quarta-feira, 31 de julho de 2013

A Poesia como Antídoto



A Poesia como Antídoto   (Promenade[R1] )


                                                           ...temos a Arte para não morrer da Verdade.
                                                                  Friedrich Nietzsche1

Em Breve, o pós-humano / ensaios contemporâneos, livro  de 2003, Jair Ferreira dos Santos diz de forma definitiva:

A contaminação do texto pela cultura visual constitui, é possível, o estágio final de um processo histórico: a despotencialização da palavra. Preterida pela imagem, a palavra está nos deixando. Desertaram para sempre a palavra sopro divino que se fez mundo, a palavra sagrada que inspirava a verdade, a palavra  mágica das narrativas míticas, a palavra profética que decidia o futuro, a palavra mantra que conduzia à ascese, a palavra enigma e revelação do sábio, a palavra prestígio da maldição, a palavra divinatória dos vates, a palavra inaugural dos poetas. Ficamos com a Informação. À degradação do Verbo em Informação corresponde a desfiguração do Sagrado no Profano, assim como a palavra puro signo, sem espessura simbólica, aponta para a anexação da Cultura pela Economia, do Pleno pelo Vazio. Sem as energias do silêncio e do invisível, à palavra informação resta ser legenda e sintaxe das imagens. E entregar-se ao jogo, à prestidigitação, na era do entretenimento, que é, vá lá, a festa ritual da desaparição.  (p.162)

A triste verdade desse texto me remete a alguns versos do poema Pão e Vinho, de Hölderlin:

Mas amigo, chegamos muito tarde. Os deuses, de fato,

Vivem ainda, mas lá nas alturas, em outro mundo.

(...) ..., e só
De raro em raro o homem suporta a plenitude do divino.

(...) : e para que poetas num tempo de indigência?2

Para que poetas? Para que a indigência do tempo não nos mate, ou não mate em nós a possibilidade do encantamento.
As “energias do silêncio e do invisível” vêm sendo sufocadas pelo espetáculo de um realismo hipertrofiado e escatológico, que impregna tanto a televisão quanto o cinema e grande parte da literatura. A  banalização da violência invade a arte de narrar e a sexualidade vem sofrendo a profanação sistemática de um  voyeurismo disfarçado de naturalismo. E o amor, que já foi descrito como a tarefa mais difícil que nos foi imposta3 , porque mesmo depois de saber de tudo, seu mistério continua intacto, como disse Clarice Lispector, foi destituído de sua magia e de sua emoção.  Porque mutilamos  a realidade do amor quando a separamos de toda a sua irrealidade4. A irrealidade vital da fantasia e, por mais assustadora que nos pareça, a presença “real”   da morte. Não é  por acaso que  as histórias de Tristão e Isolda, Paolo e Francesca,  Romeu e Julieta, Cyrano e Roxanne, e tantas outras, incluem a morte. Pois a vida em seu estado de exaltação, ou em seu ponto culminante -  o amor -  sempre evocou no imaginário dos criadores de mitos o seu contrário, ou  sua complementação -  a morte. Não costumamos chamar o próprio êxtase sexual-amoroso de petite mort?

Você não ouviu dizer...

(...) que o amor, quando braços e pernas entrelaça,
e o sono, quando a noite da vida é fraturada,
e o pensamento em vagos confins do mundo pendurado,
e a música, quando quem canta é o amado 

... é a morte?5

Nossa cultura, porém, não  tolera a idéia da morte e procura escamoteá-la, não aceita o envelhecimento e exalta uma juventude eterna e falsa.   Talvez por isso  [R2] tenham se afastado do imaginário contemporâneo “as energias do silêncio e do invisível”, que alimentam   tanto o amor quanto “a palavra  inaugural dos poetas” e a própria vida. Pois como a música, que não existe sem suas pausas,  a poesia é som e sentido...no silêncio. No silêncio que antecede e sucede as palavras,  que as circunda. Do mesmo modo, a morte circunda a vida e o finito é envolto de infinito. 
Ora, podemos imaginar  que a palavra da poesia  nasce na linha de fratura entre o finito e o infinito e por isso [R3] sugere mais do que diz, evoca mais do que afirma, projeta, irradia ,  faz vislumbrar. É pressentimento e promessa. Começo. Eterna criação. Como se tentasse inserir  no finito do poema a lembrança do infinito de onde vem.
Por isso ressoa.
Diz Octavio Paz,  num pequeno poema em homenagem a Ptolomeu:

         Hermandad
soy hombre: duro poco
y es enorme la noche.
Pero miro hacia arriba:
las estrellas escriben.
Sin entender comprendo:
también soy escritura
y en este mismo instante
alguien me deletrea.


Infelizmente, anúncios luminosos e luzes de mercúrio já não nos permitem enxergar as estrelas que escrevem. Só as crianças de antigos jardins podiam dizer, numa encantadora síntese:

Ih! Papai! Como as estrelas estão cheirosas!*

(* como disse, aos cinco anos, uma das filhas do físico brasileiro Joaquim Costa Ribeiro )

No entanto, quando nossa visão não se encontra fragmentada pela poluente sucessão de imagens da televisão, ou quando o som do mundo deixa de ser o do trânsito e dos celulares,  ainda é possível reencontrar-se com a natureza, ou encontrar-se consigo mesmo diante dela.
Eis aqui um exemplo de alguém que em devaneio em frente ao mar, deixando-se possuir por um sentipensar poético,  produziu versos pela primeira vez:

  Meu olhar desliza longe sobre o mar
  Os pensamentos fogem e voam
  No eterno balanço das ondas.
  Felicidade sem peso.

  Então vem a queda sobre a pedra!
  Quem me ensina a voar
  O Tempo?
  Ou  ele tudo me quer roubar?

Meu olhar desliza longe sobre o mar.. 5


O longe da poesia é o universo inteiro. Pois,

O caminho mais curto
De nós mesmos
Para nós mesmos
É o Universo. 6

Como se houvesse um só poeta, Fernando Pessoa diz  em seu “Acordar da Cidade de Lisboa”:

... E a minha ambição era trazer o universo ao colo
Como uma criança a quem a ama beija.

Em outro “longe”, Boris Pasternak diz:

É impossível atravessar a estrada
Sem chapinhar no universo inteiro.


 Marina Tsvetáieva, a grande poeta russa sacrificada pelo stalinismo, acreditava que a poesia é una em todas as suas manifestações,  que não existem poetas, mas “um poeta, sempre o mesmo, do começo ao fim do mundo, uma força que se reveste com as cores dos tempos, das tribos, dos países, das línguas”7...  e que renasce sem cessar. E antes dela, em seu ensaio sobre Rilke,  outra russa, a que  encarnou como ninguém o espírito da Belle Époque – Lou Andreas Salomé – afirmou que

...quanto mais nos afastamos da consciência clara,
mais profundo é nosso mergulho na escuridão da alma:
essa verdade é incontrolável quando escutamos o poeta
que nos habita, o poeta que existe em cada um de nós.8


 Podemos dizer ainda , à luz de  Lou Salomé e de Marina Tsvetáieva,  que existe, de fato,  em cada um de nós, mais ou menos adormecido ou sufocado  pela poluição do real,  um demiurgo, um poeta em cujo espelho mágico se concentram numa só figura, dançantes e capazes de cantar o mundo, os rostos de todos os poetas.

Espelho que em Borges tem um sentido ainda mais rico:

A veces en las tardes una cara
Nos mira desde el fondo de un espejo
El arte debe ser como ese espejo
Que nos revela nuestra propia cara9

Seria essa a missão do poeta – a de estabelecer e manter o contato com as profundezas do Ser, com a vida e a morte, para mostrar-nos a nossa cara, o que somos, isto é, seres de imaginação, os únicos capazes de poiésis em toda a “Criação”.
Na era da imagem e da informação instantânea, contudo, há um descaso não apenas  pela poesia, mas também  pela palavra escrita e pela língua culta, e uma desconfiança em relação ao  experimentado e sentido, ao construído e  ao “antigo”, que nos impedem de enxergar o que revela o espelho da poesia. No entanto, Adolf Loos, um dos mais revolucionários inovadores da arquitetura moderna, não hesitou em   afirmar que só se deveria transformar o modo antigo de construir, por exemplo, se isso significasse um melhoramento,  pois  “a verdade, mesmo quando é velha de muitos séculos, tem mais relação íntima conosco do que a mentira que anda ao nosso lado”10
No tempo de indigência em que vivemos, a jovem verdade que a palavra inaugural dos poetas instaura parece mesmo ter-se refugiado “em outro mundo”. Mas o poeta não é somente o lírico, é muitas vezes quem consegue  denunciar a injustiça, a guerra, o crime  com mais contundência do que a própria mídia escrita e televisada. Porque o poeta não apenas nos fala, fala também em nosso nome, fala por nós.
A poesia  é o terreno privilegiado do ser plural e cultural que somos. E se a palavra, como disse Heidegger, é a morada do Ser  - e do homem – a morada da palavra, o lar  da casa é a poesia. 11

E é o filósofo  Hans Georg Gadamer quem diz:

... que a linguagem não seja apenas a casa do Ser, que seja também a casa do ser humano, o lugar que este habita, onde se instala, se encontra, no Outro, e que um dos espaços dessa casa seja o espaço da poesia, da arte, eis o que me parece sempre verdadeiro.12



1 Do  aforismo número 822. Der Wille zur Macht (Vontade de Potência)
2 Tradução de José Paulo Paes, Companhia das letras, São Paulo, 1991.
3 Cf. Rilke, Rainer Maria, carta de 14 de maio de 1904 in Cartas a Um Jovem Poeta, Ed. Globo, Porto Alegre, 2a edição, 1961.
4 Cf. Bachelard, Gaston, A Poética do Devaneio, Martins Fontes, S.Paulo, 1960, p.8.
5 Poema evocado por W.B.Yeats in The Queen and the Fool, Mythologies, Macmillan Yeats, London, 1982, p.116.
5 Do original alemão, intitulado Meditation , de Christine Graser Pimentel: Mein blick gleitet weit übers Meer,/ die Gedanken fliegen davon/ im ewigen Rauschen der Wellen/Glück ohne Schwere.//Doch dann kommt der Fall auf den Stein!/ wer lehrt mich das Fliegen,/ die Zeit?/ Oder raubt sie mir alles?// Mein Blick gleitet weit übers Meer...


6 De Malcom Chazal, um William Blake dos trópicos, segundo Hubert Haddad, in LeCimetière des Poètes, Éditions du Rocher, Paris, 2002, p.206
7 Tsvetáieva, Marina, Des Poètes , des femmes, Paris, 1992, p.19.  E a citação de  Pasternak se encontra na página    82..
8 Salomé, Lou Andreas-, Rainer Maria Rilke, Maren Sell, Paris, 1989,p.100
9 Borges, Jorge Luis, Arte poética, , in Obra Poética 1923/1977, Buenos Aires, p.161.
10 Loos, Adolf, Ornement et Crime, Rivages Poche, Paris, 2003, p.153
11 Com essa frase, terminei um trabalho para o Doutorado de Filosofia, no IFCS do Rio de Janeiro,  em  1991. E para minha grata surpresa, encontrei, em 2003, o que escreveu Gadamer, que cito a seguir.
12 Gadamer, Hans Georg, L’héritage de l’Europe, Rivages Poche, Paris, 2003, p.171

 [R1]Voltar ao texto rascunho anterior para recuperar idéias
 [R2]Ficou longe a incapacidade da cultura. Refazer com mais coerência.
 [R3] Cocteau, p.144

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