PÓS-GRADUAÇÃO
BAGOZZI
NÚCLEO
DE CIÊNCIAS DA VIDA E DA SOCIEDADE
CURSO
DE PÓS-GRADUAÇÃO lato sensu –
ESPECIALIZAÇÃO EM
ENSINO
DE LÍNGUA PORTUGUESA E RESPECTIVAS LITERATURAS
CARMEN
LUIZA FILLIES
MARQUES REBELO: UM MODERNISTA ESQUECIDO
Carmen Luiza Fillies
CURITIBA
2010
MARQUES REBELO: UM MODERNISTA ESQUECIDO
Carmen Luiza Fillies[1]
RESUMO
Há
pouco mais de cem anos nascia Marques Rebelo, pseudônimo de Eddy Dias da Cruz, um escritor e jornalista que
transitou por vários gêneros textuais como: crônica, ensaio, conto, romance,
literatura infantil, biografias, literatura didática entre outros. O presente
artigo tem como propósito apresentar Marques Rebelo através de sua obra O
Trapicheiro (primeiro volume da trilogia O Espelho Partido). A obra está
organizada na forma de um diário, abrangendo o período de 1936 a 1945 tendo como
ambiente a cidade do Rio de Janeiro. Esta pesquisa justifica-se, pois vai
mostrar algumas críticas e aspectos da obra em questão, deixando claro que é
preciso não deixar cair no esquecimento esta obra de importância ímpar para a
literatura nacional. Outro argumento consiste em que através dessa obra
busca-se compreender não só os ciclos da história pátria e da cidade do Rio de
Janeiro, mas também o que ia no íntimo de Marques
Rebelo e como ele deixou aflorar toda a sua criatividade através da obra.
Palavras-chave: Marques Rebelo; obra;
O Espelho Partido; O Trapicheiro; Rio de
Janeiro.
1
INTRODUÇÃO
Falar
de Marques Rebelo é relembrar a história do Rio de Janeiro na década de trinta.
A cidade foi palco das grandes crises e transformações por que passou o País
naquela época.
Para
Rebelo, o Rio era o mundo. Ele via a cidade como a própria destinação do homem
contemporâneo. Motivado por estes aspectos, Rebelo escreveu romances, contos,
novelas, crônicas, literatura infantil e muitos outros.
Seu
talento literário foi amplamente reconhecido pela crítica. Para homenagear o
Rio de Janeiro, ele projetou escrever a obra O Espelho Partido, dividida em
sete volumes, mas conseguiu escrever apenas três volumes que são: O Trapicheiro
(1959), A Mudança (1963) e A Guerra Está
em Nós (1968).
Levando
em conta esses aspectos, esta pesquisa tem em vista reapresentar Marques Rebelo
ao público interessado em literatura modernista. Para isso, o objetivo geral
desta pesquisa é apresentar Marques Rebelo através de um dos volumes de sua
obra inacabada O Trapicheiro (primeiro
volume da trilogia O Espelho Partido).
Outros objetivos delineados neste trabalho são: relatar alguns traços
biográficos, localizar no tempo o autor e sua obra e esboçar análise da obra
apresentada. A temática desenvolvida será orientada mediante pesquisa
bibliográfica e documental, a partir do registro disponível em documentos
impressos, livros, artigos e outros.
2
TRAÇOS BIOGRÁFICOS DE MARQUES REBELO
Marques Rebelo é o nome literário de
Eddy Dias da Cruz, jornalista, contista, cronista, novelista, museólogo e marchand[2]
Vc pode retirar museólogo e marchand e escrever que foi incentivador das artes plásticas, tendo inclusive fundado o primeiro
museu de arte moderna do Brasil, O de Santa Catarina em 1948 e promovido a
primeira exposição de artistas modernos fora do país em 1945, exposição esta
que permitiu que pela primeira vez um crítico da arte estrangeiro escrevesse
sobre a produção brasileira. Trata-se do livro Vinte artistas brasileños, do argentino José Romero Brest.
Nasceu no dia 6 de janeiro de 1907, na rua Luís Barbosa, número 42, em Vila Isabel, na cidade
do Rio de Janeiro. Passou parte da infância parte em Vila Isabel e no
Trapicheiro, bairros cariocas, e parte em Barbacena onde fez o curso primário.
Após terminar os preparatórios, ingressou na Faculdade de Medicina, logo
abandonada para trabalhar no comércio.
Suas viagens pelo interior de São
Paulo, Minas e Rio lhe proporcionaram
experiências que o ajudariam a construir personagens que usaria mais
tarde em seus livros.
É difícil enquadrar Marques Rebelo
numa das duas mais representativas correntes literárias da década de 30, época
em que aparece e se afirma como escritor. Cronologicamente, o autor pertenceu à segunda
geração modernista. Nesta fase houve uma definição dos padrões modernistas que
priorizavam uma arte com fundo ideológico, retratando a sociedade e criticando
a situação em que se encontrava. A ironia é, então, largamente empregada.
Ocorre um amadurecimento e aprimoramento das idéias lançadas pela primeira
geração, direcionando e ampliando a temática das questões sociais. A linguagem
coloquial é então, bastante utilizada.
3
MARQUES REBELO E O MODERNISMO
O marco inicial do
Modernismo[3]
no Brasil foi a Semana da Arte Moderna em 1922 realizada no Teatro Municipal de
São Paulo. Neste evento, o principal acontecimento foi a exposição de Anita
Malfatti que pôs a público seus 53 quadros que causaram estranheza e até
críticas, pois constituíram novidade para o meio artístico (COUTINHO, 1999). (Aqui é complicado. A semana de arte de 22 foi gestada no Rio
por Manuel Bandeira, Di Cavalcanti e Villa Lobos e patrocinada por Paulo Prado.
A exposição da Anita ocorreu em 1917 e foi violentamente atacada por Monteiro
Lobato que praticamente destruiu a artista. Diz-se que a artista Tarsila do
Amaral também participou, o que não é verdade pois, como ela mesma afirma,
estava em Paris e só retornou ao Brasil em 1924. Oswald de Andrade frequentou
as apresentações e só depois elaborou o projeto antropofágico. Nas realidade o
evento mais marcante foram os concertos de Villa Lobos no terceiro e último do
que se chama de semana.de 22, pois foi o único participante que logo ganhou
fama internacional. Mário de Andrade
também não participou, mas logo dela se informou.)
A Primeira Fase do Modernismo
ocorreu no período de 1922 a
1930 e caracterizou-se por um maior compromisso dos artistas com a renovação
estética. Desde o começo o modernismo mostrou-se complexo e contraditório,
sendo sobretudo, um movimento que visava tirar o Brasil da estagnação
artística. Analisando-se os documentos da época, percebeu-se que “renovar era
preciso, em nome da liberdade e da originalidade” (COSTA, 1982, p. 99). Por
isso, o “modernismo brasileiro precisa abandonar de todo o respeito do papão da
tradição e... pegar na palavra tradição, virar, revirar, extrair o suco e
repudiar o bagaço” (ANDRADE citado por ROSSETI, 1972, p. 258-60).
A Segunda Fase do Modernismo, também
conhecida como Fase da Consolidação, abrangeu o período de 1930 a 1945, caracterizado
pelo predomínio da prosa de ficção. É neste período os ideais difundidos em
1922 se normalizam. Na década de 1930 ocorreram profundas transformações e
grande efervescência cultural.
O Rio de Janeiro nesta década de
1930 ostentava o título de capital da República, e “passou a ditar não só as
novas modas e comportamentos, mas acima de tudo, os sistemas de valores, o modo
de vida, a sensibilidade, o estado de espírito e
as disposições que articulam a modernidade como uma experiência existencial e
íntima” (SEVCENKO, 2001, p. 522).
Como se observa, o Rio de Janeiro
era uma espécie de vitrine para o Brasil e assumia o espírito modernizador que
se pretendia para toda a nação. É nesse ambiente que uma voz destoa da euforia
do progresso: era Marques Rebelo, para quem a modernidade representava “a
transformação grosseira e desnecessária da fisionomia da cidade” (GOMES, 1994,
p. 94).
Rebelo constata o
apagamento da memória urbana traçada na escrita das pedras dos monumentos, só
possível de resgatar através do livro, lugar de inscrição do passado frente ao
que se vai transformando em
ruínas. Junto a elas, o cronista resiste, identificando-se à
escada “sólida, granítica, destemorosa” – memória que protesta, inútil e
impotente, em oposição aos indiferentes operários, instrumento dos agentes do
progresso (GOMES, 1994, p. 94).
Marques Rebelo estreou em 1931 com o
volume de contos Oscarina que lhe valeu a reputação de renovador da arte do
conto. Foi nesta década de trinta que ele foi considerado o contista brasileiro
por excelência. Com a publicação de dois romances: - Marafa em 1935 e A Estrela
Sobe em 1939 – consolidaria sua posição como um dos escritores mais significativos
daquele período. Porém no romance cíclico O Espelho Partido, do qual foram
publicados três volumes, o escritor caiu num certo esquecimento e a imagem que
se teve dele não foi renovada (FRUNGILLO, 2007, p. 119-120).
É importante salientar que Marques
Rebelo tinha uma literatura voltada ao homem comum, o fato banal, os derrotados
e todos aqueles indefinidos socialmente. Para se ter uma idéia de sua
literatura, veja-se sua crítica ao Estado Novo para demonstrar sua indignação
diante da demolição de igrejas seculares.
Teremos a Avenida
Presidente Vargas, que estava faltando... O prefeitóide está entusiasmado –
será monumental, duas vezes mais larga do que a Avenida Rio Branco, não sei
quantos quilômetros de comprimento! Para rasgá-la desaparecerá uma porção de
ruas estreitas, com os seus sobradinhos coloniais, casas que, como diz Machado,
poderiam nãos ser belas, mas eram velhas, desaparecerá a linda igreja de São
Pedro, dourada e redonda, porque os idealizadores da grande artéria se negam a
ouvir o Serviço do Patrimônio Histórico e desviar centímetros o eixo traçado
pelos urbanistas de cacaracá (REBELO, 2002a, p. 389)
Desse modo, fica claro que o Rio de
Janeiro foi o principal personagem de Marques Rebelo, que conseguiu retratar a
cidade sob os vários olhares que lançou sobre ela.
3
ANÁLISE DA OBRA O TRAPICHEIRO DE MARQUES REBELO
Como se verá a
seguir, O Trapicheiro é o primeiro
volume e objeto de estudo deste trabalho e tem o formato de um diário produzido
entre 1936 e 1938. Nesse volume o narrador-autor reporta-se a nostálgicas
lembranças da infância e adolescência.
O pano de fundo por onde circulavam os inúmeros personagens
que compõem essa obra é o Rio de Janeiro, berço e orgulho do escritor. O Rio
mostrado ao longo dessa obra é a cidade cosmopolita que acompanha pelo
rádio, com interesse e apreensão as notícias relacionadas à tensão que
envolvia nesse período os países europeus. A situação internacional favorecia a
solução autoritária. Fascismo e nazismo, na época, pareciam a muitos, regimes
mais dinâmicos e melhores que as decadentes democracias. E foi nesse clima
que instituiu-se no Brasil o Estado Novo, com o golpe perpetrado por
Getúlio Vargas, em 10 de novembro de 37. Enquanto desenrolava-se a crise
internacional de 1930 a
1938, a
situação nacional é, juntamente, noticiada, discutida e analisada pelos
personagens de O Trapicheiro. Dentre esses personagens, muitos foram presos
pelo regime ditatorial estabelecido. Esse romance vai descrevendo em seus
fragmentos de diário, os vários aspectos da vida brasileira, com os reflexos do
que vai pelo mundo no período de 1936
a 1938 (RODRIGUES FILHO, 2007).
A objetividade, que é o pressuposto
do neorrealismo de Marques Rebelo, tem uma matriz lírica. Esse lirismo reside
no narrador de episódios infantis, como em Caso de Mentira, Circo de Coelhinhos
e ao evocar destinos malogrados em
A Mudança e Um Destino. Na
série O Espelho Partido, ainda aparecem vigorosamente as raízes
memorialistas. O espaço
onde desenrola-se a
narrativa é o Rio
de Janeiro. A fictícia
Guarapira localiza-se em Minas Gerais. É em
Guarapira que vive
um dos melhores
amigos de Eduardo (Marques Rebelo), Francisco Amaro (na realidade, Francisco Inácio
Peixoto). A bucólica
Guarapira é, na
realidade, a cidade
de Cataguases. E, essa cidadezinha do interior mineiro foi, à época em que viveram Marques Rebelo e (José Inácio Peixoto) Na realidade o industrial Francisco
Inácio Peixoto, um dos fundadores do movimento Verde junto com Rosario Fusco,
Ascânio Lopes e Guilhermino César. (espécie de Mecenas de vários
artistas daquela época), o berço do Modernismo brasileiro em vários
aspectos, não apenas no campo da literatura, mas também na arquitetura,
pintura, escultura e outras manifestações artísticas de vanguarda (TRIGO,
1996). O cinema brasileiro começa em Cataguases com
Humberto Mauro.
Carpeux (1960, p. 262-266) comenta O
Trapicheiro:
É um livro deliciosamente escrito, por um
escritor que insiste pouco, afirma pouco e não conclui, resolvendo-se num
estilo que revela uma atitude especificamente estética em face da vida. Sabe ir
do humorismo malicioso, da sátira mais cruel, até o lirismo comovido, a emoção
profunda, tornando a obra imensamente divertida e profundamente comovida.
Refletindo sobre a pouca penetração do escritor em certos setores da crítica,
atribui-a a um motivo de todo externo: a malediência de Rebelo, que sempre
soube fazer inimigos à esquerda e à direita. Para ele, O Trapicheiro é uma obra
de valor extraordinário.
Rebelo retrata um período em que o
Rio de Janeiro mostrava sua modernidade de centro turístico, mas ainda
conservava faixas de vida suburbana, estratificada, própria de uma classe média
que remontava aos tempos de D. João VI. A revolução industrial e o entusiasmo
imobiliário tomaram conta da orla da praia, mas muito lentamente é que
alteraram a fisionomia da esfera dos morros. Nesse espaço havia os bairros que,
se por um lado dependiam dos negócios e burocracia do centro, relutavam em
integrar-se ao espírito mercantil e cosmopolita da nova cidade.
O jornalista Trigo (1996) escreveu
um livro sobre Marques Rebelo que integra a coleção Perfis do Rio, onde é
possível identificar algumas personalidades reais dentre as personagens
inseridas nesses três volumes A obra, concebida para homenagear a cidade do Rio
de Janeiro, acabou evoluindo para a autobiografia, a memória, o cronograma
histórico, o cinejornal e o documentário, e ganhou a forma de um diário. A
imagem refletida nesse espelho é o Rio de Janeiro, entre 1936 a 1944 (que deveria
chegar até 1954, em sete volumes).
Como exemplo, pode-se ler na obra O
Trapicheiro de Marques Rebelo (2002b), no segundo parágrafo da página 78, linha
7 em diante, lembrança de Tatá, amigo de infância : “(...) Sente saudades.
Pensa em Tatá, companheiro inseparável de torcida, afastado pelo casamento.” No
universo de O Trapicheiro, transitam mais de duzentos
personagens. Não há linearidade na narrativa: há uma mistura de ficção,
autobiografia e crítica de costumes.
A narrativa é mista
no decorrer dos
três tomos: ora em primeira
pessoa, ora em terceira. No plano da
narração pode-se observar elementos indicadores da instância do discurso.
Os pronomes na
primeira pessoa estabelecem
contato entre narrador
e leitor, bem como os
possessivos. Isto pode ser observado
nos trechos:
Primeira
pessoa (10 de janeiro ) (...) “Tocou-me o sorriso compreensivo e maternal.”(p. 11, primeiro parágrafo,
linha 8).
(24 de dezembro): (...) “Submeto-me ao protocolo natalino, engajo-me no extremo da cola, seu Valença na minha frente,
em atitude acapoeirada, rosnando epigramas pouco asseados, Odilon atrás
achando-lhe uma graça insopitável.”(p. 169, início do terceiro parágrafo).
Terceira
pessoa: (20 de agosto): “Lobélia atirou-lhe umas palavras hoje, na porta da cozinha, que o feriram muito.
(Alexandre se arrastava). Ela tinha
razão.(...)(p. 114, terceiro parágrafo) (REBELO, 2002b).
Como afirma Rodrigues Filho (2007),
a obra de Marques Rebelo, tem especial
relevância esta série denominada O Espelho Partido, idealizada para ser composta em sete tomos, mas interrompida pela morte do autor. O
período abrangido por O Trapicheiro, A Mudança
e A Guerra Está em Nós, coincide com o Estado Novo em termos nacionais
e, no plano internacional, com a ascensão do nazi-fascismo.
Como
o autor empregou
a técnica do
diário, influência declarada
de Pierre-Jules Renard (nascido em
22/02/1864, Châlons Du Maine, falecido em 22/05/1910 em Paris), o tempo, dentro
da narrativa será marcado como uma lembrança
atual, escolha que se opera na memória, não como se reproduzisse o passado,
(mas um” presente do
passado “ agostiniano, que se vai desdobrando em consciência.
Desenvolve-se um processo de montagem intertextual, acolhendo
fragmentos de discursos, em vários registros e com vários tratamentos, que vão
da citação à paródia, naquilo que Bakhtin atribui ao ser próprio do romance: “reapresentação do discurso de outrem”) (RODRIGUES FILHO,
2007).
Assim, a opção por este formato
textual traz consigo uma pluralidade de pontos de vista, confundindo as
dimensões individual, intimista e
autobiográfica com a histórico-cultural partindo de temas
constantes como o tempo, a morte, as
mulheres, as relações pessoais e sociais, a infância, a adolescência e a vida adulta. Nesse amplo painel são
mostrados saberes e costumes, ecos de discursos
que vão promovendo o desfile de artistas, políticos, burocratas,
escritores, intelectuais – mal ocultados
sob os nomes fictícios – no espaço do Rio de Janeiro, onde ocorre a ação
narrada.
Em
O Trapicheiro, ocorre
um deslocamento do
eixo narrativo, em relação às
obras anteriores de Marques Rebelo, que enfocavam os
marginalizados da sociedade representados por prostitutas, boêmios, malandros,
famílias pobres, sonhadoras. Nesta, o
foco volta-se ao
meio intelectual e à
classe pequeno-burguesa à qual pertence o
autor, neste caso,
personagem e que narra
em primeira pessoa:
Mas a minha presença altera
esses hábitos. A casa da cidade é pequena, os filhos nascem todos os anos, e
Francisco Amaro não quer ampliá-la, quer construir uma nova, moderna, ao seu
gosto e feitio, mas isso demanda muito dinheiro, tem que esperar ainda uns
tempos, estar mais folgado. Assim, recolho-me à fazenda, o que é
insofismavelmente mais agradável, Francisco Amaro transfere-se também para ela com a
mulher e a criançada, a negra Mercedes fica para fazer o almoço dele na cidade,
vindo somente aos sábados, e as noites são nossas, embora a mudança lhe traga o
sacrifício de ter de madrugar e dormir mais tarde, pois as conversas são
espichadas e muita matéria rememorativa de ordem frescária tem de ser versada
fora do alcance da suspicaz Turquinha, que, quando chegam dez horas, não se
agüenta mais de sono e boceja e se espreguiça os olhos da maneira mais insistente,
sem que tais práticas condoam o coração empedernido do esposo (REBELO, 2002b,
p. 181).
Há um certo pessimismo enquanto a narrativa vai desenrolando as relações de poder do Estado
Novo, transgredindo o discurso oficial, conforme o texto a seguir:
Pedida pelo
Presidente a prorrogação do estado de guerra por mais noventa dias, alegando
que “não cessaram as atividades subversivas de ordem social. Diligências
policiais ainda lograram, nestes últimos dias, descobrir células extremistas
perigosas, não apenas pelos seus expedientes sub-reptícios de propaganda, senão
também pela pertinácia dos seus propósitos criminosos.”
Tirando os sonhadores
ou os indiferentes, ninguém tem dúvidas – a Câmara irá ceder. Cléber Da Veiga
modula como tribuno é:
- Caminhamos para uma
ditadura, para a total desmoralização! Isso não é mais que a amostra do pano. O
alfaiate do Catete está de tesoura em punho (REBELO, 2002b, p. 204).
É possível observar dois tipos de relação do personagem-narrador no decorrer da construção da narrativa. No primeiro, o narrador-personagem
relaciona-se com o leitor fazendo-lhe confidências. Nesse plano, apresenta as
mulheres que para ele tiveram importância:a mãe, a quem admirava e de quem
sente saudade; a mulher amada , a quem gostaria de ter dominado e não pôde; a
irmã, de quem gostava muito, porém, dominadora
em demasia em relação ao cunhado. De forma um pouco negativa, a
prima com fumaças aristocráticas,
que tratava com ironia e a
mulher, de quem mantém-se
afastado e que
amargou parte de sua vida.
Isso justifica a epígrafe dos
três tomos, citação emprestada de
Memórias de Minha Vida Morta (de George Moore): “A memória de todos os homens é
um espelho de
mulheres mortas.”
No segundo tipo de relação, o
narrador apropria-se do
discurso do outro valendo-se
nesse processo, do diálogo, da
paródia, da citação, das notícias jornalísticas e radiofônicas. Assim, ele
compõe o perfil
cosmopolita da cidade, num
período totalitário. Com estes matizes,
ele pinta o
retrato da capital
do Estado Novo, cenário
da repressão e
do totalitarismo, mesclado
com as reuniões secretas
de que participavam pessoas
conhecidas e as
prisões efetuadas nesse
período.
Marques Rebelo utiliza-se o máximo
possível da linguagem coloquial e reproduz na fala dos personagens expressões
em uso a
na época, tendo como exemplo as
falas dos personagens sobre a promulgação da Constituição em 1937:
- Vamos ter panos
para mangas, meu amigo! (Pedro Morais).
- Bambochata
sulamericana. Ditadura de opereta... (Alarico do Monte).
- Talvez sejam as
piores, as mais avacalhantes. Tais como a merda, quanto mais mole mais
emporcalha (Saulo Pontes).
- Puxa, Saulo! Você
está melhorando. Já diz a palavra merda... (José Nicácio) (REBELO, 2002b, p.
306-307).
O ensaísta Houaiss (1960, p. 301) chama atenção para o estilo de Marques
Rebelo, observando que:
a substância
de sua mentação
não é “literária” ou de segunda mão, mas vivida e
sentida originalmente, numa amorosa identificação com o objeto de sua criação.
Ademais, não lhe sai a palavra fluente e impulsiva (...) nem medida e
embelecida (...) mas sim justaposta ao pensamento, sofrida, angustiosamente sofrida, em que a luta pelo
estilo não é apenas a luta por uma beleza ideal, mas para uma eficácia com o
máximo de economia expressional.
Segundo Bosi (2006), na produção
ficcional de Marques Rebelo cumpre-se a promessa esboçada pelo Modernismo de
22: a da prosa urbana moderna. A obra rebeliana, pelos temas e alguns traços
estilísticos insere-se na linha de Manuel
Antônio de Almeida, Machado de Assis e de Lima Barreto. Com esses
autores Marques Rebelo aprendeu a manejar os difíceis processos do
distanciamento, o que lhe permitiu contar seus casos de infância e do cotidiano
com uma objetividade que não lhe permitiram recair no transbordamento
romântico.
Houaiss (1960) foi quem primeiro
escreveu sobre O Espelho Partido. Para ele, Rebelo havia escrito um diário
íntimo contendo todo um ciclo de nossa história, que vai do fim do império até
os nossos dias. A obra abriga uma variedade muito grande de personagens de todas as classes sociais e de todos os
matizes ideológicos. Desfilam malandros e escritores, escultores e poetas,
pintores, sambistas, atrizes, jornalistas, enfim, há uma mistura de personagens
reais com os inventados, sempre ziguezagueando entre o plano do indivíduo e o
social.
Nesta linha de pensamento, Frungillo
(2007) mostra que o Trapicheiro é construído sob a forma de diário de um
escritor. É um diário íntimo, não só os acontecimentos do presente são
relatados, mas abre-se espaço para as recordações do narrador. Veja-se a
seguir:
E também há balanços
inquietantes: permanece o estado de sítio e jornalistas são presos; vota-se um
abono provisório para o funcionalismo, porque o custo da vida cresce sem peias;
o escritor Lobato explica, em violenta e documentada carta-aberta, porque o
Brasil não tira petróleo, nem deixa ninguém tirá-lo; a Itália invade a
Abissínia em guerra de expansão colonialista, e os abexins, superiores em
números e inferiores em armas, infinitamente inferiores ante a conivente apatia
das nações ditas civilizadas, se defendem como podem, inflingindo não poucas
vergonhosas derrotas ao conquistador; e Getúlio falando aos brasileiros, na
noite de São Silvestre, anatematiza o comunismo, que se alicerçando no conceito
materialista da vida, constitui-se o inimigo mais perigoso da civilização
cristã (REBELO, 2002b, p. 21).
A ação de O Trapicheiro se localiza
num espaço de tempo entre o passado e o presente, num momento de transição em
que muito que foi e está condenado a desaparecer ainda existe, conforme a
seguir:
A República era
inevitável, mas foi prematura. Poderia esperar que o Imperador fechasse os
olhos. Estava ele velho, gasto, no fim, e amava a sua terra, não merecia ser
enxotado como foi. Os erros que o acusavam, quem não os teve politicamente? Que
é a política, monarquista ou republicana, senão um cipoal de erros e
conjunturas? A República está ai, e as mesmas falhas imperiais se repetem.
Todos os nossos problemas fundamentais permanecem sem solução, com retóricos
panos quentes alguns, nada mais que panos quentes e discursos. A Abolição, que
deu com o trono por terra, agravou-os, por sinal. Não estávamos aparelhados
para a emancipação, absolutamente não estávamos, como ainda não estamos para a
efetivação de transformações radicais. Se a escravidão era um crime, não menor
crime foi o de liberar repentinamente criaturas que não tinham condições para
criar a sua própria subsistência. Arrasou-se a nossa débil economia, cega, mas
secularmente baseada no braço escravo, e não se construiu uma massa de entes
livres e conscientes. Substituiu-se uma nódoa por outra, não sei se ainda mais
grave e ignominiosa. Tinha-mos cativos e hoje temos párias. Quantos anos
teremos de suportar esse desequilíbrio social, essa falsa alforria, se não
foram estabelecidos meios que pudessem amparar essas crianças grandes e
indefesas? (REBELO, 2002b, p. 62).
Por outro lado, Brasil (1982)
condena a linguagem historicista de O Trapicheiro, que envereda pelo documento,
pelo registro dos fatos históricos que perturbariam a obra. Censura a mistura
de ficção e realidade constantes na obra e se espanta diante da indefinição do
gênero. Para ele, a obra acaba “não sendo diário, nem memória, nem depoimento,
nem ficção” (1982, p. 61-63).
Coerente com esses pensamentos,
Jobim (1960) nega qualidade de romance à obra e comenta que uma das falhas
principais estaria no propósito de focalizar os aspectos políticos, sociais,
econômicos e culturais bem longe da realidade.
Apesar dessas contradições, O
Trapicheiro é considerado uma obra-prima da literatura nacional segundo os
críticos, pois teve a capacidade de mostrar o impacto das grandes
transformações que ocorriam na época, de sua cidade e de si, conforme o texto a
seguir:
Papai acompanhava com o dedo aliadófilo os
mapas nos jornais. Os canhões de Verdun vinham ecoar na casa da Tijuca. Sombras
de mangueiras e tristes serenatas ao frio luar das madrugadas. E o gato
cinzento, sorrateiro, maldoso, espreitando pelo jardim o vôo colorido das
minhas borboletas. (REBELO, 2002b, p. 58).
E não é só isso, Raquel de Queirós
considera a crítica de O Trapicheiro apologética e por isso, ela foi de grande
isenção ao citar: “Panorama de uma época, retrato estilizado, terno ou cruel de
uma sociedade e seus principais figurantes. O Trapicheiro representa realmente
o que tínhamos o direito de esperar do grande escritor que é Marques Rebelo”.
(REBELO, 2002b, contracapa).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A maioria dos teóricos mostra a
relevância de Marques Rebelo nas letras nacionais e, como importante
representante do Modernismo brasileiro. Sua obra O Trapicheiro é testemunha
disso.
Influenciado pelas transformações
que ocorriam na época que foi delineada como a 2ª. Fase do Modernismo, O
Trapicheiro mostra uma era de incertezas, na qual praticamente todos os
personagens caminham em direção a um futuro deixando transparecer suas dúvidas,
anseios, emoções, receios e desejos.
É neste cenário de insatisfação que
Rebelo faz uma ponte entre os eventos da época, como a efervescência das idéias
fascistas, comunistas e socialistas que pairavam no mundo, com o contexto da
cidade do Rio de Janeiro, que atravessava um período de regeneração imposta por
Getúlio Vargas, que queria a todo custo transformar a cidade num espaço
dinâmico da política nacional e uma espécie de vitrine da modernização do país.
Concluindo, O Trapicheiro é
excelente fonte de consulta para aqueles que querem conhecer os mais variados
aspectos da vida brasileira nos anos de 1936 a 1938. A obra contribuiu para a formação da
identidade nacional a partir daquela data.
REFERÊNCIAS
ANDRADE,
Carlos Drummond. Ta’i. In: ROSSETI,
M.B. Brasil: 1º tempo modernista
1917-1929. Documentação. São Paulo:
I.E.B., 1972.
BOSI,
Alfredo. História Concisa da Literatura
Brasileira. São Paulo, Editora
Cultrix, 2006.
BRASIL,
Assis. A técnica de ficção brasileira. Rio: Nórdica, 1982.
CARPEUX,
Otto Maria. Livros na mesa. Rio: São José, 1960.
COUTINHO,
Afrânio. A literatura no Brasil. São Paulo: Global, 1999.
COSTA,
Marta Morais da. Estudos sobre o
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[1] Curso concluído pelo pós-graduando:
Concluinte do Curso de Pós-Graduação lato
sensu – Especialização em Ensino de Português e Respectivas Literaturas.
[2] Negociante que compra ou vende obras
de arte, especialmente quadros.
[3] Movimento literário e artístico do
início do século XX, tendo como objetivo o rompimento com o tradicionalismo.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirPena que um escritor do naipe de Marques Rabelo esteja praticamente esquecido em uma escala maior de público. Na minha infância alguns de seus livros via na estante do meu pai. Somente ao acaso, também da mesma estante, deparei-me recentemente com "Os dez mandamentos" dez contos de dez notáveis escritores, publicação de 1965 pela Editora Civilização Brasileira onde Marques Rebelo é um deles (Guardar Domingos e Festas - Conto à la Mode). Narra sobretudo, com fina ironia, os dias que antecedem o golpe de 1964 não tão distantes dos dias atuais onde golpes se sobrepõem a golpes. Corri a ler sobre o escritor carioca e deparei-me também aqui com este antigo. Compreendi melhor nuances do escritor, um mestre que merecia e merece ser revisitado, e muito!
ResponderExcluirEsse artigo dá essa colaboração.
Luiz Eduardo Oliva