A Imagem construída na pintura de José Maria Dias da Cruz
[...]
Melhor do que ninguém, Dias da Cruz fala assim de sua obra:
“Sempre parto do princípio que a pintura é a transposição de uma imagem
construída em cima de uma idéia. A partir dessa idéia que transpomos, podemos
fazer outras retransposições , outros desdobramentos. Relacionando apenas seus
problemas conceituais, paralelo às sua preocupações formais, estaremos dando
elementos para decodificação da obra e, por conseqüência, para suas várias
interpretações.”
No caso das pinturas de Dias da Cruz, objetos aparentemente
sem importância (peças de jogo de xadrez, cartas, castiçais com velas, uma
embalagem em formato de tubo, pincel, dos de sua verdadeira propriedade e
função na realidade concreta, são transpostos para uma realidade percebida e
idealizada pelo artista. Desse modo, a realização no plano das figuras citadas
dá-se, segundo ele próprio define, conforme o grau de envolvimento que,
conscientemente, queira lhe dar.”
Em outras palavras, esse desenvolvimento tanto pode
concorrer no limite de seu raciocínio para manter as qualidades permanentes que
os objetos em si apresentam na realidade concreta, quanto determinar
desdobramentos em diferentes figurações que o artista percebe. Uma peça de xadrez,
então, pode ser transposta para uma tela como um objeto individualizado, em
representação quase fotográfica, e ter sua realidade reformulada ao ser
transposta para uma realidade contrária e difusa.
São muitos os artifícios de Dias da Cruz para resolver os
problemas conceituais e preocupações formais de seu método de elaboração de um
quadro. Por vezes esse objeto individualizado, com a divisão espaço em
sucessivos planos e sofrendo deslocamentos de eixo, sem perspectiva, e até
invertido e suspenso, encoberto por plano, prolongado a uma imagem virtual
através de um espelho, visto como tal ou substituído por outro objeto do mesmo
parentesco formal volta e meia é esquematizado como um objeto não
individualizado, reduzido a linhas tracejadas, mas perfeitamente identificado
segundo sua espécie e, por último, gera uma abstração não diretamente e sim por
associação.
Retranspostas em superfícies, sem perspectiva, estas
figuras, escapando do primeiro plano da realidade concreta, buscam a fronteira
onde podem ser vistas ou percebidas alhures como uma realidade percebida, mas
de significado abstrato e por assim dizer amplo e suscetível a interpretações
de várias ordens. Para Dias da Cruz, já que sempre se transpõe uma realidade
percebida, nunca uma concreta, “pelas diversas transformações e desdobramentos
dessa realidade concreta, operadas pelo pintor, quando de sua transposição,
chega-se a um ponto de abstração ou entrecruzamentos de linhas de raciocínio
tal que o acaso passa a ser um componente desta operação e ao mesmo tempo, o
limite desse pensamento.”
Para compreender a permutação dos elementos dispersos dentro
do método cerebral de Dias da Cruz é necessário transpor o plano da realidade
concreta do objeto, conhecer as fronteiras de sua imponderabilidade, onde pode
adquirir o significado de uma abstração de uma imagem que ilude, para além da
aparência, sem perder as qualidades que o individualizam. Organizados como
“naturezas mortas”, são elementos que se combinam durante o processo de
conhecimento do artista para destacar e atenuar a contradição de duas realidades
muito próximas; a palpável e indizível, a que se toca e esconde a parte
invisível que sentimos e nem sempre alcançamos. A primeira existe a partir de
um discurso articulado pelo artista sobre aspectos da pintura. A segunda
ultrapassa o pensamento do pintor e formula outros significados de natureza
primordial, aqueles que preferencialmente ignoramos porque estão além de nossa
inteligência e compreensão. Mas coexistem conosco à sombra de toda construção,
talvez como contraponto inimiga que sufocamos quando vem à tona.
Do ponto de vista da formulação estética, esses
quebra-cabeças propõem verdadeiras equações que buscam resolver questões
formais. Porém o impacto casual do espectador se concentra na relação ambígua
que Dias da Cruz provoca com a representação, aproximando elementos de projeção
duradoura com transitórios, no sentido de reconhecer o absurdo da realidade
concreta e, por extensão, modificar os conceitos da psicologia de projeção do
homem.
Guido Goulart
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