu corpo. Estava muito equivocado há pouco ao dizer que as utopias estavam voltadas contra o corpo e destinadas a apagá-lo: elas nasceram do próprio corpo e depois, talvez, se voltarão contra ele.
    Uma coisa, entretanto, é certa: o corpo humano é o ator principal de todas as utopias. Depois de tudo, uma das utopias mais velhas que os homens contaram a si mesmos, não é o sonho de corpos imensos, sem medidas, que devorariam o espaço e dominariam o mundo? É a velha utopia dos gigantes, que se encontra no coração de tantas lendas, na Europa, na África, na Oceania, na Ásia. Essa velha lenda que durante tanto tempo alimentou a imaginação ocidental, de Prometeu a Gulliver.
    O corpo é também um grande ator utópico quando se pensa nas máscaras, na maquiagem e na tatuagem. Usar máscaras, maquiar-se, tatuar-se, não é exatamente, como se poderia imaginar, adquirir outro corpo, simplesmente um pouco mais belo, melhor decorado, mais facilmente reconhecível. Tatuar-se, maquiar-se, usar máscaras, é, sem dúvida, algo muito diferente; é fazer entrar o corpo em comunicação com poderes secretos e forças invisíveis. A máscara, o sinal tatuado, o enfeite colocado no corpo é toda uma linguagem: uma linguagem enigmática, cifrada, secreta, sagrada, que se deposita sobre esse mesmo corpo, chamando sobre ele a força de um deus, o poder surdo do sagrado ou a vivacidade do desejo. A máscara, a tatuagem, o enfeite coloca o corpo em outro espaço, o fazem entrar em um lugar que não tem lugar diretamente no mundo, fazem desse corpo um fragmento de um espaço imaginário, que entra em comunicação com o universo das divindades ou com o universo do outro. Alguém será possuído pelos deuses ou pela pessoa que acaba de seduzir. Em todo o caso, a máscara, a tatuagem, o enfeite são operações pelas quais o corpo é arrancado do seu espaço próprio e projetado a outro espaço.
    Escutem, por exemplo, este conto japonês e a maneira como um tatuador faz passar a um universo que não é o nosso o corpo da jovem que ele deseja:
    “O sol lançava seus raios sobre o rio e incendiava o quarto das sete esteiras. Seus raios refletidos sobre a superfície da água formavam um desenho de ondas douradas sobre o papel dos biombos e sobre o rosto da jovem em sono profundo. Seikichi, depois de ter corrido os tabiques, tomou entre as suas mãos suas ferramentas de tatuagem. Durante alguns instantes permaneceu imerso numa espécie de êxtase. Precisamente agora saboreava plenamente a estranha beleza da jovem. Parecia-lhe que podia permanecer sentado diante desse rosto imóvel durante dezenas ou centenas de anos sem jamais experimentar nem cansaço nem aborrecimento. Assim como o povo de Mênfis embelezava outrora a terra magnífica do Egito de pirâmides e de esfinges, assim Seikichi, com todo o seu amor, quis embelezar com seu desenho a pele fresca da jovem. Aplicou-lhe de imediato a ponta de seus pincéis de cor segurando-os entre o polegar, e os dedos anular e pequeno da mão esquerda, e à medida que as linhas eram desenhadas, picava-as com sua agulha que segurava na mão direita”.
    E quando se pensa que as vestimentas sagradas ou profanas, religiosas ou civis fazem o indivíduo entrar no espaço fechado do religioso ou na rede invisível da sociedade, então se vê que tudo quanto toca o corpo – desenhos, cores, diademas, tiaras, vestimentas, uniformes – faz alcançar seu pleno desenvolvimento, sob uma forma sensível e abigarrada, as utopias seladas no corpo.
    Mas, se fosse preciso descer mais uma vez abaixo das vestimentas, se fosse preciso alcançar a própria carne, e então se veria que em alguns casos, em seu ponto limite, é o próprio corpo que volta contra si seu poder utópico e faz entrar todo o espaço do religioso e do sagrado, todo o espaço do outro mundo, todo o espaço do contra-mundo, no interior mesmo do espaço que lhe está reservado. Então, o corpo, em sua materialidade, em sua carne, seria como o produto de suas próprias fantasias. Depois de tudo, acaso o corpo de um dançarino não é justamente um corpo dilatado segundo todo um espaço que lhe é interior e exterior ao mesmo tempo? E também os drogados, e os possuídos; os possuídos, cujo corpo se torna um inferno; os estigmatizados, cujo corpo se torna sofrimento, redenção e salvação, paraíso sangrante.
    Bobagem dizer, portanto, como fiz no início, que meu corpo nunca está em outro lugar, quer era um aqui irremediável e que se opunha a toda utopia.
    Meu corpo, de fato, está sempre em outro lugar. Está ligado a todos os outros lugares do mundo, e, para dizer a verdade, está num outro lugar que é o além do mundo. É em referência ao corpo que as coisas estão dispostas, é em relação ao corpo que existe uma esquerda e uma direita, um atrás e um na frente, um próximo e um distante. O corpo está no centro do mundo, ali onde os caminhos e os espaços se cruzam, o corpo não está em nenhuma parte: o coração do mundo é esse pequeno núcleo utópico a partir do qual sonho, falo, me expresso, imagino, percebo as coisas em seu lugar e também as nego pelo poder indefinido das utopias que imagino. O meu corpo é como a Cidade de Deus, não tem lugar, mas é de lá que se irradiam todos os lugares possíveis, reais ou utópicos.
    Depois de tudo, as crianças demoram muito tempo para descobrir que têm um corpo. Durante meses, durante mais de um ano, não têm mais que um corpo disperso, membros, cavidades, orifícios, e tudo isto não se organiza, tudo isto não se corporiza literalmente, senão na imagem do espelho. De uma maneira mais estranha ainda, os gregos de Homero não tinham uma palavra para designar a unidade do corpo. Por mais paradoxal que possa parecer, diante de Tróia, sob os muros defendidos por Hector e seus companheiros, não havia corpo, havia braços levantados, havia peitos valorosos, pernas ágeis, cascos brilhantes acima das cabeças: não havia um corpo. A palavra grega que significa corpo só aparece em Homero para designar o cadáver. É esse cadáver, por conseguinte, é o cadáver e é o espelho que nos ensinam (enfim, que ensinaram os gregos e que ensinam agora as crianças) que temos um corpo, que esse corpo tem uma forma, que essa forma tem um contorno, que nesse contorno há uma espessura, um peso, numa palavra, que o corpo ocupa um lugar. O espelho e o cadáver assinalam um espaço à experiência profunda e originariamente utópica do corpo; o espelho e o cadáver fazem calar e apaziguam e fecham sobre um fecho – que agora está para nós selado – essa grande raiva utópica que deteriora e volatiliza a cada instante o nosso corpo. É graças a eles, ao espelho e ao cadáver, que o nosso corpo não é pura e simples utopia. Ora, se se pensa que a imagem do espelho está alojada para nós em um espaço inacessível, e que jamais poderemos estar ali onde estará o nosso cadáver, se pensamos que o espelho e o cadáver estão eles mesmos em um invencível outro lugar, então se descobre que só utopias podem encerrar-se sobre elas mesmas e ocultar um instante a utopia profunda e soberana de nosso corpo.
    Talvez seria preciso dizer também que fazer o amor é sentir seu corpo se fechar sobre si, é finalmente existir fora de toda utopia, com toda a sua densidade, entre as mãos do outro. Sob os dedos do outro que te percorrem, todas as partes invisíveis do teu corpo se põem a existir, contra os lábios do outro os teus se tornam sensíveis, diante de seus olhos semi-abertos teu rosto adquire uma certeza, há um olhar finalmente par ver tuas pálpebras fechadas. Também o amor, assim como o espelho e como a morte, acalma a utopia do teu corpo, a cala, a acalma, a fecha como numa caixa, a fecha e a sela. É por isso que é um parente tão próximo da ilusão do espelho e da ameaça da morte; e se, apesar dessas duas figuras perigosas que o rodeiam, se gosta tanto de fazer o amor é porque, no amor, o corpo está aqui.

    O corpo utópico, Michel Foucault

sábado, 22 de junho de 2013

A honestidade e a verdade em Cézanne a dívida de Cézanne

Verdades e mentiras e a dívida de Cézanne

    Há um livro escrito na segunda metade do século passado
por um artista, cujo nome não mais me lembro, que se diz um
teórico da cor. (O livro sumiu, não sei como, perdi as referências).
O autor faz um resumo das diversas geometrias, desde a euclidiana
até as mais recentes, como a topologia e a geometria dos fractais.
Na introdução desta última ele diz: “A afirmação de que tudo na
natureza se compõe de esferas, cones e cilindros - a doutrina pragmática
de Paul Cézanne [...] não é correta. Nuvens não são esferas,
montanhas não são cones e troncos de árvores não são cilindros.”
Me acudam!!! O cara pensa em branco e preto!!! Coitado de Cézanne,
que pensava colorido.

    No livro Histórias das cores, de Manlio Brusatin, está dito que
o homem contemporâneo praticamente só percebe os contrastes
claro-escuro e quente-frio, daí resultar na reconstrução da paisagem
urbana com muitos cromados, neóns, brilhos, etc. para compensar
essa pobreza perceptiva. A cor está mesmo recalcada na contemporaneidade.
Precisamos sentir mais os coloridos para entendermos
os aforismos de Braque: “A verdade existe, inventa-se somente a
mentira.” “Em arte somente uma coisa tem valor: o que não se pode
explicar.” Quando o artista está inventando uma mentira? Mas estas
vingam, transformam-se em dogmas que, como observa Gauguin,
desorientam não somente os artistas como também o público em
geral. Da mentira ao dogma, e deste à conclusão, diluindo a mentira
na massificação, atropelando a liberdade de reflexão.

    Picasso diz: “Eu não procuro, eu acho.” Quem procura pode
achar alguma coisa, ou não achar nada, é claro, e sua afirmativa
tem um sentido. Um achar sem procurar nos leva a pensar em um
ato mecânico. Ou talvez em um pensamento sempre conclusivo.
Eu acho ou eu não acho. Mas Braque diz: “Um quadro está terminado
quando apagou a ideia” e “É preciso ter sempre duas ideias,
uma para destruir a outra.” Picasso inventa uma mentira. Braque
enfrenta o enigmático, mas não acha nada. Cézanne diz a Emille
Bernard: “Devo-lhe a verdade na pintura.” Não afirmou nem concluiu.
Assumiu uma dívida. Há uma contradição entre o pensamento
de Picasso e o de Braque. Mas antes disso observamos outra
contradição entre esses dois pintores. Do primeiro diremos que a
contradição ficou em um único nível de realidade e percepção. Na
medida em que se fechou em uma conclusão, afasta-se da verdade
em pintura, portanto. Do segundo diremos que a contradição se
anulou e se unificou, pois se direcionou no sentido da transparência
absoluta e, assim, o apagamento da ideia não a tornou conclusiva.
A verdade em pintura não é conclusiva. A dívida de Cézanne exclui
a conclusão.

    Em arte não há um fim no sentido de uma perfeição. Vemos,
então, a aproximação de Braque com Cézanne.

A honestidade e a verdade em Cézanne

    A uma pergunta hiperbólica de Emile Bernard, Cézanne respondeu
que não estava acostumado a muitas especulações teóricas.
Cézanne em verdade abominava a mentira, o embuste, e dizia que
“não basta ver, faz falta a reflexão”. Condenava o artista pelo afastamento
de seu verdadeiro objetivo. Cézanne sabia que a verdade é
honesta. E, mais, que é dificílimo alcançá-la. Ou, como diz Braque:
“A verdade não tem contrário.”

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Caravele e bandeira do Brasil, America Futebol Clube e Goleiro/


Óleio sobre tela, 1982, 46 x 55 cm

José Maria Dias da Cruz, óleo sobre tela - 55 x 46 cm


Jose´Maria Dias da Cruz - óleo sobre Tela - Ferro de engomar, Bigorna e Peão


Escalas Cromáticas (Leonardo da Vinci), O Pansamento Plástico ( Mário Guerreiro), Nomes (Manuel Antônio de Almeida)






Escalas cromáticas, quantidades.

            Para Leonardo são seis as cores simples, muito embora, diz
ele, os filósofos não considerem nem o branco e nem o preto como
cores, pois segundo eles, uma é a totalidade delas e outra a ausência.
As cores simples, então, segundo Leonardo, são seis e obedecem
a uma ordem: a primeira, o branco para as luzes; a segunda, o
amarelo; a terceira, o verde; a quarta, o azul; a quinta, o vermelho;
e a sexta, o preto para as sombras. Fala assim de uma passagem
gradativa, com uma ordem, entre um claro e um escuro passando
por valores cromáticos.

            Nas passagens dos diversos intervalos há uma relação que é
sempre a mesma. Somos levados a pensar quantitativamente, na
medida em que se estabelece uma noção de ritmo baseado em uma
recorrência pressentida. Em uma escala com seis intervalos temos
que o primeiro é mais claro que o segundo, na mesma medida em
que o segundo é mais claro que o terceiro, etc.

            Se considerarmos as cores concretas adjetivas, e também
livres do poder das palavras, teremos vários claros, vários amarelados,
esverdeados, azulados, avermelhados e escuros. Serão quase
infinitas as escalas que poderíamos construir. O que vale dizer, são
quase infinitos também os coloridos. Para nós, homens, apenas
uma fração deles nos é dada à percepção.

O pensamento plástico

            Falamos anteriormente de um pensamento plástico. Podemos
constatar um conflito entre o discurso verbal e a percepção
visual. O filósofo Mário Guerreiro indaga se “devemos concordar
com a ideia de que o percebido só se faz passando pelo crivo da
nomeação, como se a linguagem estivesse filtrando a percepção,
canalizando-a no sentido de só poder captar certos padrões em
detrimento de outros.” Digo que o pintor tem que lidar com as
duas abordagens das cores. Mas, pensando plasticamente, não faz
sentido a nomeação. Por exemplo, um terra de sombra queimada,
um vermelho de cádmio claro, um magenta, um castanho, um rosa
claro são todos avermelhados. E, assim, plasticamente os diversos
azulados, amarelados e esverdeados e os claros e escuros, as cores
simples de Leonardo além dos brancos e pretos.

            Se observarmos, lado a lado, dois vermelhos e dois verdes,
notaremos, tanto nos primeiros como nos segundos, desvios para
os amarelados ou azulados. Se repetirmos a experiência com dois
amarelos e dois azuis, notaremos que ambos os pares se desviam
para os avermelhados ou esverdeados. Dessa forma não mais precisamos
nomear as cores a partir de seus específicos matizes. Um
magenta será para nós um vermelho-azulado, um terra de sena
queimada, um vermelho-amarelado. E o mesmo para os diversos
amarelos ou azulados. Nossa percepção ficará, se livre das nomeações,
mais aguçada. Para fins práticos podemos construir um
diagrama em quadrantes a partir dessas simples percepções que
poderão representar vários coloridos. Abole-se, portanto, um círculo
cromático absoluto, ficamos mais livres para observarmos as
sutilezas cromáticas de Cézanne e notamos sua singularidade face
a seus contemporâneos.

            Há ainda os contrastes simultâneos. Uma mesma cor pode
ter inumeráveis tonalidades conforme aquelas de suas vizinhas, a
qualidade da luz, os rompimentos contínuos, etc. Assim poderemos
dizer que, plasticamente, temos os claros, os escuros, os avermelhados,
os esverdeados, os amarelados e os azulados – as cores
simples de Leonardo. Claro, um pensamento plástico não elimina
para o pintor o pensamento verbal. Ele tem que saber como lidar
com os dois. E certamente com outros, como o pré-lógico, o táctil,
o auditivo, o mágico, etc.

Nomes

            Um trecho de uma crônica de Manuel Antônio de Almeida,
denominada “Nome”, pode nos propor algumas reflexões, por isso
transcrevo-o.

“Dizem os gramáticos, gente detestável nestes tempos de
discordâncias, que o nome é uma voz com que se dá a
conhecer as coisas. Quando nos tempos de colégio minha
memória, rebelde às exigências do decurião, recusava
guardar no seu arquivo esta triste definição, é que meu
espírito, agora o conheço, pressentia-lhe já todo o absurdo
e falsidade. Nunca em verdade uma mentira tão grande se
escreveu em letra redonda.
Aquilo que as coisas menos se dão a conhecer é pelo seu
nome. O nome é hoje, e não sei se o deixou de ser em
algum tempo, a primeira mentira de todas as coisas: é
como o cunho do pecado original impresso sobre tudo
que existe. A tradição da torre de Babel parece-me errada
até certo ponto; o que ali se confundiu não foram as
línguas, foram os nomes das coisas.”