A lógica do cinza
sempiterno
Há coisas, penso,
que merecem nossa atenção. Quando
Cézanne fala de um cinza que reina em toda natureza e, quando
se refere a sua própria e a natureza em si, em um diálogo com
Emile Bernard, aborda uma questão bem maior, a do olho como
limite. Nesse mesmo diálogo refere-se também a uma lógica que
não tem nada de absurdo. Perguntamo-nos, então: qual a lógica do
cinza sempiterno? Parece-me mais complexa do que a do terceiro
incluído, tantas são as variáveis, e ainda se incluem nelas o
acaso e
o enigma. Veja-se o que Braque disse: “É o acaso que nos revela a
existência.” Importante, também, são as potencialidades diversas
dos cinzas sempiternos.
Os cinzas
sempiternos são causa e efeito dos coloridos, são
uns pré ou pós-fenômenos. Como causa, geram vários coloridos.
Neste caso são uns pré-fenômenos, na medida em que ocorreram
quando dos aparecimentos desses coloridos. Os coloridos, por sua
vez, são a causa dos cinzas sempiternos. Neste caso, eles, esses
cinzas,
são uns pós-fenômenos, e temos que considerar o rompimento do
tom que, como vimos, se dá na passagem do tempo e, assim, nos
permite pensar na possibilidade de pressentirmos a manifestação
dos cinzas sempiternos posteriormente.
Pensamos em um
cinza onipresente, o qual também não
existe – está inteiramente fora de nosso mundo face a nossos
limites
–, que seria a causa e efeito de todos os cinzas sempiternos
e, por consequência, de todos
os coloridos. Por isso Cézanne
diz que pinta somente uma seção
do espaço, ou seja, apenas um
colorido. De minha parte digo que minha vida é balizada entre
meu nascimento e morte, o que não exclui, obviamente, outras
vidas. O cinza onipresente não está somente no mundo balizado
entre meu nascimento e morte, mas continua nele independente
desse balizamento. Diremos então que ele é como um cinza
sempiterno que, sem nenhuma mágica linguística, sustenta a sua
própria lógica. Ou então um princípio, ou, se quisermos, somente
um primeiro. Permite-nos, apenas, um entendimento da lógica
do cinza sempiterno.
Diremos que o
cinza onipresente está em um local indeterminado,
o que não implica em sua infinitude. Não temos como provar
a existência de todos os coloridos infinitos, daí pensarmos em um
colorido total no qual se tem, obviamente, diversos coloridos como
frações. Como centro, o cinza onipresente é apenas inatingível,
tanto como nos cinzas sempiternos. Ambos são enigmáticos no
sentido que nos são interditados...
No que se refere
ao acaso, podemos associar um colorido a
um estado de entropia máxima e à passagem da ordem ao caos, e
deste novamente à ordem, como fenômeno temporal. O acaso seria
então uma situação-limite a partir da qual poderemos prever um
acontecimento, dentro de certa circunscrição de possibilidades.
Poderíamos
dizer que o acaso seria, assim, quase que previsível, o que
vale dizer que poderíamos contar com ele dentro de certo limite.
Nesse sentido, o acaso nos revelaria uma existência, permitiria
que
tivéssemos uma ainda difusa percepção dela entre várias possíveis
e, também, de sua realidade entre várias possíveis.
Podemos
exemplificar melhor essa questão do acaso referindo-
nos à última pincelada que o pintor executa sobre um quadro,
questão que será abordada mais adiante com mais detalhes. É uma
pincelada-limite que mostra a visibilidade do quadro em dado
momento como se chegasse a um estado de entropia máxima.
Uma última pincelada seria como um acidente do acaso. Face à
dinâmica das cores, imporia um recomeço, como se um outro
quadro tivesse que ser realizado no sentido de estabelecer uma
outra ordem. A rigor um quadro, conforme for concebido (que
não anuncie sua própria morte, por exemplo), nunca chega a um
fim por ele mesmo face à dinâmica das cores. Assim há o momento
em que o pintor percebe que chegou a um nível tal que decide
abandoná-lo. O recomeço em Cézanne se dá em um outro quadro,
ou, metaforicamente, em uma outra montanha. Podemos antever
nesse gesto o mito de Sísifo.
É bom citarmos agora um e-mail de Milton Machado,
transcrito
no livro sobre minha obra Interiores de Reflexão, numa troca
de mensagens entre ele, Luiz Camillo Osório e eu. Note-se nesse
e-mail a expressão últimas
pinceladas. Essa é uma questão que
desenvolvo em outras anotações.
Queridos
Achei
que não voltaria a escrever; mas a intervenção do Zé
Maria
é tão rica que não resisti a essas últimas pinceladas.
E o
não-lugar da terceira cor? E a atualidade da terceira
pintura?
Para
fechar nosso triângulo amoroso e minha colaboração
a
esse papo de varar madrugadas, e ainda encorajado
pelo(s)
um-dois-três Poussin(s), Cézanne(s), José(s),
Marias(s),
recorro a uma, duas, três citações: “Devemos
dizer
que o primeiro não é o primeiro se não houver,
depois
dele, um segundo. Consequentemente, o segundo
não é
apenas aquilo que vem, como algo que chega com
atraso,
depois do primeiro, mas que é o que permite ao
primeiro
ser um primeiro. Assim o primeiro não tem
como
ser um primeiro por sua própria potência, por seus
próprios
meios: o segundo deve ajudá-lo com toda a força
de
sua demora. É através do segundo que o primeiro é o
primeiro.
A ‘segunda
vez’ tem, portanto, certa prioridade sobre a
‘primeira
vez’, pois está presente, já desde a primeira vez,
como
condição prévia para a prioridade da primeira
vez
(sem que ela seja mesma, evidentemente, uma
‘primeira
vez’ mais primitiva): daí que a primeira vez é, na
realidade,
a ‘terceira vez’.” (Vincent Descombes, Les Même
et l’Autre: quarentecinq ans de philosophie f rançaise (1943-
1978),
Paris, Minuit, 1979, p. 170)
Outra
ou a mesma:
“É a
ideia mesma de uma primeira vez que se torna
enigmática.
Portanto, a demora é o que inicia.” (Jaques
Derrida,
citado por Hal Foster, The Return of the Real, The
MIT
Press, Cambridge 1996, introdução, p xii.)
Outra
ou a mesma:
As
ações continuadamente transferidas (não adiadas) são
a
lógica e são o enigma. Da Cruz, depois de Dias, depois
de
José, depois de Maria?
Abraços
finais, iniciais.
Milton
Um pequeno resumo
O rompimento de
um tom é fácil de observar. Vê-se facilmente
a pós-imagem sobre um tom, modificando-o. Já um outro cinza
sempiterno surge como uma grande pós-imagem do colorido no
quadro. Aparece como certa atmosfera azulada, possivelmente por
contraste. A lógica desse cinza depende da experiência do artista
que
observa vários outros fenômenos. Como diz Cézanne, depende da
escolha das cores exatas e aqui enfatizamos o termo escolha. Entre
muitas, o pintor elege uma. Conquista certa liberdade, não toda;
tudo vai se tornando mais complexo, como observou Cézanne,
pelas reflexões que da experiência decorrem. Percebe-se que
algumas
cores surgem de um cinza ganhando cromaticidade, como
também que outras, ao se romperem, perdem cromaticidade, e esse
perde e ganha ocorre no tempo. Pela duração bergsoniana, nosso
conhecimento também tende a um crescimento. Mas esses
conhecimentos
nos levam a sentir nossos limites. Daí denominarmos os
fenômenos cromáticos como enigmáticos, não obstante uma lógica
ser experienciada. A pintura torna-se então um campo de estudos
que tangencia outras áreas do conhecimento.
Um estudo profundo dos contrastes, dos rompimentos dos
tons, e da escolha justa das tonalidades das cores é fundamental
para
a compreensão do cromatismo cezanneano. Aos críticos, marchands,
amadores
de arte e até mesmo artistas, exige-se atenção.
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