Harmonia e desarmonia
Complexo agora é considerarmos harmonia e desarmonia
levando-se em consideração outras dimensões cromáticas além
das espaciais, como as temporais, as quais podemos observar pelo
rompimento do tom não definido mais como misturas pigmentares.
Também excluímos a classificação no universo das cores dos pretos
e brancos e suas gradações como cores neutras. Não me parece
lógico, dentro de um pensamento plástico, considerar essas cores
como neutras ou não-cores.
Diremos, então, que harmonia equivale a movimentos simultâneos
de convergência e divergência considerando-se o cinza
sempiterno. Harmonia é, portanto, uma situação em si dinâmica
que se dá no tempo e no espaço. Assim descarta-se, para uma aproximação
do conceito de harmonia, o termo relação. Harmonização
não depende, como veremos, de uma relativização. Lidamos
com várias dimensões temporais e espaciais, as cores efetivas, e as
atemporais, ou seja, as cores de lembrança. Podemos testemunhar
situações com mais de duas e menos de três dimensões, ou com
mais de três e menos de quatro, considerando-se o rompimento do
tom como um fenômeno espacial com uma interferência temporal.
O que podemos dizer é que há uma busca de convivência entre as
cores harmonizadas dinamicamente que engendram um colorido
também em si dinâmico.
Um outro fator importante para se compreender toda a complexidade
das harmonias cromáticas é a potencialidade do cinza
sempiterno, malgrado sua inexistência. Como esse cinza sempiterno
é causa e efeito das cores e dos coloridos, estes são igualmente
potencializados quando consideramos suas condições espaciais e
temporais.
Podemos exemplificar, dentro das limitações do discurso
verbal, afirmando que duas cores, em seus respectivos aspectos de
convergência ou não entre si, se harmonizam pela lógica do terceiro
incluído ou da do cinza sempiterno.
Queremos dizer que a harmonia se dá também no tempo.
Se tivermos as cores A e B, ao se romperem, cada uma ou mais
ou menos, incluirão os cinzas sempiternos. Surge uma dinâmica
harmônica. Então vejamos. O cinza sempiterno é um ponto que
não possui nenhuma dimensão, mas possui uma potência latente,
pois é a causa e efeito das cores e dos coloridos. Quando as cores
A e B naturalmente se rompem, ativam suas respectivas opostas, e
engendram movimentos em direção ao cinza sempiterno. Este, por
sua vez, pelos movimentos de divergência de seu centro, engendra
movimentos no sentido das cores A e B, articulando igualmente
suas opostas. A harmonia, então, não se dá pela relação estática
entre essas duas cores, mas pela lógica do bailado entre as cores,
suas respectivas opostas e os cinzas sempiternos. Harmonia, em um
sentido geral, é a totalização de um bailado das cores. Mas como
não se podem descartar as cores de lembrança, deparamo-nos com
as nossas limitações. Há a duração bergsoniana, que não pode ser
descartada. “A intuição é a alma da verdadeira experiência, o ato
que nos coloca dentro das coisas; não um ato estático, mas uma
atividade viva, a própria duração da realidade.”
Eu diria que essas questões levaram Cézanne à dúvida quando
afirmou que jamais alcançaria o que tanto procurara. Mais uma
vez citamos Braque: “É um equívoco traçar um contorno para o
inconsciente e situá-lo nos confins da razão.”
Para uma compreensão desses fenômenos temos que descartar
o círculo cromático absoluto, cuja lógica baseia-se nas misturas
pigmentares, abandonarmos a nomeação das cores que as
tornam limitadas, estáticas e abstratas substantivas e confiarmos
em nossa percepção e intuição – como dizia Poussin, no saber do
olho. Daí Cézanne ter afirmado: “Quero refazer Poussin direto da
Natureza.”
Quando Cézanne disse que era um primitivo pelas coisas
novas que descobrira, afirmou também que a harmonia se dá por si
só. Estava intuindo uma dimensão espacial e temporal no processo
de harmonização.
Harmonia considerada como simetria implica em uma situação
estática e também em um único nível de realidade e percepção,
portanto simplesmente tanática na medida em que sendo estática
é um fim autodestrutivo. Considerando-a dinâmica diremos baudelairianamente
que a cor é simultaneamente o prazer e o pecado,
ou erótica e tanática, como afirmei em meu livro A cor e o cinza.
Sendo erótica e tanática há a possibilidade de imaginarmos uma
“ressurreição”, esta no sentido de se resolver. Há a ordem que leva a
um estado de confusão que se reorganiza, ou, como digo metaforicamente,
ressuscita, por acontecimentos que incluem o acaso. Como
vimos anteriormente, pela lógica do terceiro incluído, anulando a
contradição sem ferir o axioma da não contradição, podemos intuir
a zona do terceiro excluído, ou seja, do sagrado, do inviolável, ou,
para nós, homens, do eternamente interditado. Assim, também
interditada, a perfeição.
Já uma desarmonia no sentido de uma divergência, atemporal
e estática, rompe com um sentido de unidade e exclui as dimensões
temporais. Mas esta desarmonia, considerando-se os movimentos
simultâneos de convergência e divergência, pode tender para uma
harmonização tanto pela lógica do terceiro incluído, como pela lógica
do cinza sempiterno. Harmonia, pensada como uma abstração
e daí para uma coisa real no mundo, seria então um congelamento
estático que descartaria as dimensões temporais das cores e dos
coloridos.
Assim, harmonia é um fim no sentido de uma perfeição. O
teólogo francês Mauritain disse que Deus não está no princípio,
está no fim. Deus seria para esse teólogo a perfeição. Mas para nós,
homens, essa perfeição é interditada. Diria então que está aí novamente
o mito de Sísifo. A perfeição pode ser tanática. Sísifo não
venceu a morte, ou, se quisermos, não resolveu o enigma.
Do livro O cromatismo cezaneano.
Nenhum comentário:
Postar um comentário