quarta-feira, 31 de julho de 2013

GRÜLP VISITA O BRASIL Gilherme Bueno



GRÜLP VISITA O BRASIL

Em uma fábula intitulada O conto da cor, escrita no início do século XX, o pensador alemão Georg Simmel contava a saga de uma cor que, inominável, perambulava pelo mundo em busca de si mesma. Sua dificuldade residia em jamais encontrar seu par, encontrando abrigo – primeiro provisório e depois definitivo – na paleta de um pintor parisiense e na opala. Poderíamos imaginar, sem muita margem de erro, que José Maria Dias da Cruz também adotou Grülp. O pintor dedica-se obstinadamente há alguns anos em enveredar pelos caminhos e descaminhos da cor. Talvez devamos evitar dizer que ele enfrenta seus mistérios, na medida em que se é razoável duvidar até que ponto as cores ainda lhe são um enigma; Seu desafio parece outro: partindo da noção universalmente reconhecida da cor como um valor sempre relacional, seu problema reside em inquiri-la a partir de três aspectos: a relação entre sua presença e a forma segundo a qual se apresenta; por extensão, como ela é capaz de gerar espaços dentro da tela conforme salta ou se funde às suas vizinhas; e, por último, como qualquer cor (desdobrando a lição de Cézanne) pode constituir-se simultaneamente como luz e cinza, sem que isto a condene à escravidão do tom ou renuncie a uma vibração singular.

Esta hipótese do cinza (o artista há anos examina um conceito formulado por ele mesmo nomeado cinza sempiterno) traz uma série de bons desafios à superfície da tela. Um deles, por exemplo – e, mais uma vez, dialogando com uma história da pintura moderna – consiste em suspender, dentro dela, o lugar onde reside a cor. Afinal ela (a cor), explicitando sua textura e, mais do que isso, existindo como uma luminosidade cinza (desfaçamo-nos do preconceito de que o cinza além de não ser cor é uma cor morta), estabelece um plano no qual tudo pode ser figura ou fundo. Trata-se de, por este estratagema, colocar na fronteira a capacidade da pintura situar-se entre literalidade e ilusão, o que se percebe pelas transparências propositalmente dúbias criadas pelo pintor, uma vez que elas, pela articulação dos planos, sugerem camadas interpostas, mas, pela textura das cores, empurram-nos simultaneamente para, senão o primeiro plano, aquele intermediário, no qual (somos tentados a pensar) Grülp montou sua tenda.

É, portanto, tal corporeidade da cor que pauta as obras de José. Quando insistimos no seu necessário vínculo com uma tradição moderna, fazemos-no menos para situá-la historicamente (apesar de todas as cores terem suas respectivas histórias e estórias) do que para perceber como este seu virtual – sublinhe-se esta palavra, no que ela quebra uma condição permanente, estática – cinza acaba por promover uma coincidência indissociável entre plano pictórico e plano cromático, no qual o deslocamento da cor do tubo para as tramas da tela espelha sua maleabilidade em reinventar-se. Como se Grülp se decidisse por uma longa, quiçá definitiva, estada no Brasil, ao encontrar seu par nas telas do artista.

Guilherme Bueno 

 

A lógica das cores e dos coloridos



A lógica das cores e dos coloridos

Sêneca afirmou que em cada dez pintores apenas um é colorista. A cor é enigmática, impossível de ser racionalizada. Já a forma é bem racional. Isso explica o recalque das cores e dos coloridos em nossa cultura. E os pintores coloristas, apesar deste enigma, sabem que as cores e os coloridos têm uma lógica. Ocupo-me em meu trabalho em estudá-las e enfatizo mais os coloridos. E sei, também, que os pintores coloristas, sobretudo na modernidade e contemporaneidade, se ocuparam muito mais das cores do que dos coloridos. Veja-se Albers, Itten, Delaunay,  Kandinky, Matisse e outros.  Que se tenha ocupado dos coloridos temos Klee ao pensar nos coloridos dinamicamente. Nos meus estudos descartei um círculo cromático absoluto que classifica as cores em primárias e secundárias e concluí que há a cor abstrata substantiva, que subsiste por si mesma e é uma idéia platônica, e a cor concreta adjetiva, cuja condição é ser  no colorido. E me vi em consonância com as mais avançadas descobertas da ciência, como a geometria dos fractais, a teoria do caos, as estruturas dissipativas,  algumas descobertas da biologia as quais afirmam que a vida é um processo de que não exclui  a morte, ou seja, há um estado de entropia. Assim, fui compreendendo que há uma lógica nas cores e nos coloridos não fazendo um trabalho que fosse apenas ilustrações dessas teorias. Tento fazer da arte uma possibilidade de um pensamento. E creio que é até possível pensarmos em uma geometria das cores. E é isto que venho tentando mostrar.

José Maria Dias da Cruz
Janeiro de 2013

Ângela Montez – Sem Fotografias



Ângela Montez – Sem Fotografias



Ausência


sentar sua
            imagem amassada
diante de um velho
                        espelho
e reconhecer palmo
                        a palmo
o reflexo
            que falta

os bairros não aportarão
                        nunca
as ruas correrão
                    agitadas
tudo estará fora de lugar
nesse mapa

o passado é um labirinto
                        de veias
                        estreitas

e o homem um pássaro
                            com medo

estrangeira do tempo
             do toque das molduras
                  douradas

esquecidas dos ventres
da polairóide

ao sabor da pele
            sem fotografias
inventa

um espaço novo
            desesperado
            plástico

que seja corpo
              mas que não seja espelho
            morto

Inventário


   Em bandeira
                    somos
marchas
          em luvas brancas

           
  o destino é
         o mesmo
de mil seiscentos e qualquer um

          desvendar
                        ou
                    estupro

as terras
            aos ganhos
as índias

       (araras verdes
                     bonitas
em estampas colegiais)

os índios
balouçando
            em nosso peitos
        paternais

abrir caminho
            é
        antes de tudo
      destino

  com lanças hímens
arcabuzes
        e sobrenomes
              trançados
em quatrocenséculos
                        e tais






a linhagem
       dilui-se no esperma
                  herdado
de El-Rei

       sobre o nome
                 pesam
poderes mágicos
magistraturas
a chave do tamanho
para qualquer
                   figura

(caber
       significa
rodar pé ante pé
sobre si mesma
numa bailarina
                  ofensa
aos desejos)

não há esquinas para cansaço
                           não há
o saber-se vendido
                      gritado
nas fruteiras
não há o século errado

exprimido
o sumo é o mesmo
mesmice
     do eterno descompasso cristão
                            dos espelhos

as saias as tangas
os sacristãos os vigias
os arrolados
e enroladores

bandeiras
que se vendem
                como bananas
nesta
cidadania

A Poesia como Antídoto



A Poesia como Antídoto   (Promenade[R1] )


                                                           ...temos a Arte para não morrer da Verdade.
                                                                  Friedrich Nietzsche1

Em Breve, o pós-humano / ensaios contemporâneos, livro  de 2003, Jair Ferreira dos Santos diz de forma definitiva:

A contaminação do texto pela cultura visual constitui, é possível, o estágio final de um processo histórico: a despotencialização da palavra. Preterida pela imagem, a palavra está nos deixando. Desertaram para sempre a palavra sopro divino que se fez mundo, a palavra sagrada que inspirava a verdade, a palavra  mágica das narrativas míticas, a palavra profética que decidia o futuro, a palavra mantra que conduzia à ascese, a palavra enigma e revelação do sábio, a palavra prestígio da maldição, a palavra divinatória dos vates, a palavra inaugural dos poetas. Ficamos com a Informação. À degradação do Verbo em Informação corresponde a desfiguração do Sagrado no Profano, assim como a palavra puro signo, sem espessura simbólica, aponta para a anexação da Cultura pela Economia, do Pleno pelo Vazio. Sem as energias do silêncio e do invisível, à palavra informação resta ser legenda e sintaxe das imagens. E entregar-se ao jogo, à prestidigitação, na era do entretenimento, que é, vá lá, a festa ritual da desaparição.  (p.162)

A triste verdade desse texto me remete a alguns versos do poema Pão e Vinho, de Hölderlin:

Mas amigo, chegamos muito tarde. Os deuses, de fato,

Vivem ainda, mas lá nas alturas, em outro mundo.

(...) ..., e só
De raro em raro o homem suporta a plenitude do divino.

(...) : e para que poetas num tempo de indigência?2

Para que poetas? Para que a indigência do tempo não nos mate, ou não mate em nós a possibilidade do encantamento.
As “energias do silêncio e do invisível” vêm sendo sufocadas pelo espetáculo de um realismo hipertrofiado e escatológico, que impregna tanto a televisão quanto o cinema e grande parte da literatura. A  banalização da violência invade a arte de narrar e a sexualidade vem sofrendo a profanação sistemática de um  voyeurismo disfarçado de naturalismo. E o amor, que já foi descrito como a tarefa mais difícil que nos foi imposta3 , porque mesmo depois de saber de tudo, seu mistério continua intacto, como disse Clarice Lispector, foi destituído de sua magia e de sua emoção.  Porque mutilamos  a realidade do amor quando a separamos de toda a sua irrealidade4. A irrealidade vital da fantasia e, por mais assustadora que nos pareça, a presença “real”   da morte. Não é  por acaso que  as histórias de Tristão e Isolda, Paolo e Francesca,  Romeu e Julieta, Cyrano e Roxanne, e tantas outras, incluem a morte. Pois a vida em seu estado de exaltação, ou em seu ponto culminante -  o amor -  sempre evocou no imaginário dos criadores de mitos o seu contrário, ou  sua complementação -  a morte. Não costumamos chamar o próprio êxtase sexual-amoroso de petite mort?

Você não ouviu dizer...

(...) que o amor, quando braços e pernas entrelaça,
e o sono, quando a noite da vida é fraturada,
e o pensamento em vagos confins do mundo pendurado,
e a música, quando quem canta é o amado 

... é a morte?5

Nossa cultura, porém, não  tolera a idéia da morte e procura escamoteá-la, não aceita o envelhecimento e exalta uma juventude eterna e falsa.   Talvez por isso  [R2] tenham se afastado do imaginário contemporâneo “as energias do silêncio e do invisível”, que alimentam   tanto o amor quanto “a palavra  inaugural dos poetas” e a própria vida. Pois como a música, que não existe sem suas pausas,  a poesia é som e sentido...no silêncio. No silêncio que antecede e sucede as palavras,  que as circunda. Do mesmo modo, a morte circunda a vida e o finito é envolto de infinito. 
Ora, podemos imaginar  que a palavra da poesia  nasce na linha de fratura entre o finito e o infinito e por isso [R3] sugere mais do que diz, evoca mais do que afirma, projeta, irradia ,  faz vislumbrar. É pressentimento e promessa. Começo. Eterna criação. Como se tentasse inserir  no finito do poema a lembrança do infinito de onde vem.
Por isso ressoa.
Diz Octavio Paz,  num pequeno poema em homenagem a Ptolomeu:

         Hermandad
soy hombre: duro poco
y es enorme la noche.
Pero miro hacia arriba:
las estrellas escriben.
Sin entender comprendo:
también soy escritura
y en este mismo instante
alguien me deletrea.


Infelizmente, anúncios luminosos e luzes de mercúrio já não nos permitem enxergar as estrelas que escrevem. Só as crianças de antigos jardins podiam dizer, numa encantadora síntese:

Ih! Papai! Como as estrelas estão cheirosas!*

(* como disse, aos cinco anos, uma das filhas do físico brasileiro Joaquim Costa Ribeiro )

No entanto, quando nossa visão não se encontra fragmentada pela poluente sucessão de imagens da televisão, ou quando o som do mundo deixa de ser o do trânsito e dos celulares,  ainda é possível reencontrar-se com a natureza, ou encontrar-se consigo mesmo diante dela.
Eis aqui um exemplo de alguém que em devaneio em frente ao mar, deixando-se possuir por um sentipensar poético,  produziu versos pela primeira vez:

  Meu olhar desliza longe sobre o mar
  Os pensamentos fogem e voam
  No eterno balanço das ondas.
  Felicidade sem peso.

  Então vem a queda sobre a pedra!
  Quem me ensina a voar
  O Tempo?
  Ou  ele tudo me quer roubar?

Meu olhar desliza longe sobre o mar.. 5


O longe da poesia é o universo inteiro. Pois,

O caminho mais curto
De nós mesmos
Para nós mesmos
É o Universo. 6

Como se houvesse um só poeta, Fernando Pessoa diz  em seu “Acordar da Cidade de Lisboa”:

... E a minha ambição era trazer o universo ao colo
Como uma criança a quem a ama beija.

Em outro “longe”, Boris Pasternak diz:

É impossível atravessar a estrada
Sem chapinhar no universo inteiro.


 Marina Tsvetáieva, a grande poeta russa sacrificada pelo stalinismo, acreditava que a poesia é una em todas as suas manifestações,  que não existem poetas, mas “um poeta, sempre o mesmo, do começo ao fim do mundo, uma força que se reveste com as cores dos tempos, das tribos, dos países, das línguas”7...  e que renasce sem cessar. E antes dela, em seu ensaio sobre Rilke,  outra russa, a que  encarnou como ninguém o espírito da Belle Époque – Lou Andreas Salomé – afirmou que

...quanto mais nos afastamos da consciência clara,
mais profundo é nosso mergulho na escuridão da alma:
essa verdade é incontrolável quando escutamos o poeta
que nos habita, o poeta que existe em cada um de nós.8


 Podemos dizer ainda , à luz de  Lou Salomé e de Marina Tsvetáieva,  que existe, de fato,  em cada um de nós, mais ou menos adormecido ou sufocado  pela poluição do real,  um demiurgo, um poeta em cujo espelho mágico se concentram numa só figura, dançantes e capazes de cantar o mundo, os rostos de todos os poetas.

Espelho que em Borges tem um sentido ainda mais rico:

A veces en las tardes una cara
Nos mira desde el fondo de un espejo
El arte debe ser como ese espejo
Que nos revela nuestra propia cara9

Seria essa a missão do poeta – a de estabelecer e manter o contato com as profundezas do Ser, com a vida e a morte, para mostrar-nos a nossa cara, o que somos, isto é, seres de imaginação, os únicos capazes de poiésis em toda a “Criação”.
Na era da imagem e da informação instantânea, contudo, há um descaso não apenas  pela poesia, mas também  pela palavra escrita e pela língua culta, e uma desconfiança em relação ao  experimentado e sentido, ao construído e  ao “antigo”, que nos impedem de enxergar o que revela o espelho da poesia. No entanto, Adolf Loos, um dos mais revolucionários inovadores da arquitetura moderna, não hesitou em   afirmar que só se deveria transformar o modo antigo de construir, por exemplo, se isso significasse um melhoramento,  pois  “a verdade, mesmo quando é velha de muitos séculos, tem mais relação íntima conosco do que a mentira que anda ao nosso lado”10
No tempo de indigência em que vivemos, a jovem verdade que a palavra inaugural dos poetas instaura parece mesmo ter-se refugiado “em outro mundo”. Mas o poeta não é somente o lírico, é muitas vezes quem consegue  denunciar a injustiça, a guerra, o crime  com mais contundência do que a própria mídia escrita e televisada. Porque o poeta não apenas nos fala, fala também em nosso nome, fala por nós.
A poesia  é o terreno privilegiado do ser plural e cultural que somos. E se a palavra, como disse Heidegger, é a morada do Ser  - e do homem – a morada da palavra, o lar  da casa é a poesia. 11

E é o filósofo  Hans Georg Gadamer quem diz:

... que a linguagem não seja apenas a casa do Ser, que seja também a casa do ser humano, o lugar que este habita, onde se instala, se encontra, no Outro, e que um dos espaços dessa casa seja o espaço da poesia, da arte, eis o que me parece sempre verdadeiro.12



1 Do  aforismo número 822. Der Wille zur Macht (Vontade de Potência)
2 Tradução de José Paulo Paes, Companhia das letras, São Paulo, 1991.
3 Cf. Rilke, Rainer Maria, carta de 14 de maio de 1904 in Cartas a Um Jovem Poeta, Ed. Globo, Porto Alegre, 2a edição, 1961.
4 Cf. Bachelard, Gaston, A Poética do Devaneio, Martins Fontes, S.Paulo, 1960, p.8.
5 Poema evocado por W.B.Yeats in The Queen and the Fool, Mythologies, Macmillan Yeats, London, 1982, p.116.
5 Do original alemão, intitulado Meditation , de Christine Graser Pimentel: Mein blick gleitet weit übers Meer,/ die Gedanken fliegen davon/ im ewigen Rauschen der Wellen/Glück ohne Schwere.//Doch dann kommt der Fall auf den Stein!/ wer lehrt mich das Fliegen,/ die Zeit?/ Oder raubt sie mir alles?// Mein Blick gleitet weit übers Meer...


6 De Malcom Chazal, um William Blake dos trópicos, segundo Hubert Haddad, in LeCimetière des Poètes, Éditions du Rocher, Paris, 2002, p.206
7 Tsvetáieva, Marina, Des Poètes , des femmes, Paris, 1992, p.19.  E a citação de  Pasternak se encontra na página    82..
8 Salomé, Lou Andreas-, Rainer Maria Rilke, Maren Sell, Paris, 1989,p.100
9 Borges, Jorge Luis, Arte poética, , in Obra Poética 1923/1977, Buenos Aires, p.161.
10 Loos, Adolf, Ornement et Crime, Rivages Poche, Paris, 2003, p.153
11 Com essa frase, terminei um trabalho para o Doutorado de Filosofia, no IFCS do Rio de Janeiro,  em  1991. E para minha grata surpresa, encontrei, em 2003, o que escreveu Gadamer, que cito a seguir.
12 Gadamer, Hans Georg, L’héritage de l’Europe, Rivages Poche, Paris, 2003, p.171

 [R1]Voltar ao texto rascunho anterior para recuperar idéias
 [R2]Ficou longe a incapacidade da cultura. Refazer com mais coerência.
 [R3] Cocteau, p.144