segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Sim, a pós-verdade é um conceito mentiroso!

Sim, a pós-verdade é um conceito mentiroso!

Pergunto-me a mim próprio por que razão se descobriu o conceito de pós-verdade quando tínhamos à mão uma palavra tão boa para referir o mesmo conceito. Não, não me refiro a inverdade, que já teve os seus tempos.
É mesmo m-e-n-t-i-r-a! MENTIRA!
A pós-verdade, dizem-nos, ocorre neste tempo e sociedade em que a verdade deixou de ser relevante. Rasgam as vestes, como se fosse a primeira vez na História que tal acontece. Não é verdade! É mera pós-verdade, ou como prefiro dizer: MENTIRA!
Conhecido versus desconhecido
O que aconteceu, então? Ocorreu que uma série de conceitos que tínhamos por verdadeiros, pelo menos desde o Iluminismo e mais convictamente após o positivismo e o marxismo, começaram a ser postos em causa, a desmoronar-se, a ir por água abaixo. O consenso existente e que foi claramente dominado por uma abordagem epistemológica que não era, nem podia ser neutra, afunda-se. Nas universidades, em cuja maioria o conhecimento antigo foi substituído por uma nova vulgata pós-moderna, a crise não podia ser maior. Afinal, o que nos andaram a impingir não só não se verifica como acontece o contrário. Penso que a ‘pós-verdade’ reside nessa perplexidade contraditória. Sartre, Chomsky e Boaventura Sousa Santos não tinham razão. Os mais pessimistas, como Isaiah Berlin, Raymond Aron ou Fernando Gil estavam mais próximos da verdade.
Isto podia não ser mau se, como quase sempre, a criança, neste caso, conceitos transcendentes como o da Verdade (com v grande) não estivesse a ir pelo ralo com a água do banho (frase querida a Lenine). Mas está.
Trump veio demonstrar que se pode mentir com quantos dentes se tem na boca, sem que daí surjam consequências, pelo contrário tem milhões a apoiá-lo. Isto é verdade, sem qualquer prefixo pós. Mas peço licença: pessoas mil vezes menos recomendáveis, como Hitler e Estaline, Mao e Pol Pot já o tinham feito. Ninguém se lembrou da dita pós-verdade na altura dos crematórios e dos campos de concentração e dos tiros na nuca ou dos mortos de fome por uma política dogmática e insana. É certo que o mundo não era global a esta escala, mas a técnica é velha. E a verdade ou é ou não é. O problema é que, para boa parte dos relativistas, a verdade não é. E assim a mentira também não pode ser. Por isso, a mentira tem a mais recente tradução no dicionário do relativismo: pós-verdade!
Diz Manuel Fonseca no comentário a este post de Pedro Norton ” As massas induzidas por notícias falsas, a informação inventada, é velha de séculos. Da Grécia e de Roma. Foi a pós-verdade que levou a cicuta à boca de Sócrates e já havia pós-verdade nas Catilinárias. Sem a pós-verdade Shakespeare não teria posto na boca de Marco António a arrebatada oratória que virou do avesso a multidão que deixa de incensar Brutus para logo lhe querer queimar a casa. Eu vi a pós-verdade a fazer correr sangue nas ruas de Luanda na transição para a independência e depois da independência… Eu vi, gerações e gerações viram a pós-verdade ainda ela não tinha nascido”. Tem razão. Tem muita razão.
Mas, afinal, quando falam de pós-verdade, de que verdade falam?
O bom relativista postula que não há verdades absolutas (o que é logicamente falso, porque para este postulado ser verdadeiro pelo menos uma verdade absoluta tem de existir – a que diz não haver verdades absolutas). Ao postular que não há verdades absolutas e que tudo depende do ponto de vista do observador, confunde dois conceitos, além de matar mais uns.
Por um lado confunde o conceito de verdade prática (filiada na razão prática), quase toda ela indefinível em absoluto, mas apenas através de conflitos de valores (clashes of values) com a Verdade transcendente, aquela platonicamente preexistia na Psyke antes de se juntar ao Soma (corpo). Bem sei que Sartre defendeu que antes do ser há o Nada (Néant, que é uma palavra maior do que nada, ausência, vazio) inaugurando um novo existencialismo formado apenas por construções sociais, no qual nem as construções sociais naturais têm praticamente lugar. Assim, não haveria qualquer Verdade fora do ser. É esta a questão que já opusera Kant a Benjamin Constant. A Verdade com V grande só pode ser absoluta no espaço da razão pura e não na prática. A novidade com os pós-modernos (que na verdade só o são depois de Lyotard os descrever em 1970 em  ‘A Condição Pós-Moderna’) é, dito depressa e mal, uma amálgama do que ficara do niilismo com os restos do marxismo (não o da URSS), de ultrapassagem do iluminismo e da tradição liberal para uma sociedade multicultural sem referências centrais ou transcendentais, que os críticos classificavam como tribalizada.
Ao contrário do que se possa pensar a pós-modernidade não se filia na tradição liberal (embora alguns o sustentem). A tradição liberal sendo certo que detesta verdades impositivas convive e defende os conceitos transcendentais. Isto significa o quê? Que há conceitos que estão para lá de cada um e que cada um toma o caminho que lhe parece mais apropriado para lhes tentar chegar. E que, por outro lado, há um espaço conhecido e ao alcance de todos onde se lida com o bom senso e com o conflito de valores para determinar qual o mais importante a cada momento – e aqui temos verdades que podem ser relativizadas em função das situações concretas (o célebre exemplo do fugitivo da Gestapo escondido em nossa casa que nos leva moralmente a mentir sobre o seu esconderijo, apesar da mentira no mundo da razão pura ser condenável).
Mas no espaço que nos transcende, porque não o conhecemos, as verdades têm de ser absolutas, de outro modo não teríamos referências. Caso não reconhecêssemos como absoluta a Verdade, a Liberdade, a Igualdade, a Fraternidade, a Justiça, a Honra, a Probidade e mais uma série de valores.
(Peço a fineza de não confundirem verdade transcendental, ou seja que transcende cada indivíduo, com verdade revelada, que é o do domínio da crença livre de cada um).
A ser assim, e socorrendo-me de uma imagem gráfica, imaginemos que uma clareira no centro de uma floresta corresponde ao nosso universo conhecido. O perímetro dessa clareira corresponde ao incognoscível. Quando dobramos a área do que é conhecido, dobramos a do que não é conhecido. É o que tem vindo a acontecer nas áreas científicas da chamada ciência dura. Se multiplicarmos por 100 o conhecido, multiplicamos por 100 o desconhecido. E esta relação só tem duas soluções: ou a floresta é finita – e o nosso conhecimento seria limitado, a determinada etapa do conhecimento, porque tudo era conhecido, ou o desconhecido será sempre muito superior ao conhecido.
Mas o positivismo e o materialismo histórico pensaram noutra forma de derrotar esta irritante constatação (que além de Kant, Rousseau já pensara). Como? Postulando que seria possível prever o que não se conhece. O materialismo histórico sabe o sentido da História; o positivismo sabe que a mais educação corresponde mais conhecimento e sabedoria e que, armados dessas duas armas, a natureza humana modifica-se. Cria-se um homem novo, um homem diferente, o homo informatus.
Ora estas ideias, talvez generosas foram-se, O homo informatus pode ser um trumpiano ou um adepto de Putin ou Erdogan. Os nossos pós-modernos, que diabolizaram Merkel têm-na agora como líder do mundo livre – tocha que lhe foi passada por Obama.
A frase do Eclesiastes: “Tudo o que foi será; tudo o que aconteceu, acontecerá. Não há nada novo debaixo do Sol”, que não fazia sentido na modernidade, parece voltar a galope, como dizia Destouches ao adaptar um verso de Horácio (“chassez le naturel, il revient au galop”). Nada do que era antigo fazia sentido para o espírito moderno. E, no entanto, o espírito liberal nunca quis matar os conservadores nem os progressistas, antes tentou um chão comum onde convivessem todos.
Quando o homem se liberta de Deus – esse enorme desconhecido que atrapalha de uma forma terrível qualquer teoria de conhecimento total ou de previsão, parece não levar em conta essa grande reacionarice que é a natureza humana. Eis algo tramado. Muda pouco ou nada. Lida com a mentira e aplaude-a quando ela parece melhor do que a verdade. O povo adora vendedores de ilusões, mesmo quando é devidamente escolarizado (não é por acaso que 70 anos sem Igreja na Rússia não alterou grande coisa a devoção naquelas paragens). E são pontapés em conceitos destes, que eram preconceitos, o que a atualidade tem estado a dar. O que hoje se passa não é mais nem menos pós-verdade. É o que somos, sem as sombras criadas por teorias que vão pelo ralo (e que levam com elas adquiridos culturais, ideias generosas, muita coisa boa, mas ao mesmo tempo muita sujidade, muito mau cheiro).
“O Senhor pôs um espírito de mentira na boca de todos os profetas aqui presentes”, está escrito no Livro dos Reis (I Rs, 22,23); “Ó poderosos, até quando tereis o coração endurecido, no amor das vaidades e na busca da mentira?” (Salmos 4,3); “Na verdade, do maior ao menor, todos se entregam aos ganhos desonestos; desde o profeta ao sacerdote praticam todos a mentira” (Jeremias, 6,13). Posso continuar indefinidamente.
A pós-verdade começou com a expulsão de Adão e Eva do paraíso. Como não acredito que esse episódio seja histórico, resta-me dizer que é um conceito inventado pelos adeptos da pós-modernidade para não terem de lidar com conceitos que lhe são estranhos. Tais como a Verdade (com V grande) e a mentira.

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