sábado, 27 de julho de 2013

Marques Rebelo - Um modernista esquecido

FACULDADE PADRE JOÃO BAGOZZI
PÓS-GRADUAÇÃO BAGOZZI
NÚCLEO DE CIÊNCIAS DA VIDA E DA SOCIEDADE
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO lato sensu – ESPECIALIZAÇÃO EM
ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA E RESPECTIVAS LITERATURAS
CARMEN LUIZA FILLIES








MARQUES REBELO: UM MODERNISTA ESQUECIDO

 

 




Carmen Luiza Fillies

 

 

 

 




 

 

 


 

CURITIBA

2010


MARQUES REBELO: UM MODERNISTA ESQUECIDO


Carmen Luiza Fillies[1]


RESUMO



Há pouco mais de cem anos nascia Marques Rebelo, pseudônimo de Eddy Dias da Cruz, um escritor e jornalista que transitou por vários gêneros textuais como: crônica, ensaio, conto, romance, literatura infantil, biografias, literatura didática entre outros. O presente artigo tem como propósito apresentar Marques Rebelo através de sua obra O Trapicheiro (primeiro volume da trilogia O Espelho Partido). A obra está organizada na forma de um diário, abrangendo o período de 1936 a 1945 tendo como ambiente a cidade do Rio de Janeiro. Esta pesquisa justifica-se, pois vai mostrar algumas críticas e aspectos da obra em questão, deixando claro que é preciso não deixar cair no esquecimento esta obra de importância ímpar para a literatura nacional. Outro argumento consiste em que através dessa obra busca-se compreender não só os ciclos da história pátria e da cidade do Rio de Janeiro, mas também o que ia no íntimo de Marques Rebelo e como ele deixou aflorar toda a sua criatividade através da obra.
Palavras-chave: Marques Rebelo; obra; O Espelho Partido; O Trapicheiro;  Rio de Janeiro.
 


1      INTRODUÇÃO

Falar de Marques Rebelo é relembrar a história do Rio de Janeiro na década de trinta. A cidade foi palco das grandes crises e transformações por que passou o País naquela época.
Para Rebelo, o Rio era o mundo. Ele via a cidade como a própria destinação do homem contemporâneo. Motivado por estes aspectos, Rebelo escreveu romances, contos, novelas, crônicas, literatura infantil e muitos outros.
Seu talento literário foi amplamente reconhecido pela crítica. Para homenagear o Rio de Janeiro, ele projetou escrever a obra O Espelho Partido, dividida em sete volumes, mas conseguiu escrever apenas três volumes que são: O Trapicheiro (1959), A Mudança (1963) e  A Guerra Está em Nós (1968).
Levando em conta esses aspectos, esta pesquisa tem em vista reapresentar Marques Rebelo ao público interessado em literatura modernista. Para isso, o objetivo geral desta pesquisa é apresentar Marques Rebelo através de um dos volumes de sua obra inacabada O Trapicheiro (primeiro volume  da trilogia O Espelho Partido). Outros objetivos delineados neste trabalho são: relatar alguns traços biográficos, localizar no tempo o autor e sua obra e esboçar análise da obra apresentada. A temática desenvolvida será orientada mediante pesquisa bibliográfica e documental, a partir do registro disponível em documentos impressos,  livros, artigos e outros.

2 TRAÇOS BIOGRÁFICOS DE MARQUES REBELO

            Marques Rebelo é o nome literário de Eddy Dias da Cruz, jornalista, contista, cronista, novelista, museólogo e marchand[2] Vc pode retirar museólogo e marchand e escrever que foi incentivador das artes plásticas, tendo inclusive fundado o primeiro museu de arte moderna do Brasil, O de Santa Catarina em 1948 e promovido a primeira exposição de artistas modernos fora do país em 1945, exposição esta que permitiu que pela primeira vez um crítico da arte estrangeiro escrevesse sobre a produção brasileira. Trata-se do livro Vinte artistas brasileños, do argentino José Romero Brest. Nasceu no dia 6 de janeiro de 1907, na rua Luís Barbosa, número 42, em Vila Isabel, na cidade do Rio de Janeiro. Passou parte da infância parte em Vila Isabel e no Trapicheiro, bairros cariocas, e parte em Barbacena onde fez o curso primário. Após terminar os preparatórios, ingressou na Faculdade de Medicina, logo abandonada para trabalhar no comércio.
            Suas viagens pelo interior de São Paulo, Minas e Rio lhe proporcionaram  experiências que o ajudariam a construir personagens que usaria mais tarde em seus livros.
            É difícil enquadrar Marques Rebelo numa das duas mais representativas correntes literárias da década de 30, época em que aparece e se afirma como escritor.  Cronologicamente, o autor pertenceu à segunda geração modernista. Nesta fase houve uma definição dos padrões modernistas que priorizavam uma arte com fundo ideológico, retratando a sociedade e criticando a situação em que se encontrava. A ironia é, então, largamente empregada. Ocorre um amadurecimento e aprimoramento das idéias lançadas pela primeira geração, direcionando e ampliando a temática das questões sociais. A linguagem coloquial é então, bastante utilizada.

3 MARQUES REBELO E O MODERNISMO

            O marco inicial do Modernismo[3] no Brasil foi a Semana da Arte Moderna em 1922 realizada no Teatro Municipal de São Paulo. Neste evento, o principal acontecimento foi a exposição de Anita Malfatti que pôs a público seus 53 quadros que causaram estranheza e até críticas, pois constituíram novidade para o meio artístico (COUTINHO, 1999). (Aqui é complicado. A semana de arte de 22 foi gestada no Rio por Manuel Bandeira, Di Cavalcanti e Villa Lobos e patrocinada por Paulo Prado. A exposição da Anita ocorreu em 1917 e foi violentamente atacada por Monteiro Lobato que praticamente destruiu a artista. Diz-se que a artista Tarsila do Amaral também participou, o que não é verdade pois, como ela mesma afirma, estava em Paris e só retornou ao Brasil em 1924. Oswald de Andrade frequentou as apresentações e só depois elaborou o projeto antropofágico. Nas realidade o evento mais marcante foram os concertos de Villa Lobos no terceiro e último do que se chama de semana.de 22, pois foi o único participante que logo ganhou fama internacional.  Mário de Andrade também não participou, mas logo dela se informou.)
            A Primeira Fase do Modernismo ocorreu no período de 1922 a 1930 e caracterizou-se por um maior compromisso dos artistas com a renovação estética. Desde o começo o modernismo mostrou-se complexo e contraditório, sendo sobretudo, um movimento que visava tirar o Brasil da estagnação artística. Analisando-se os documentos da época, percebeu-se que “renovar era preciso, em nome da liberdade e da originalidade” (COSTA, 1982, p. 99). Por isso, o “modernismo brasileiro precisa abandonar de todo o respeito do papão da tradição e... pegar na palavra tradição, virar, revirar, extrair o suco e repudiar o bagaço” (ANDRADE citado por ROSSETI, 1972, p. 258-60).
            A Segunda Fase do Modernismo, também conhecida como Fase da Consolidação, abrangeu o período de 1930 a 1945, caracterizado pelo predomínio da prosa de ficção. É neste período os ideais difundidos em 1922 se normalizam. Na década de 1930 ocorreram profundas transformações e grande efervescência cultural.
            O Rio de Janeiro nesta década de 1930 ostentava o título de capital da República, e “passou a ditar não só as novas modas e comportamentos, mas acima de tudo, os sistemas de valores, o modo de vida, a sensibilidade, o estado de espírito e as disposições que articulam a modernidade como uma experiência existencial e íntima” (SEVCENKO, 2001, p. 522).
            Como se observa, o Rio de Janeiro era uma espécie de vitrine para o Brasil e assumia o espírito modernizador que se pretendia para toda a nação. É nesse ambiente que uma voz destoa da euforia do progresso: era Marques Rebelo, para quem a modernidade representava “a transformação grosseira e desnecessária da fisionomia da cidade” (GOMES, 1994, p. 94).

Rebelo constata o apagamento da memória urbana traçada na escrita das pedras dos monumentos, só possível de resgatar através do livro, lugar de inscrição do passado frente ao que se vai transformando em ruínas. Junto a elas, o cronista resiste, identificando-se à escada “sólida, granítica, destemorosa” – memória que protesta, inútil e impotente, em oposição aos indiferentes operários, instrumento dos agentes do progresso (GOMES, 1994, p. 94).


            Marques Rebelo estreou em 1931 com o volume de contos Oscarina que lhe valeu a reputação de renovador da arte do conto. Foi nesta década de trinta que ele foi considerado o contista brasileiro por excelência. Com a publicação de dois romances: - Marafa em 1935 e A Estrela Sobe em 1939 – consolidaria sua posição como um dos escritores mais significativos daquele período. Porém no romance cíclico O Espelho Partido, do qual foram publicados três volumes, o escritor caiu num certo esquecimento e a imagem que se teve dele não foi renovada (FRUNGILLO, 2007, p. 119-120).
            É importante salientar que Marques Rebelo tinha uma literatura voltada ao homem comum, o fato banal, os derrotados e todos aqueles indefinidos socialmente. Para se ter uma idéia de sua literatura, veja-se sua crítica ao Estado Novo para demonstrar sua indignação diante da demolição de igrejas seculares.

Teremos a Avenida Presidente Vargas, que estava faltando... O prefeitóide está entusiasmado – será monumental, duas vezes mais larga do que a Avenida Rio Branco, não sei quantos quilômetros de comprimento! Para rasgá-la desaparecerá uma porção de ruas estreitas, com os seus sobradinhos coloniais, casas que, como diz Machado, poderiam nãos ser belas, mas eram velhas, desaparecerá a linda igreja de São Pedro, dourada e redonda, porque os idealizadores da grande artéria se negam a ouvir o Serviço do Patrimônio Histórico e desviar centímetros o eixo traçado pelos urbanistas de cacaracá (REBELO, 2002a, p. 389)
           
            Desse modo, fica claro que o Rio de Janeiro foi o principal personagem de Marques Rebelo, que conseguiu retratar a cidade sob os vários olhares que lançou sobre ela.



3 ANÁLISE DA OBRA O TRAPICHEIRO DE MARQUES REBELO

            Como se verá a seguir, O  Trapicheiro é o primeiro volume e objeto de estudo deste trabalho e tem o formato de um diário produzido entre 1936 e 1938. Nesse volume o narrador-autor reporta-se a nostálgicas lembranças da infância e adolescência.
            O pano de fundo  por onde circulavam os inúmeros personagens que compõem essa obra é o Rio de Janeiro, berço e orgulho do escritor. O Rio mostrado ao longo dessa obra é a cidade cosmopolita que acompanha  pelo  rádio, com interesse e apreensão as notícias relacionadas à tensão que envolvia nesse período os países europeus. A situação internacional favorecia a solução autoritária. Fascismo e nazismo, na época, pareciam a muitos, regimes mais dinâmicos e melhores que as decadentes democracias. E foi nesse clima que  instituiu-se no Brasil  o Estado Novo, com o golpe perpetrado por Getúlio Vargas, em 10 de novembro de 37. Enquanto desenrolava-se a crise internacional de 1930 a 1938, a situação nacional é, juntamente, noticiada, discutida e analisada pelos personagens de O Trapicheiro. Dentre esses personagens, muitos foram presos pelo regime ditatorial estabelecido. Esse romance vai descrevendo em seus fragmentos de diário, os vários aspectos da vida brasileira, com os reflexos do que vai pelo mundo no período de 1936 a 1938 (RODRIGUES FILHO, 2007).
            A objetividade, que é o pressuposto do neorrealismo de Marques Rebelo, tem uma matriz lírica. Esse lirismo reside no narrador de episódios infantis, como em Caso de Mentira, Circo de Coelhinhos e ao evocar destinos malogrados em A Mudança  e  Um Destino. Na série O Espelho Partido, ainda aparecem vigorosamente as raízes memorialistas.  O  espaço  onde  desenrola-se  a  narrativa  é   o  Rio de  Janeiro. A  fictícia  Guarapira  localiza-se em Minas Gerais.  É em  Guarapira  que  vive  um  dos  melhores  amigos de  Eduardo  (Marques Rebelo), Francisco Amaro (na  realidade, Francisco  Inácio   Peixoto).  A  bucólica  Guarapira  é,  na  realidade,  a  cidade   de  Cataguases. E, essa  cidadezinha do interior mineiro foi, à  época em que viveram Marques Rebelo  e  (José Inácio Peixoto) Na realidade o industrial Francisco Inácio Peixoto, um dos fundadores do movimento Verde junto com Rosario Fusco, Ascânio Lopes e Guilhermino César. (espécie de Mecenas  de vários  artistas daquela época), o berço do Modernismo brasileiro em vários aspectos, não apenas no campo da literatura, mas também na arquitetura, pintura, escultura e outras manifestações artísticas de vanguarda (TRIGO, 1996). O cinema brasileiro começa em Cataguases com Humberto Mauro.

            Carpeux (1960, p. 262-266) comenta O Trapicheiro:

É um livro deliciosamente escrito, por um escritor que insiste pouco, afirma pouco e não conclui, resolvendo-se num estilo que revela uma atitude especificamente estética em face da vida. Sabe ir do humorismo malicioso, da sátira mais cruel, até o lirismo comovido, a emoção profunda, tornando a obra imensamente divertida e profundamente comovida. Refletindo sobre a pouca penetração do escritor em certos setores da crítica, atribui-a a um motivo de todo externo: a malediência de Rebelo, que sempre soube fazer inimigos à esquerda e à direita. Para ele, O Trapicheiro é uma obra de valor extraordinário.


            Rebelo retrata um período em que o Rio de Janeiro mostrava sua modernidade de centro turístico, mas ainda conservava faixas de vida suburbana, estratificada, própria de uma classe média que remontava aos tempos de D. João VI. A revolução industrial e o entusiasmo imobiliário tomaram conta da orla da praia, mas muito lentamente é que alteraram a fisionomia da esfera dos morros. Nesse espaço havia os bairros que, se por um lado dependiam dos negócios e burocracia do centro, relutavam em integrar-se ao espírito mercantil e cosmopolita da nova cidade.
            O jornalista Trigo (1996) escreveu um livro sobre Marques Rebelo que integra a coleção Perfis do Rio, onde é possível identificar algumas personalidades reais dentre as personagens inseridas nesses três volumes A obra, concebida para homenagear a cidade do Rio de Janeiro, acabou evoluindo para a autobiografia, a memória, o cronograma histórico, o cinejornal e o documentário, e ganhou a forma de um diário. A imagem refletida nesse espelho é o Rio de Janeiro, entre 1936 a 1944 (que deveria chegar até 1954, em sete volumes).
            Como exemplo, pode-se ler na obra O Trapicheiro de Marques Rebelo (2002b), no segundo parágrafo da página 78, linha 7 em diante, lembrança de Tatá, amigo de infância : “(...) Sente saudades. Pensa em Tatá, companheiro inseparável de torcida, afastado pelo casamento.” No universo de  O Trapicheiro, transitam mais de duzentos personagens. Não há linearidade na narrativa: há uma mistura de ficção, autobiografia  e  crítica de costumes.
         A narrativa é mista no  decorrer  dos  três  tomos: ora em primeira pessoa,  ora em terceira. No plano da narração pode-se observar elementos indicadores da instância do discurso. Os  pronomes  na  primeira  pessoa  estabelecem  contato  entre  narrador  e  leitor, bem como  os  possessivos. Isto pode  ser  observado  nos  trechos:
Primeira pessoa (10 de janeiro ) (...) “Tocou-me o sorriso compreensivo e maternal.”(p. 11, primeiro parágrafo, linha 8).
(24 de dezembro): (...) “Submeto-me ao protocolo natalino, engajo-me no extremo da cola, seu Valença na  minha  frente, em atitude acapoeirada, rosnando epigramas pouco asseados, Odilon atrás achando-lhe uma graça insopitável.”(p. 169, início do terceiro parágrafo).
Terceira pessoa: (20 de agosto): “Lobélia atirou-lhe umas palavras hoje, na porta da cozinha, que o feriram muito. (Alexandre se arrastava). Ela tinha razão.(...)(p. 114, terceiro parágrafo) (REBELO, 2002b).
            Como afirma Rodrigues Filho (2007), a  obra de Marques Rebelo, tem especial relevância esta série denominada O Espelho Partido, idealizada para ser composta em sete  tomos, mas interrompida pela morte do autor. O período abrangido por O Trapicheiro, A Mudança  e A Guerra Está em Nós, coincide com o Estado Novo em termos nacionais e, no plano internacional, com a ascensão do nazi-fascismo.
            Como  o  autor  empregou  a  técnica  do  diário, influência  declarada de  Pierre-Jules Renard (nascido em 22/02/1864, Châlons Du Maine, falecido em 22/05/1910 em Paris), o tempo, dentro da narrativa será marcado como uma lembrança atual, escolha que se opera na memória, não como se reproduzisse o passado, (mas um” presente  do  passado “ agostiniano, que se vai desdobrando em consciência. Desenvolve-se um processo de montagem intertextual, acolhendo fragmentos de discursos, em vários registros e com vários tratamentos, que vão da citação à paródia, naquilo que Bakhtin atribui ao  ser próprio do romance: “reapresentação  do discurso de outrem”) (RODRIGUES FILHO, 2007).
            Assim, a opção por este formato textual traz consigo uma pluralidade de pontos de vista, confundindo  as  dimensões  individual, intimista  e  autobiográfica com  a  histórico-cultural partindo de temas constantes  como o tempo, a morte, as mulheres, as relações pessoais e sociais, a infância, a adolescência e  a vida adulta. Nesse amplo painel são mostrados saberes e costumes, ecos de discursos  que vão promovendo o desfile de artistas, políticos, burocratas, escritores, intelectuais – mal  ocultados sob os nomes fictícios – no espaço do Rio de Janeiro, onde ocorre a  ação  narrada.
            Em  O Trapicheiro, ocorre  um  deslocamento  do  eixo  narrativo, em  relação às  obras anteriores  de  Marques Rebelo, que enfocavam os marginalizados da sociedade representados por prostitutas, boêmios, malandros, famílias  pobres, sonhadoras.  Nesta, o  foco  volta-se  ao  meio intelectual  e  à  classe  pequeno-burguesa  à qual pertence  o  autor,  neste  caso,  personagem e  que  narra  em  primeira  pessoa:

Mas a minha presença altera esses hábitos. A casa da cidade é pequena, os filhos nascem todos os anos, e Francisco Amaro não quer ampliá-la, quer construir uma nova, moderna, ao seu gosto e feitio, mas isso demanda muito dinheiro, tem que esperar ainda uns tempos, estar mais folgado. Assim, recolho-me à fazenda, o que é insofismavelmente mais agradável, Francisco  Amaro transfere-se também para ela com a mulher e a criançada, a negra Mercedes fica para fazer o almoço dele na cidade, vindo somente aos sábados, e as noites são nossas, embora a mudança lhe traga o sacrifício de ter de madrugar e dormir mais tarde, pois as conversas são espichadas e muita matéria rememorativa de ordem frescária tem de ser versada fora do alcance da suspicaz Turquinha, que, quando chegam dez horas, não se agüenta mais de sono e boceja e se espreguiça os olhos da maneira mais insistente, sem que tais práticas condoam o coração empedernido do esposo (REBELO, 2002b, p. 181).


            Há um  certo pessimismo enquanto a narrativa vai  desenrolando as relações de poder do Estado Novo, transgredindo o discurso oficial, conforme o texto a seguir:

Pedida pelo Presidente a prorrogação do estado de guerra por mais noventa dias, alegando que “não cessaram as atividades subversivas de ordem social. Diligências policiais ainda lograram, nestes últimos dias, descobrir células extremistas perigosas, não apenas pelos seus expedientes sub-reptícios de propaganda, senão também pela pertinácia dos seus propósitos criminosos.”
Tirando os sonhadores ou os indiferentes, ninguém tem dúvidas – a Câmara irá ceder. Cléber Da Veiga modula como tribuno é:
- Caminhamos para uma ditadura, para a total desmoralização! Isso não é mais que a amostra do pano. O alfaiate do Catete está de tesoura em punho (REBELO, 2002b, p. 204).


            É possível observar dois  tipos de relação do personagem-narrador  no decorrer da construção da narrativa.        No primeiro, o narrador-personagem relaciona-se com o leitor fazendo-lhe confidências. Nesse plano, apresenta as mulheres que para ele tiveram importância:a mãe, a quem admirava e de quem sente saudade; a mulher amada , a quem gostaria de ter dominado e não pôde; a irmã, de quem gostava muito, porém, dominadora  em  demasia em  relação ao cunhado. De forma um pouco  negativa, a  prima  com fumaças aristocráticas, que tratava com ironia  e  a  mulher, de quem mantém-se  afastado  e  que  amargou  parte  de  sua  vida.  Isso justifica a  epígrafe  dos  três  tomos,  citação emprestada  de  Memórias de Minha Vida Morta (de George Moore): “A memória de todos  os  homens  é  um  espelho  de  mulheres  mortas.”
            No segundo tipo de relação, o narrador  apropria-se  do  discurso  do outro  valendo-se  nesse processo,  do diálogo, da paródia, da citação, das notícias jornalísticas e  radiofônicas. Assim,  ele  compõe  o  perfil  cosmopolita  da  cidade, num  período  totalitário. Com estes  matizes,  ele  pinta  o  retrato   da  capital  do  Estado  Novo, cenário  da  repressão  e  do  totalitarismo,  mesclado  com  as reuniões  secretas  de que  participavam  pessoas  conhecidas  e  as  prisões  efetuadas  nesse  período.
            Marques Rebelo utiliza-se o máximo possível da linguagem coloquial e reproduz na fala dos personagens  expressões  em  uso  a  na  época, tendo como exemplo as falas dos personagens sobre a promulgação da Constituição em 1937:

- Vamos ter panos para mangas, meu amigo! (Pedro Morais).
- Bambochata sulamericana. Ditadura de opereta... (Alarico do Monte).
- Talvez sejam as piores, as mais avacalhantes. Tais como a merda, quanto mais mole mais emporcalha (Saulo Pontes).
- Puxa, Saulo! Você está melhorando. Já diz a palavra merda... (José Nicácio) (REBELO, 2002b, p. 306-307).


            O ensaísta Houaiss (1960, p. 301)  chama atenção para o estilo de Marques Rebelo, observando que:

a substância  de  sua  mentação  não  é  “literária” ou de segunda mão, mas vivida e sentida originalmente, numa amorosa identificação com o objeto de sua criação. Ademais, não lhe sai a palavra fluente e impulsiva (...) nem medida e embelecida (...) mas sim justaposta ao pensamento, sofrida,  angustiosamente sofrida, em que a luta pelo estilo não é apenas a luta por uma beleza ideal, mas para uma eficácia com o máximo de economia expressional.

            Segundo Bosi (2006), na produção ficcional de Marques Rebelo cumpre-se a promessa esboçada pelo Modernismo de 22: a da prosa urbana moderna. A obra rebeliana, pelos temas e alguns traços estilísticos insere-se na linha de Manuel  Antônio de Almeida, Machado de Assis e de Lima Barreto. Com esses autores Marques Rebelo aprendeu a manejar os difíceis processos do distanciamento, o que lhe permitiu contar seus casos de infância e do cotidiano com uma objetividade que não lhe permitiram recair no transbordamento romântico.
            Houaiss (1960) foi quem primeiro escreveu sobre O Espelho Partido. Para ele, Rebelo havia escrito um diário íntimo contendo todo um ciclo de nossa história, que vai do fim do império até os nossos dias. A obra abriga uma variedade muito grande de personagens  de todas as classes sociais e de todos os matizes ideológicos. Desfilam malandros e escritores, escultores e poetas, pintores, sambistas, atrizes, jornalistas, enfim, há uma mistura de personagens reais com os inventados, sempre ziguezagueando entre o plano do indivíduo e o social.
            Nesta linha de pensamento, Frungillo (2007) mostra que o Trapicheiro é construído sob a forma de diário de um escritor. É um diário íntimo, não só os acontecimentos do presente são relatados, mas abre-se espaço para as recordações do narrador. Veja-se a seguir:

E também há balanços inquietantes: permanece o estado de sítio e jornalistas são presos; vota-se um abono provisório para o funcionalismo, porque o custo da vida cresce sem peias; o escritor Lobato explica, em violenta e documentada carta-aberta, porque o Brasil não tira petróleo, nem deixa ninguém tirá-lo; a Itália invade a Abissínia em guerra de expansão colonialista, e os abexins, superiores em números e inferiores em armas, infinitamente inferiores ante a conivente apatia das nações ditas civilizadas, se defendem como podem, inflingindo não poucas vergonhosas derrotas ao conquistador; e Getúlio falando aos brasileiros, na noite de São Silvestre, anatematiza o comunismo, que se alicerçando no conceito materialista da vida, constitui-se o inimigo mais perigoso da civilização cristã (REBELO, 2002b, p. 21).

            A ação de O Trapicheiro se localiza num espaço de tempo entre o passado e o presente, num momento de transição em que muito que foi e está condenado a desaparecer ainda existe, conforme a seguir:

A República era inevitável, mas foi prematura. Poderia esperar que o Imperador fechasse os olhos. Estava ele velho, gasto, no fim, e amava a sua terra, não merecia ser enxotado como foi. Os erros que o acusavam, quem não os teve politicamente? Que é a política, monarquista ou republicana, senão um cipoal de erros e conjunturas? A República está ai, e as mesmas falhas imperiais se repetem. Todos os nossos problemas fundamentais permanecem sem solução, com retóricos panos quentes alguns, nada mais que panos quentes e discursos. A Abolição, que deu com o trono por terra, agravou-os, por sinal. Não estávamos aparelhados para a emancipação, absolutamente não estávamos, como ainda não estamos para a efetivação de transformações radicais. Se a escravidão era um crime, não menor crime foi o de liberar repentinamente criaturas que não tinham condições para criar a sua própria subsistência. Arrasou-se a nossa débil economia, cega, mas secularmente baseada no braço escravo, e não se construiu uma massa de entes livres e conscientes. Substituiu-se uma nódoa por outra, não sei se ainda mais grave e ignominiosa. Tinha-mos cativos e hoje temos párias. Quantos anos teremos de suportar esse desequilíbrio social, essa falsa alforria, se não foram estabelecidos meios que pudessem amparar essas crianças grandes e indefesas? (REBELO, 2002b, p. 62).
                         
            Por outro lado, Brasil (1982) condena a linguagem historicista de O Trapicheiro, que envereda pelo documento, pelo registro dos fatos históricos que perturbariam a obra. Censura a mistura de ficção e realidade constantes na obra e se espanta diante da indefinição do gênero. Para ele, a obra acaba “não sendo diário, nem memória, nem depoimento, nem ficção” (1982, p. 61-63). 
            Coerente com esses pensamentos, Jobim (1960) nega qualidade de romance à obra e comenta que uma das falhas principais estaria no propósito de focalizar os aspectos políticos, sociais, econômicos e culturais bem longe da realidade.
            Apesar dessas contradições, O Trapicheiro é considerado uma obra-prima da literatura nacional segundo os críticos, pois teve a capacidade de mostrar o impacto das grandes transformações que ocorriam na época, de sua cidade e de si, conforme o texto a seguir:

Papai acompanhava com o dedo aliadófilo os mapas nos jornais. Os canhões de Verdun vinham ecoar na casa da Tijuca. Sombras de mangueiras e tristes serenatas ao frio luar das madrugadas. E o gato cinzento, sorrateiro, maldoso, espreitando pelo jardim o vôo colorido das minhas borboletas. (REBELO, 2002b, p. 58).      
             
            E não é só isso, Raquel de Queirós considera a crítica de O Trapicheiro apologética e por isso, ela foi de grande isenção ao citar: “Panorama de uma época, retrato estilizado, terno ou cruel de uma sociedade e seus principais figurantes. O Trapicheiro representa realmente o que tínhamos o direito de esperar do grande escritor que é Marques Rebelo”. (REBELO, 2002b, contracapa).




CONSIDERAÇÕES FINAIS

            A maioria dos teóricos mostra a relevância de Marques Rebelo nas letras nacionais e, como importante representante do Modernismo brasileiro. Sua obra O Trapicheiro é testemunha disso.
            Influenciado pelas transformações que ocorriam na época que foi delineada como a 2ª. Fase do Modernismo, O Trapicheiro mostra uma era de incertezas, na qual praticamente todos os personagens caminham em direção a um futuro deixando transparecer suas dúvidas, anseios, emoções, receios e desejos.
            É neste cenário de insatisfação que Rebelo faz uma ponte entre os eventos da época, como a efervescência das idéias fascistas, comunistas e socialistas que pairavam no mundo, com o contexto da cidade do Rio de Janeiro, que atravessava um período de regeneração imposta por Getúlio Vargas, que queria a todo custo transformar a cidade num espaço dinâmico da política nacional e uma espécie de vitrine da modernização do país.
            Concluindo, O Trapicheiro é excelente fonte de consulta para aqueles que querem conhecer os mais variados aspectos da vida brasileira nos anos de 1936 a 1938. A obra contribuiu para a formação da identidade nacional a partir daquela data.
               

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Carlos Drummond. Ta’i. In: ROSSETI, M.B. Brasil: 1º tempo modernista 1917-1929.  Documentação. São Paulo: I.E.B., 1972.

BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo, Editora Cultrix, 2006.

BRASIL, Assis. A técnica de ficção brasileira.  Rio: Nórdica, 1982.

CARPEUX, Otto Maria. Livros na mesa.  Rio: São José, 1960.

COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil.  São Paulo: Global, 1999.

COSTA, Marta Morais da. Estudos sobre o Modernismo.  Curitiba: Criar, 1982.

FRUNGILLO, Mário Luiz. O Rio é o mundo: sobre Marques Rebelo no seu centenário.  Revista Rio de Janeiro, n. 20-21, jan.-dez. 2007. Disponível em: ebookpedia.net/.../a-estrela-sobe-de-marques-rebelo-.html - Estados Unidos. Acesso em: 23 set. 2010.

GOMES, Renato Cordeiro.  Todas as cidades, a cidade. Literatura e experiência urbana.  Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

HOUAISS, Antonio. Crítica avulsa.  Salvador: Livraria Progresso, 1960.

JOBIM, Renato. Crítica.  Rio: Livrarias São José, 1960.

QUEIRÓS, Raquel de. Contracapa da 1ª. ed. de O Trapicheiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.

REBELO, Marques. A mudança.  Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002a.

______. O Trapicheiro. Vol.1, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2002b.

RODRIGUES FILHO, Nelson.  Revista Rio de Janeiro, n.20-21, jun.-dez., 2007.

SEVCENKO, Nicolau. A Capital Irradiante: técnica, ritmos e ritos do Rio. In: ____ (org.) História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. v. 3.

TRIGO, Luciano. Marques Rebelo – mosaico de um escritor. Coleção Perfis do Rio. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.





[1] Curso concluído pelo pós-graduando: Concluinte do Curso de Pós-Graduação lato sensu – Especialização em Ensino de Português e Respectivas Literaturas.

[2] Negociante que compra ou vende obras de arte, especialmente quadros.
[3] Movimento literário e artístico do início do século XX, tendo como objetivo o rompimento com o tradicionalismo.

2 comentários:

  1. Pena que um escritor do naipe de Marques Rabelo esteja praticamente esquecido em uma escala maior de público. Na minha infância alguns de seus livros via na estante do meu pai. Somente ao acaso, também da mesma estante, deparei-me recentemente com "Os dez mandamentos" dez contos de dez notáveis escritores, publicação de 1965 pela Editora Civilização Brasileira onde Marques Rebelo é um deles (Guardar Domingos e Festas - Conto à la Mode). Narra sobretudo, com fina ironia, os dias que antecedem o golpe de 1964 não tão distantes dos dias atuais onde golpes se sobrepõem a golpes. Corri a ler sobre o escritor carioca e deparei-me também aqui com este antigo. Compreendi melhor nuances do escritor, um mestre que merecia e merece ser revisitado, e muito!
    Esse artigo dá essa colaboração.
    Luiz Eduardo Oliva

    ResponderExcluir