A Poesia como Antídoto (Promenade[R1])
...temos a Arte para não morrer da Verdade.
Friedrich Nietzsche1
Em Breve, o
pós-humano / ensaios contemporâneos, livro de 2003, Jair Ferreira dos Santos diz de
forma definitiva:
A contaminação do texto
pela cultura visual constitui, é possível, o estágio final de um processo
histórico: a despotencialização da palavra. Preterida pela imagem, a palavra
está nos deixando. Desertaram para sempre a palavra sopro divino que se fez
mundo, a palavra sagrada que inspirava a verdade, a palavra mágica das narrativas míticas, a palavra
profética que decidia o futuro, a palavra mantra que conduzia à ascese, a
palavra enigma e revelação do sábio, a palavra prestígio da maldição, a palavra
divinatória dos vates, a palavra inaugural dos poetas. Ficamos com a
Informação. À degradação do Verbo em Informação corresponde a desfiguração do
Sagrado no Profano, assim como a palavra puro signo, sem espessura simbólica,
aponta para a anexação da Cultura pela Economia, do Pleno pelo Vazio. Sem as
energias do silêncio e do invisível, à palavra informação resta ser legenda e
sintaxe das imagens. E entregar-se ao jogo, à prestidigitação, na era do
entretenimento, que é, vá lá, a festa ritual da desaparição. (p.162)
A triste verdade desse texto me remete a alguns
versos do poema Pão e Vinho, de Hölderlin:
Mas amigo, chegamos muito tarde. Os deuses, de fato,
Vivem ainda, mas lá nas
alturas, em outro mundo.
(...) ..., e só
De raro em raro o homem suporta a plenitude do
divino.
(...) : e
para que poetas num tempo de indigência?2
Para que poetas? Para que a indigência do tempo não
nos mate, ou não mate em nós a possibilidade do encantamento.
As “energias do silêncio e do invisível” vêm sendo
sufocadas pelo espetáculo de um realismo hipertrofiado e escatológico, que
impregna tanto a televisão quanto o cinema e grande parte da literatura. A banalização da violência invade a arte de
narrar e a sexualidade vem sofrendo a profanação sistemática de um voyeurismo disfarçado de naturalismo. E o
amor, que já foi descrito como a tarefa mais difícil que nos foi imposta3 , porque mesmo depois de saber de tudo,
seu mistério continua intacto, como disse Clarice Lispector, foi destituído de
sua magia e de sua emoção. Porque
mutilamos a realidade do amor quando a
separamos de toda a sua irrealidade4. A
irrealidade vital da fantasia e, por mais assustadora que nos pareça, a
presença “real” da morte. Não é por acaso que
as histórias de Tristão e Isolda, Paolo e Francesca, Romeu e Julieta, Cyrano e Roxanne, e tantas
outras, incluem a morte. Pois a vida em seu estado de exaltação, ou em seu
ponto culminante - o amor - sempre evocou no imaginário dos criadores de
mitos o seu contrário, ou sua
complementação - a morte. Não costumamos
chamar o próprio êxtase sexual-amoroso de petite
mort?
Você não ouviu dizer...
(...) que o amor, quando braços e pernas entrelaça,
e o sono, quando a noite da vida é fraturada,
e o pensamento em vagos confins do mundo pendurado,
e a música, quando quem canta é o amado
... é a
morte?5
Nossa cultura, porém, não tolera a idéia da morte e procura
escamoteá-la, não aceita o envelhecimento e exalta uma juventude eterna e
falsa. Talvez por isso [R2]tenham
se afastado do imaginário contemporâneo “as energias do silêncio e do
invisível”, que alimentam tanto o amor
quanto “a palavra inaugural dos poetas”
e a própria vida. Pois como a música, que não existe sem suas pausas, a poesia é som e sentido...no silêncio. No
silêncio que antecede e sucede as palavras,
que as circunda. Do mesmo modo, a morte circunda a vida e o finito é envolto
de infinito.
Ora, podemos imaginar que a palavra da poesia nasce na linha de fratura entre o finito e o
infinito e por isso [R3]sugere
mais do que diz, evoca mais do que afirma, projeta, irradia , faz vislumbrar. É pressentimento e promessa.
Começo. Eterna criação. Como se tentasse inserir no finito do poema a lembrança do infinito de
onde vem.
Por isso ressoa.
Diz Octavio Paz,
num pequeno poema em homenagem a Ptolomeu:
Hermandad
soy hombre: duro poco
y es enorme la noche.
Pero miro hacia arriba:
las estrellas escriben.
Sin entender comprendo:
también soy escritura
y en este mismo instante
alguien me deletrea.
Infelizmente, anúncios luminosos e luzes de
mercúrio já não nos permitem enxergar as estrelas que escrevem. Só as crianças
de antigos jardins podiam dizer, numa encantadora síntese:
Ih! Papai! Como as estrelas estão cheirosas!*
(* como disse, aos cinco anos, uma das filhas do
físico brasileiro Joaquim Costa Ribeiro )
No entanto, quando nossa visão não se encontra
fragmentada pela poluente sucessão de imagens da televisão, ou quando o som do
mundo deixa de ser o do trânsito e dos celulares, ainda é possível reencontrar-se com a
natureza, ou encontrar-se consigo mesmo diante dela.
Eis aqui um exemplo de alguém que em devaneio em
frente ao mar, deixando-se possuir por um sentipensar poético, produziu versos pela primeira vez:
Meu olhar desliza longe sobre o
mar
Os pensamentos fogem e voam
No eterno balanço das ondas.
Felicidade sem peso.
Então vem a queda sobre a
pedra!
Quem me ensina a voar
O Tempo?
Ou ele tudo me quer roubar?
Meu olhar desliza longe sobre o mar.. 5
O longe da poesia é o
universo inteiro. Pois,
O caminho mais curto
De nós mesmos
Para nós mesmos
É o Universo. 6
Como se houvesse um só poeta, Fernando Pessoa
diz em seu “Acordar da Cidade de
Lisboa”:
... E a minha ambição era trazer o universo ao colo
Como uma
criança a quem a ama beija.
Em outro “longe”, Boris Pasternak diz:
É impossível atravessar a estrada
Sem chapinhar no universo inteiro.
Marina
Tsvetáieva, a grande poeta russa sacrificada pelo stalinismo, acreditava que a
poesia é una em todas as suas manifestações,
que não existem poetas, mas “um poeta, sempre o mesmo, do começo ao fim
do mundo, uma força que se reveste com as cores dos tempos, das tribos, dos
países, das línguas”7... e que renasce sem cessar. E antes dela, em
seu ensaio sobre Rilke, outra russa, a
que encarnou como ninguém o espírito da
Belle Époque – Lou Andreas Salomé – afirmou que
...quanto mais nos afastamos da consciência clara,
mais profundo é nosso mergulho na escuridão da alma:
essa verdade é incontrolável quando escutamos o poeta
que nos habita, o poeta que existe em cada um de nós.8
Podemos
dizer ainda , à luz de Lou Salomé e de
Marina Tsvetáieva, que existe, de
fato, em cada um de nós, mais ou menos
adormecido ou sufocado pela poluição do
real, um demiurgo, um poeta em cujo
espelho mágico se concentram numa só figura, dançantes e capazes de cantar o
mundo, os rostos de todos os poetas.
Espelho que em Borges tem um sentido ainda mais
rico:
A veces en las tardes una cara
Nos mira desde el fondo de un espejo
El arte debe ser como ese espejo
Que nos revela nuestra propia cara9
Seria essa a missão do poeta – a de estabelecer e
manter o contato com as profundezas do Ser, com a vida e a morte, para
mostrar-nos a nossa cara, o que somos, isto é, seres de imaginação, os
únicos capazes de poiésis em toda a “Criação”.
Na era da imagem e da informação instantânea,
contudo, há um descaso não apenas pela
poesia, mas também pela palavra escrita
e pela língua culta, e uma desconfiança em relação ao experimentado e sentido, ao construído e ao “antigo”, que nos impedem de enxergar o
que revela o espelho da poesia. No entanto, Adolf Loos, um dos mais
revolucionários inovadores da arquitetura moderna, não hesitou em afirmar que só se deveria transformar o modo
antigo de construir, por exemplo, se isso significasse um melhoramento, pois
“a verdade, mesmo quando é velha de muitos séculos, tem mais relação
íntima conosco do que a mentira que anda ao nosso lado”10
No tempo de indigência em que vivemos, a jovem
verdade que a palavra inaugural dos poetas instaura parece mesmo ter-se
refugiado “em outro mundo”. Mas o poeta não é somente o lírico, é muitas vezes
quem consegue denunciar a injustiça, a
guerra, o crime com mais contundência do
que a própria mídia escrita e televisada. Porque o poeta não apenas nos fala,
fala também em nosso nome, fala por nós.
A poesia é o
terreno privilegiado do ser plural e cultural que somos. E se a palavra, como
disse Heidegger, é a morada do Ser - e
do homem – a morada da palavra, o lar da
casa é a poesia. 11
E é o filósofo
Hans Georg Gadamer quem diz:
... que a linguagem não seja apenas a casa do
Ser, que seja também a casa do ser humano, o lugar que este habita, onde se
instala, se encontra, no Outro, e que um dos espaços dessa casa seja o espaço
da poesia, da arte, eis o que me parece sempre verdadeiro.12
1 Do aforismo número 822. Der Wille zur Macht (Vontade de Potência)
2 Tradução de
José Paulo Paes, Companhia das letras, São Paulo, 1991.
3 Cf. Rilke,
Rainer Maria, carta de 14 de maio de 1904 in
Cartas a Um Jovem Poeta, Ed. Globo, Porto Alegre, 2a edição,
1961.
4 Cf.
Bachelard, Gaston, A Poética do Devaneio, Martins Fontes, S.Paulo, 1960, p.8.
5 Poema
evocado por W.B.Yeats in The Queen and the Fool, Mythologies, Macmillan Yeats,
London, 1982, p.116.
5 Do original
alemão, intitulado Meditation , de Christine Graser Pimentel: Mein blick
gleitet weit übers Meer,/ die Gedanken fliegen davon/ im ewigen Rauschen der
Wellen/Glück ohne Schwere.//Doch dann kommt der Fall auf den Stein!/ wer lehrt
mich das Fliegen,/ die Zeit?/ Oder raubt sie mir alles?// Mein Blick gleitet
weit übers Meer...
6 De Malcom
Chazal, um William Blake dos trópicos, segundo Hubert Haddad, in LeCimetière des Poètes, Éditions du
Rocher, Paris, 2002, p.206
7 Tsvetáieva,
Marina, Des Poètes , des femmes, Paris, 1992, p.19. E a citação de Pasternak se encontra na
página 82..
8 Salomé, Lou
Andreas-, Rainer Maria Rilke, Maren Sell, Paris, 1989,p.100
9 Borges,
Jorge Luis, Arte poética, , in Obra
Poética 1923/1977, Buenos Aires, p.161.
10 Loos,
Adolf, Ornement et Crime, Rivages Poche, Paris, 2003, p.153
11 Com essa
frase, terminei um trabalho para o Doutorado de Filosofia, no IFCS do Rio de
Janeiro, em 1991. E para minha grata surpresa, encontrei,
em 2003, o que escreveu Gadamer, que cito a seguir.
12 Gadamer,
Hans Georg, L’héritage de l’Europe, Rivages
Poche, Paris, 2003, p.171
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