Programa
de Pós-Graduação em Letras
Literatura e Vida Social
CLAUDIA VANESSA BERGAMINI
Literatura e Vida Social
CLAUDIA VANESSA BERGAMINI
Uma
conversa diária com Marques Rebelo: análise de crônicas publicadas no periódico
carioca Última Hora
Assis
2015
CLAUDIA VANESSA BERGAMINI
CLAUDIA VANESSA BERGAMINI
Uma
conversa diária com Marques Rebelo: análise de crônicas publicadas no periódico
carioca Última Hora
Artigo apresentado à
disciplina Literatura e Imprensa Periódica, do Programa de Pós Graduação em
Letras, da UNESP – Assis, ministrada pelo professor Dr.Álvaro Santos Simões
Junior.
Assis
2015
Uma conversa diária com Marques Rebelo: análise de crônicas publicadas no periódico carioca Última Hora
Uma conversa diária com Marques Rebelo: análise de crônicas publicadas no periódico carioca Última Hora
Claudia
Vanessa Bergamini[1]
Resumo: Quando se trata da presença do Rio de Janeiro em textos literários, por
certo, o nome de Marques Rebelo não pode deixar de ser mencionado. O escritor
de romances, contos e crônicas encontrou nesta última uma forma de por em pauta
assuntos de toda ordem que envolvem a capital do Brasil até pouco mais da
metade do século passado. Com o intuito de analisar algumas dessas crônicas que
saltaram da pena do escritor para serem publicadas na coluna ‘Conversa do Dia’,
do jornal carioca Última Hora, este
artigo discute o modo pelo qual o escritor posiciona-se em suas crônicas, fala
sobre a cidade e os assuntos a ela inerentes. Cabe ressaltar que por mais de dois
anos Rebelo manteve a referida coluna nesse periódico, deixando, portanto, um
grande número de textos, a maior parte, inclusive, ainda inédita. Dessa
maneira, considera-se a análise aqui apresentada relevante, uma vez que se
debruça sobre publicações que marcam um tempo e revelam o estilo de um
importante autor da Literatura Brasileira, que muito contribuiu com a imprensa.
Palavras-chave: crônica, cidade, imprensa.
Palavras iniciais
Era uma quarta-feira, 16 de janeiro de 1952, quando o Jornal Última Hora, do Rio de Janeiro, trouxe
em sua primeira página uma nota com o título: MARQUES REBELO TODOS OS DIAS EM “ÚLTIMA HORA”. A nota esclarecia que
Marques Rebelo, “o escritor notável”, como assim se dirigiu a ele o jornal, a
partir de amanhã (17 de janeiro de 1952) iria assinar a coluna diária ‘Conversa
do Dia’ e nela falaria sobre “fatos, coisas e homens da vida da cidade”. Além
do assunto a ser tratado pela coluna, a nota enfatizava que o escritor sabia “ver
como ninguém o ridículo dos outros” e era o “crítico implacável dos nossos
costumes”. Ainda foi feita menção ao nome de cronistas como Rubem Braga, Joel
Silveira e Álvaro Moreyra, ressaltando, porém, que Rebelo escreve “com uma
palavra de simpatia e de suave poesia”.
Por mais de dois anos, Rebelo manteve a coluna ‘Conversa
do Dia’, bem como outra, intitulada ‘Conversa da Semana’, publicada na Revista Flan, do mesmo periódico. A este estudo, porém, interessa
analisar crônicas da coluna ‘Conversa do Dia’. A seleção dos textos foi feita
de maneira aleatória, uma vez que a pesquisadora tem se voltado ao estudo de
todas as crônicas publicadas na coluna. Dessa maneira, não houve uma
sistematização para a escolha daquelas que serviriam de corpus a este artigo. Afirma-se isso porque se deseja discutir,
muito mais do que o tema de cada crônica, o modo com o qual o escritor discorre
sobre aspectos que envolvem a cidade do Rio de Janeiro, a destacar o fato miúdo
que, não fosse a pena do escritor, por certo, já teria sido esquecido.
Este é, pois, o papel do cronista, a saber: fazer saltar
aos olhos do leitor o fato miúdo de cada cidade. Daquilo que é banal,
cotidiano, o cronista extrai sua matéria, que, pela linguagem, alcança outra
dimensão, transpondo os limites da banalidade a que o fato em si ficaria
reduzido. “Isso ocorre por conta do acabamento estético dado a cada situação,
pelo trabalho de criação literária, por meio do qual o escritor reinventa e ressignifica
a realidade” (BERGAMINI, 2012, p. 121).
Ademais de enfatizar o papel do cronista como aquele que
se vale da crônica para marcar o tempo de que fala, este estudo reflete sobre
as relações entre Literatura e Imprensa. Vale mencionar que tais reflexões
foram suscitadas na disciplina Literatura
e Imprensa Periódica, ministrada pelo professor Dr. Álvaro Santos Simões
Junior, durante o segundo semestre de 2014, no curso de Pós-Graduação em Letras
da UNESP - Campus de Assis.
Ao longo das aulas, foram tomadas como referências
publicações diversas em que se trataram as questões inerentes à Imprensa e à
Literatura. Dentre as discussões geradas, ficou clara a condição da crônica
como gênero que tem relações tênues com a imprensa; relações estas que afirmam
o caráter híbrido do gênero que oscila entre Jornalismo e Literatura. Ainda que
tenha um traço literário, a crônica não se isenta de ter um consumo imediato,
tal qual têm os textos publicados no jornal ou revista. Ao se referir a esse
caráter efêmero da crônica, Gomes (2004, p. 7) enfatiza que, ao se transportar
para o livro, “a letra efêmera do jornal pode então ser resgatada nesse outro
suporte que materializa a crônica para o tempo”. No caso das crônicas que
integram o corpus deste estudo, como
ainda não foram publicadas em um livro, deseja-se materializá-las, ao passo que
sejam trazidas à baila por meio desta discussão.
1 A Crônica e o Jornal
Há muito que se vem ventilando sobre o fato de a crônica
ter encontrado no jornal o veículo basilar à sua sustentação enquanto gênero
literário. Não se quer dizer que os livros publicados não sejam lidos ou não tenham
contribuído para que o gênero se firmasse. No entanto, é fato que, no Brasil, a
crônica faz parte do jornal. Cita-se a exemplo o nome de Machado de Assis,
Olavo Bilac, Arthur de Azevedo, Coelho Neto, Rubem Braga, Rachel de Queirós,
Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e tantos outros ainda que se
valeram desse suporte tão efêmero para eternizar palavras e assuntos que
estavam fadados ao esquecimento.
Nas palavras de Roncari (1985), a crônica tem seu lugar
“protegido” no jornal, o fato de se contar nas últimas décadas com um grande
número de livros de crônicas publicado não fez com que o gênero perdesse seu
espaço nos diversos jornais e revistas que circulam no país. No mesmo lugar em
que há espaço para a objetividade do jornalista, para os aspectos denotativos
do dia-a-dia, também há para a subjetividade conotativa do cronista, para a
ironia com que muitas crônicas tratam de um assunto, para o lirismo que invade
as páginas tão realistas de um jornal. O dinamismo do jornal encontrou na
crônica, texto marcado pela instantaneidade, “a fonte para descrever a cidade,
o modo de transformá-la em um registro dos acontecimentos da cidade, da história
da vida da cidade, a cidade feita letra” (PORTELLA, 1977, p. 85).
Essa instantaneidade a que se referiu Portella (1977)
pode ser explicada a partir da leveza que se observa na crônica, trata-se de um
gênero que permite que a Literatura torne-se íntima do leitor, a propiciar a
quebra daquilo que parece monumental, grandioso, para transformá-lo em um texto
rápido; porém, profundo (CÂNDIDO, 1992).
2 A Conversa diária de Marques Rebelo
Como já mencionado, em janeiro de 1952, Rebelo inicia sua
coluna ‘Conversa do Dia’ no Jornal Última
Hora. Este periódico, fundado em 24 de novembro de 1951 por Samuel Wainer, em
alguns aspectos trouxe inovações ao jornalismo, pois:
instalou máquinas modernas, pagou ótimos salários, adotou
paginação inovadora e a atualização das notícias em várias edições ao longo do
dia. Seis meses depois do lançamento, era o vespertino mais vendido no país.
Nas décadas de 1950 e 1960, abrigava um time invejável de colunistas e
cronistas. Em seu auge, chegava a todo o Brasil e tinha sede própria em sete
estados (DINIZ, 2011, p. 1).
Além das características ressaltadas, Diniz (2011)
destaca que o periódico era popular sem ser popularesco, contava com os
intelectuais mais expressivos da época, dentre eles estava Marques Rebelo.
Ciente de seu papel de intelectual cuja escrita poderia
servir de, no mínimo, uma reflexão sobre questões referentes ao Rio de Janeiro
e, por conseguinte, ao país, Rebelo valeu-se da coluna ‘Conversa do Dia’ e
empregou palavras de onde brotaram ironias sutis, como se vê na crônica de 18
de janeiro de 1952, a segunda publicada no periódico pelo autor[2].
Nela, Rebelo retoma o assunto do dia anterior, que eram coisas
que o cronista afirma detestar: cinema, teatro, marmelada e colunismo diário,
para dizer que gosta de quatrocentas e tantas outras coisas, dentre elas, a
estatística. De chofre, já se observa a hipérbole empregada para se referir ao
que gosta. É evidente que se pode afirmar que há muitas outras coisas a se
gostar senão a estatística. Observa-se a presença da primeira pessoa do
singular (eu) que, embora seja comum nas crônicas, permite ao leitor afirmar
ser o próprio cronista aquele que se manifesta e não um narrador criado pelo
cronista.
Na verdade, esse é um ponto ainda bem discutido pelos
estudiosos da crônica. Arnaldo Gens (2011, p. IX), em prefácio ao livro de
Simon (2011) sobre a crônica, assinala o fato de ser ela:
um
gênero polêmico e ambíguo. Por isso, tanto a crítica especializada quanto os
escritores-cronistas e cronistas propriamente ditos (por sinal, muito raros)
não hesitaram e continuam não hesitando em iluminá-la, movidos pelo desejo de
conhecer e desvendar-lhe diferentes faces.
Uma das faces da crônica que interessou a Simon (2011) desvendar
diz respeito ao apagamento ou não do autor no momento em que se analisa uma
crônica. Nesse aspecto, concorda-se com o que propõe Simon (2011, p. 50) quando
afirma que não se pode “repudiar o autor, apegando-se a categorias como
narrador e sujeito lírico”, recomenda-se tal postura para análises de romances
e poemas.
A crônica, no entanto, requer um cuidado especial, pois
comumente o cronista se dirige ao leitor em primeira pessoa do singular,
deixando marcas de que fala dele mesmo, ou ainda, mistura aspectos de seu
cotidiano ao elemento ao qual se refere. Acredita-se que se está diante de um
jogo entre o real e o ficcional, o leitor é, pois, manipulado pelo cronista que
ora se vale de suas reflexões pessoais, ora se apresenta como um simulacro.
Nesta crônica de 18 de janeiro, intitulada pelo cronista
de Sofri demais, quem se expressa é a
primeira pessoa do singular que não se deseja tratar por narrador, prefere-se,
então, o termo cronista.
Depois de, no primeiro parágrafo, o cronista apontar sua
preferência pela estatística, dedica o segundo parágrafo a explicar o prazer
que sente ao lê-las nas noites de verão ou nas chuvosas, inclusive valendo-se
delas para instruir seus filhos. Nota-se neste parágrafo a ironia delicada
empregada pelo cronista para ridicularizar os dados estatísticos que, como se
sabe, servem para nada ou para muito pouco, já que são pequenas as ações que se
fazem para que as estatísticas sejam elevadas, quando preciso, ou diminuídas,
quando necessário.
Na sequência, o cronista enfatiza que enriquece seu
tesouro estatístico quando abre, todos os dias, o jornal pela manhã e se depara
com os números que aumentam diariamente:
[...]
quantos transeuntes foram atropelados na véspera, apesar de nosso modelar
serviço de trânsito, quantas casas foram assaltadas, apesar de nossa modelar
polícia, quantos contos de vigário foram passados, apesar de nossa esperteza
nata [...]”
De início, destaca-se a mudança de pessoa do discurso, se
nos dois primeiros parágrafos o ‘eu’ foi a pessoa escolhida, agora o ‘nós’ será
a pessoa empregada pelo cronista para continuar sua narrativa. Interpreta-se
este recurso como um artifício capaz de fazer com que o leitor sinta-se parte
do problema apontado. Em outras palavras, se antes o cronista falava sobre seus
gostos, agora aponta questões que se referem a ‘nós’, e esse ‘nós’ depende do
leitor para existir. Assim, há um diálogo com o leitor.
O ponto interessante do parágrafo reside na sutileza com
que critica os serviços da equipe responsável por fiscalizar o trânsito, o
serviço da polícia e a ingenuidade do povo carioca ou por extensão, do povo
brasileiro, que vive caindo em bromas. Tais problemas são da sociedade como um
todo e, por isso, entende-se a preferência pelo ‘nós’.
Na sequência, o ‘eu’ volta ao texto, enfatizando que:
“saboreio as estatísticas com a mesma volúpia com que os conhecedores do bom
vinho enxugam uma garrafa de privilegiada colheita”. Nota-se aqui um cronista
que se coloca como alguém que assiste às situações apontadas como um apreciador
que, embora nada possa fazer, tem consciência de tudo o que se passa e, por
meio da crônica, alerta o leitor para que também se atente a estas tristes
estatísticas.
De maneira ainda mais crítica, o cronista segue apontando
de forma irônica aquilo que lhe dá mais prazer, diz que sempre encontrou “mais
beleza no número de crianças que morrem no Brasil pela desvelosa atenção dos
poderes públicos que inteligência nos artigos do senhor Afrânio Coutinho”.
Neste trecho da crônica, o que se observa é que a crítica se dirige tanto a
autoridades políticas quanto à autoridade intelectual do momento. Na mesma
esteira, o cronista segue de forma ácida apontando sua alegria, que
evidentemente é tristeza, ao pensar nas toneladas de mantimentos que apodrecem “em
nossos campos” – nota-se mais uma vez a preferência pelo ‘nós – por falta de iniciativa
do poder público para ajudar os produtores.
Ainda resta uma crítica a ser mencionada, refere-se ao
fato de ter um número excessivo de crianças que vive na capital da república e
não conta com escola primária, que à época era a educação básica brasileira. O
cronista diz que sempre “gozei mais com o alto número de crianças sem escola
primária que reside na Capital da República, que com o lirismo gorduroso de
certos poetas do alto comércio”.
Quem conviveu com Rebelo sabe que ele era sisudo quando o
assunto envolvia a Literatura como comércio. Em que pese o fato de o autor ter
sido apontado, já desde seu primeiro livro publicado (Oscarina,1931) como o nome promissor das letras brasileiras, o
reconhecimento não passou da pena de renomados críticos como Otto Maria Carpeux
e Mário de Andrade. Dessa maneira, interpreta-se a menção aos poetas de lirismo
gorduroso como sendo aqueles que, mesmo sem consistência em sua escrita,
ganharam amplo espaço comercial.
Por fim, no último parágrafo da crônica, a preferência do
cronista pelo assunto ‘estatística’ fica explicada. À ocasião em que o texto
foi redigido, há uma investigação instaurada para apurar questões internas do
IBGE – Instituo Brasileiro de Geografia e Estatística – na mesma página em que
foi publicada a crônica, inclusive, há uma matéria esclarecendo que o
Presidente (Getúlio Vargas) quer que a perícia seja concluída em 45 dias.
Assim, confirma-se que o assunto tratado pela crônica está intimamente ligado
com fatos do país. O que se sabe a respeito da investigação que corre no IBGE é
que houve desorganização e fraude, sendo necessárias medidas de suspensão de
inspetores em algumas unidades do órgão.
O Jornal Última
Hora, desde a sua fundação, posicionou-se como um veículo que daria voz ao
presidente Getúlio Vargas que, em 1950, volta ao poder “com larga vantagem
sobre os adversários, mas enfrentava dura oposição no meio político e na
imprensa” (DINIZ, 2011, p. 2). Durante o governo Vargas, esse periódico
posicionou-se a favor do governo. No entanto, é notório que Rebelo valeu-se de
sua crônica para apontar problemas que justamente caberiam ao governo
solucionar, mas subentende-se que 45 dias seria um longo período. Daí o fato de
o cronista comparar o Instituto com o vinho que também carece de tempo para
estar perfeito, por assim dizer, ao paladar.
Em trabalho realizado entre os anos de 2010-2012 pela
pesquisadora, investigaram-se as crônicas produzidas por Rebelo para um
periódico do DIP – Departamento de Imprensa e Propaganda – da Era Vargas. Ficou
claro em tal estudo que o cronista valeu-se de sua posição de cronista de um
renomado periódico, para apontar questões bastante doloridas a um Brasil que
carecia de cuidados na área educacional, rodoviária, social, econômica e
outras. Entende-se que seu trabalho na coluna ‘Conversa do Dia’ não é
diferente, pois, embora o jornal tenha se posicionado como aliado do governo, a
pena de Rebelo não deixou de discorrer sobre questões que caberiam ao governo
resolver, tal qual a escola pública às crianças da capital federal e como se
sabe, à época, do Brasil como um todo.
Ao visitar as crônicas escritas por Rebelo para o Última Hora, percebe-se que o cronista
não corrobora a ideia do jornal em relação ao governo, haja vista o número de
críticas que a ele são dirigidas. Na crônica publicada em 5 de junho de 1952,
na coluna ‘Conversa do dia’, uma vez mais se nota a preocupação do cronista em
apontar ao leitor aspectos problemáticos da época.
Uma frase dita na imprensa pelo Ministro da Fazenda,
Horácio Lafer, foi aproveitada por uma rede bancária como estratégia
publicitária para que as pessoas colocassem seu dinheiro na caderneta de
poupança. Tal situação serviu de mote à crônica.
O cronista inicia dizendo que também irá poupar os Cr$
4.70 que lhe haviam sobrado naquele mês, depois de pagas as despesas. Porém, o
que chama a atenção do leitor, mais uma vez, é o olhar ácido do cronista para o
contexto econômico. De forma sutil, descontraída, o cronista diz que repensou e
decidiu não mais valer-se da poupança. O motivo da mudança de opinião? Simples:
“o líquido esbranquiçado” a que chamavam de leite havia subido demasiadamente,
e o cronista arrepiou-se “com o aumento do preço do arroz, pão, da farinha de
mandioca e com as ameaças de que irão também aumentar os preços da banha e da
manteiga”.
Nota-se a omissão do sujeito em “irão aumentar”, mas, na
verdade, fica subentendido que se trata de algum pronunciamento do próprio Ministro
da Fazenda, o mesmo que havia convidado a população dias atrás a poupar por
meio da caderneta de poupança.
O cronista então propõe uma solução, em forma de
questionamento:
já
que estamos nessa vertigem de aumento, porque não se faz logo a coisa direita,
aumentando a quantidade de água para o abastecimento da cidade, aumentando o
nível do ensino, aumentando a decência burocrática, aumentando a limpeza das
ruas, aumentando o salário dos necessitados, aumentando o número de hospitais,
de asilos, de escolas, de patronatos, aumentando principalmente o faro de
nossas polícias?
Na pergunta retórica do cronista, para a qual a resposta
até hoje, em alguns aspectos, está para ser dada, verifica-se a repetição do
gerúndio do verbo aumentar. Interpreta-se tal recurso como um mecanismo para
dar ainda mais ênfase ao problema posto em pauta. Poder-se-ia empregar a forma
nominal do verbo apenas uma vez, já que se refere à mesma ação a ser feita, no
entanto, é por meio da repetição que se obtém um efeito de chocar o leitor, a
mostrar quantos itens têm merecido receber uma atenção especial do governo.
Porém, este anuncia o aumento de produtos basilares da cesta básica e nega a
ampliação de serviços essenciais à população, tal como água, escola, segurança,
saúde, higiene.
Mais uma vez, reitera-se que o jornal Última Hora posicionava-se politicamente
favorável ao governo, não se quer dizer que Rebelo o fazia de forma contrária.
No entanto, entende-se que as duas crônicas aqui comentadas apontam para uma
função que se sabe ser da Literatura, a função social do texto literário. Candido
(2006), ao falar sobre as funções do texto literário, enfatiza que a linguagem
é criação social, e a arte é social, uma vez que exerce influência sobre o
leitor. No caso dessas crônicas, publicadas, à primeira vista, de maneira
despretensiosa, em um veículo tão efêmero, elas comunicam artisticamente
verdades inerentes ao tempo de que falam, marcam com criticidade a postura do
cronista e permitem ao leitor uma nova visão das questões ali apontadas.
Por fim, para finalizar os comentários a respeito da
crônica de 05 de junho, destaca-se o título a ela atribuído: Deve & Haver.
Em um primeiro momento, pensou-se sem sentido o título, no entanto, em busca de
interpretá-lo, inferiu-se que se trata de um jogo com os sentidos dos verbos. ‘Deve’
pode ser de estar em débito, nesse caso, o próprio governo está em débito com o
povo, afirma-se isso, levando-se em conta o número de itens elencados pelo
cronista que deveriam ser melhores ofertados à população. Ou ainda, poder-se-ia
dizer que ‘deve’ será o que o povo passará a fazer diante do aumento de itens
básicos da cesta básica.
Em relação ao verbo haver, interpretou-se com o sentido
de existir e o que existia naquele momento era o desejo de ver melhorias
advindas do poder público. Por outro lado, interpreta-se como ‘a ver’, mais uma
vez o poder público estaria em débito para com o povo.
Cabe ainda destacar que, ao folhear as páginas da edição
da qual a crônica foi retirada, não há menção há nenhum dos pontos tratados
pelo cronista, o que ratifica a ideia de que o jornal era neutro, ao passo que o
cronista conseguia posicionar-se criticamente neste veículo de postura parcial.
Por fim, o último texto a que se dedica analisar este
artigo é uma crônica que deixa um pouco de lado a política e passa a tratar de
um assunto pelo qual Rebelo era apaixonado: futebol, e mais ainda, o América
Futebol Clube, seu time de coração. Publicada em 19 de agosto de 1952, a
crônica Bandeira Vermelha inicia-se
com um cronista que se vale da primeira pessoa do plural para chamar a atenção
do leitor quanto ao assunto a ser narrado. Se ontem, frisa o cronista, o
assunto era tristeza, hoje será a alegria, “eterna balança da vida, gangorra
dos nossos dias, contingência fatal do ser humano”. Nota-se que já nas
primeiras linhas o cronista adota uma linguagem menos sisuda que aquela que se
observou nas demais crônicas. Nesta parece que a alegria realmente estará junto
ao leitor.
No segundo parágrafo, o cronista explica que cada pessoa
tem seu amor e sua paixão e a dele é ver tremular a bandeira vermelha, a qual
faz tremular seu coração. Como bom torcedor do América, o coração de Rebelo, e
por conseguinte do cronista, tremeu ao ver seu time vitorioso no jogo de
domingo (esta edição foi publicada na terça-feira). A Rua Campos Sales,
referenciada na crônica era o endereço da sede do América, mas as condições
eram precárias.
No entanto, depois de muito esforço, o time, enfim,
conseguiu o seu estádio, e a alegria a que se refere o cronista é justo por
essa razão. Como aponta a crônica, não será mais preciso jogar em grama alheia,
tampouco sofrer em treinamento em campo sem estrutura. O novo estádio oferecia
lugar a 25.000 torcedores e permitia que os jogadores gozassem de certo
conforto que os rubros (Flamengo), conforme apontou o cronista, já desfrutavam.
As palavras que compõem a crônica mostram um cronista
agradecido pela sede que seu clube agora tem em mãos, pois há oito anos o clube
jogava somente “fora de casa”, conforme disse o cronista. Agora a bandeira
vermelha do América tem um mastro para que possa ser fixada. Há 15 anos o time
aguardava um título estadual, as palavras do cronista agora apontam a confiança
de que em 1952 tal vitória será efetiva: “Quem nos dirá que não está próxima a
glória de um campeonato que nos tem fugido há quinze anos?”
O ar de alegria que exala da linguagem também pode ser
constatado na ilustração que acompanha a crônica. Trata-se de uma caricatura de
Rebelo, em que ele está sentado na arquibancada, usa a camiseta de seu time e
eleva os dois braços em sinal de vitória ou comemoração. Por fim, em ultima instância,
destaca-se que o cronista construiu sua crônica de uma forma curiosa, ele
exalta seu time, deixando claro que se trata do “campeão do centenário”, porém,
afirma com modéstia estar ciente de todos os problemas financeiros do clube,
das dificuldades para se conseguir uma sede própria, um estádio, como o que
agora tem em mãos. E é justo nessa modéstia que o final da crônica se foca,
pois agora novos tempos virão, tempos de alegria, em que o pobre time poderá se
tornar o campeão.
Palavras Finais
Rebelo foi um intelectual preocupado com as questões
sociais, econômicas, políticas e tantas outras que envolvem o Rio de Janeiro e
o Brasil. Quem lê sua obra reconhece o instinto crítico que emana da pena do
autor. Suas crônicas são quadros nos quais ele revela um olhar decisivo sobre
pontos que, por certo, ao menos para os leitores daquele jornal, passariam
despercebidos.
Se o papel do cronista é eternizar o tempo de que falam
os textos, o autor cumpriu esse papel, pois com seus registros Rebelo leva em conta
a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido na
história (BENJAMIN, 1987). A partir dessa percepção, ao ler as crônicas,
recupera-se a imagem de situações vividas em um período já distante. Por meio
das crônicas podem-se recuperar a tensão que o contexto político exalava e a
alegria que o esporte trouxe a uma parcela da população, os torcedores do
América Futebol Clube.
O tom sério, irônico, lacônico das duas primeiras
crônicas não é o mesmo observado na última analisada, na qual se nota uma
linguagem leve, de exaltação tão característica do gênero. Mário de Andrade
(1972, p. 153), que desde o primeiro livro de Rebelo já o apontou como escritor
de grande estilo, enfatizou que o cronista tem capacidade para fazer com que seus
discursos se valham de “todos os elementos de expressão verbal”. Neste estudo,
embora tenham sido analisadas somente três crônicas, nelas se observou o
emprego de elementos vários, a saber: ironia (em crônica 1 e 2), jogo de
palavras (título crônica 2), linguagem de exaltação (crônica 3), diálogo com o
leitor (todas as crônicas) e oscilação entre a forma de narrar (crônica 1 e 2).
Para finalizar este estudo, salienta-se que muito ainda
pode ser comentado no que se refere ao estilo de Rebelo, os elementos aqui
destacados saltaram ao olhar da pesquisadora, porém, outro olhar poderia
apontar outros, pois como texto literário que é, a crônica se mostra
plurissignificativa, com linguagem conotativa que permite ao leitor múltiplas
interpretações.
Referências
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Janeiro: ABL, out.- dez., 1974, p.146-148.
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BERGAMINI, Claudia Vanessa. De
Norte a Sul, quadros e costumes históricos do Brasil – o olhar de Marques
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Acesso em 15 jan. 2015.
GOMES, Renato
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REBELO,
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Última Hora. Ano II. Rio. Quinta-feira. 5 de junho de 1952, p. 2. nº 300.
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Bandeira Vermelha. Conversa do dia. In: Jornal
Última Hora. Ano II. Rio. Terça-feira. 19 de agosto de 1952, p. 2. nº 364.
SIMON, Luiz
Carlos. Duas ou três páginas
despretensiosas: a crônica, Rubem Braga e outros cronistas. Londrina: Eduel,
2011.
Anexos
Anexo 1 – Jornal Última Hora, de 16 de janeiro de 1952.
Anexo 2 – Jornal Última
Hora, de 18 de janeiro de 1952.
Anexo 3 - Jornal Última
Hora, de 19 de agosto de 1952.
[1]Aluna do Programa de Pós-Graduação em
Letras da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita – UNESP – campus de
Assis. Email: claudia.berg@hotmail.com
[2] Todos os fragmentos extraídos do
jornal Última Hora, assim como as crônicas analisadas estão disponibilizados integralmente
ao final deste estudo, nos anexos. A fim de tornar a leitura mais fluída,
evitou-se inserir nas citações feitas as referências, conforme exigem as normas
acadêmicas.
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