domingo, 29 de janeiro de 2017

Breves anotações sobre as cores e coloridos na arte moderna e contemporânea, Braque, Picasso, Cézanne, Hélio Oiticica, Tunga e Milton Machado.



Breves anotações sobre as cores e coloridos na arte moderna e contemporânea

“Em cada dez pintores apenas um é colorista.”
Sêneca

Helio Oiticica escreveu, na década de sessenta, que havia um problema na pintura, a cor. Declarou, então, que a era da pintura de cavalete estava definitivamente encerrada. Seguiu seu caminho “espacializando” a pintura.  Pergunta-se: o problema continua? Creio que sim. E mais. Tal afirmação pode nos levar as indagações: o que é um colorido e o que é um desenho colorido? Creio que tais perguntas podem ser pertinentes se consideramos que a cor abstrata substantiva é uma ideia platônica, tem somente duas dimensões, ou seja, é planar, o que contraria o que Cézanne afirmou: que a natureza é mais em profundidade do que em superfície, e assim diremos que a cor abstrata subsiste por si só. Já a cor concreta é adjetiva, e que pelo rompimento do tom tem uma dimensão temporal, portanto mais que três, e que sua condição é ser no colorido. 

Creio que esse problema da cor na pintura pode ser estudado a partir dos artistas pós- impressionistas do final do século XIX.

Van Gogh e Odilon Redon, ao se referirem ao rompimento do tom, afirmaram que se misturássemos um laranja e um azul puros em quantidades iguais obteríamos um cinza absolutamente incolor. Apoiavam-se no círculo cromático iluminista que pretendia, racionalmente, explicar todos os fenômenos cromáticos da natureza. Já Gauguin  afirmou que a cor era enigmática. E se perguntou se deveríamos pintar uma sombra azulada ou o mais azul possível. Instalaram-se suas dúvidas. Sendo a cor enigmática, como racionalizá-la? Deveria usar a cor adjetivada ou idealizada? Já Cézanne afirmou que a luz não existe para o pintor, tem que se substituída por outra coisa, a cor. No final de sua vida diz que não realizou e nem realizará nada do que pretendeu e que fora um primitivo pelas coisas novas que descobrira. Já Seurat, baseado no livro de Chevreul, realizou uma obra ancorada em princípios científicos. Estudou a divisão do tom baseado no círculo cromático iluminista. Seurat foi seguido por Paul Signac e esse método foi classificado pela crítica como pontilhismo, que pode indicar, talvez, bem mais procedimento que uma questão teórica. Seurat preferia que o que vinha pesquisando fosse classificado como divisionismo, ou seja, que um tom, visto a curta distância, poderia ser divido em pequenas pinceladas de cor, que quando vistas a longa distância resultariam no tom original. Por outro lado seus quadros eram construídos a partir do número de ouro, ou seja, baseados na geometria euclidiana, que o colocava próximo à tradição grega retomada durante a Renascença. Vale dizer, Seurat pode ser um clássico que a academia alimentava. Como veremos a seguir, no início do século XX alguns artistas se rebelaram contra essa tradição que tem sua origem na Grécia.
No início do século XX duas retrospectivas importantes são realizadas em Paris entre 1902 e 1904; a de Van Gogh e Gauguin, respectivamente. Mas já em 1901 Matisse dá início ao movimento fauvista. Afirma que as cores devem ser puras e obedecer à emoção. Diz ainda não querer pintar como Signac, e que este pintor escolhe uma cor ou outra se baseando em princípios teóricos e científicos, princípios estes baseados no círculo cromático iluminista. Matisse é seguido por Braque, Vlaminck, Derain e muitos outros pintores. Esses pintores utilizavam cores intensas, sem um estudo prévio, como as crianças e os artistas primitivos, e eram contra os estudos acadêmicos. A cor, que não procurava uma relação com a realidade, torna-se mais idealizada que adjetivada e reduzida apenas a duas dimensões. O espaço plástico, assim, passa a coincidir com o plano do suporte, vale dizer, sem profundidade. Deixa de ser lá, conforme preconizava Alberti considerando a perspectiva científica euclidiana e passa a ser ali. Sem uma base teórica forte o fauvismo dura apenas dois anos, de 1905 a 1907.
Os fauvistas ao descartarem a perspectiva monocular e a biocular, esta iniciada por Leonardo da Vinci com seus estudos sobre os limites dos corpos e o modo como serpenteiam, e depois com Cézanne, que afirma que entre o objeto e o pintor se interpõe um plano, a atmosfera, fazendo coincidir o espaço plástico com este no qual nos orientamos, um espaço plástico aqui, e descartando, também, as cores com mais de duas dimensões, não estariam produzindo desenhos coloridos?
Sobre Matisse podemos afirmar que ele, além de se opor à tradição grega, também seguiu as observações de seu orientador, Gustave Moreau, que afirmou que seu projeto era o e simplificar a pintura. Matisse nos diz que conforme o tamanho do suporte procura relacionar formas bem proporcionadas (mas fora dos cânones da geometria euclidiana), para depois acrescentar as cores conforme suas sensações. Cria, assim, novas formas, tirando-lhes, até certo ponto, uma racionalidade que lhes são inerentes. As cores são enigmáticas, não racionalizáveis e, assim, as formas ficam a elas subordinadas. Com esse esvaziamento de uma racionalidade das formas cria-se uma aproximação com esse enigmatismo das cores utilizando-se muito dos arabescos. Assim, Matisse se afasta da tradição grega que estava impregnada na pintura.
Perguntamos, então: não são suas obras excelentes desenhos coloridos? Com essas observações quero deixar claro que não estou criando uma hierarquia, pois quadros coloridos e desenhos coloridos podem se equivaler em qualidades artísticas.
Ao nos referirmos ao enigmatismo das cores temos que esclarecer que ela possui uma lógica que está na zona do sagrado e que, a partir de certo ponto, nos é interditada, conforme nos expõe o físico Basbara Nicolescu em seu manifesto da transdisciplinaridade, lógica esta que se opõe à aristotélica. Portanto não há um mistério. Se nos é interditada podemos antevê-la como uma verdade, ou seja, que há uma lógica. E aqui citamos um dos pensamentos de Braque: “A verdade não tem contrário.”
Em 1906 é realizada a retrospectiva de Cézanne. Um ano depois Braque dá início aos primeiros quadros cubistas e começa a usar o rompimento do tom que tem uma dimensão temporal. É seguido logo por Picasso. A crítica, não percebendo toda a riqueza dos rompimentos de tons dinamizando o colorido com uma dimensão temporal, afirma que os cubistas resumiram suas paletas aos ocres, cinzas e pretos. Ou seja, não considerando o conflito entre a percepção sensível e a linguagem articulada, e também não percebendo a diferença entre as cores adjetivadas e substantivadas. Mais adiante comentaremos a questão do conflito entre a percepção sensível e a linguagem articulada. Nomeando-as, considero-as abstratas substantivas e não concretas adjetivas. Ao utilizar o rompimento do tom, agora percebo, Braque anima a pintura graças ao serpenteamento vinciano e ao cinza sempiterno, modulando (ou seja, as passagens claro-escuro são obtidas por diversos matizes) e não modelando (e neste caso temos um mesmo matiz, ora claro, ora escuro), seguindo os postulados de Cézanne, que sempre fala em modulação. No quadro de Braque abaixo (fig 1), podemos observar como, pelos rompimentos dos tons, o espaço cromático é modulado, ou seja, os ocres, ou amarelados, se não ficarmos presos às nomeações, passam, por interação da cores e contrastes, para uns tons azulados, e não absolutamente cinzas.

Fig.1 – Braque – Little Harbor in Normandy, spring 1909
Acrescenta-se: isso permanece em toda sua obra, ao contrário de Picasso, que depois de 1914 passa mais a modelar, ou fazer desenhos coloridos na medida em que as cores passam a ter somente duas dimensões. E assim, com poucas exceções, outros pintores cubistas. Podemos afirmar que Braque sempre coloriu e que Picasso, quando se afastou de Braque, também executou desenhos coloridos?
No quadro abaixo de Picasso (fig. 2) podemos observar a falta de modulação e de rompimentos dos tons. Mas vemos traços contornando a figura. Assim esse quadro permanece com apenas duas dimensões.

Fig. 2 –Picasso – Mulher  chorando – 1937
Matisse e Picasso, este em alguns quadros, utilizavam as cores segundo a ordem do espectro. Já Cezanne, ao utilizar o rompimento do tom, cria outra ordem. Segue uma citação de Gilles Deleuze Francis Bacon – Logica da Sensação:
"A modulação por toques distintos puros e segundo a ordem do espectro foi a invenção propriamente cezanneana para atingir o sentido háptico da cor.” Gilles Deleuze, Francis Bacon - Lógica da Sensação. Claro, essa observação do filósofo de que Cézanne em seu cromatismo seguia a ordem das cores no espectro, não é uma conclusão a que chegara, mas uma citação do que se dizia comumente.

Alguns impressionistas utilizaram em seus quadros duas escalas básicas para a passagem luz-sombra que obedeciam à ordem das cores do espectro. As duas escalas: 1 - laranja, amarelo, verde e azul; 2 - laranja, vermelho, violeta e azul.
Cézanne ao romper com os impressionistas não mais pensou nas cores e coloridos a partir do círculo cromático iluminista, portanto, não mais colorindo a partir de una escala baseada na ordem das cores do espectro. Daí ter afirmado que a luz não existe para o pintor e que somente um cinza reina na natureza. Para mim esse é o cinza sempiterno, um não espaço e um não tempo, causa e feito dos  coloridos, um pré ou pós- fenômeno. Esse cinza resulta do rompimento do tom que dá uma dimensão temporal à cor.  Assim percebemos em Cézanne uma escala que pode ser exemplificada: cor A, rompimento da cor A, cinza sempiterno, rompimento da cor oposta de A, cor oposta de A. Portanto uma escala que em nada obedece a uma ordem das cores do espectro.

Fig. 3 – Cézanne – A montanha de Santa Vitória
A escala básica do quadro acima:
LR, TR-LR, TR-AZ, AZ, VD, TR-VD (laranja e seu rompimento, azul e seu rompimento e verde e seu rompimento)

Citemos então Gauguin: “Esforcei-me para provar que os pintores, em nenhum caso, precisam do apoio e instruções dos homens de letras. Esforcei-me lutando contra todas essas resoluções que se transformam em dogmas que desorientam não somente os pintores mas o público. Afinal, quando compreenderemos o sentido da palavra liberdade?” De minha parte creio que devemos procurar fazer um discurso de dentro da pintura e não fora dela.

Continuemos. Em meados do século XX tivemos alguns estudiosos das cores, Kandinsky, Klee, Albers e Itten, mas todos ainda considerando o círculo cromático iluminista. Alguns pintores coloristas surgiram depois, poucos, certamente pelo fato de esses pintores considerarem um olhar não pelo simples aspecto, mas um prospectivo que implica em um saber do olho, como nos adverte Poussin.  Esses coloristas não se apoiaram tanto nesse círculo cromático iluminista, mas também não criaram nenhuma outra teoria cromática para substituí-lo. O curioso é que Rudolf Arnheim em seu livro Arte e percepção visual percebe a inadequação desse círculo cromático e propõe até outra teoria, mas nada convincente. Vale notar também que Mondrian, já no fim da sua vida, declara que seus quadros em branco, preto e as três cores primárias não passam de desenhos coloridos.
Parece-me que essa crise na pintura que eclodiu a partir da década de sessenta do século XX e os discursos sobre sua morte recalcaram ainda mais a questão da cor. Claro, isso não impediu que grandes artistas com novas ideias surgissem, como acima anotamos.

De minha parte continuei fiel à cor e aos coloridos, e nos meus estudos descartei o círculo cromático iluminista, o que me permitiu descobrir o cinza sempiterno como um pré ou pós-fenômeno. Redefini o rompimento do tom não mais como misturas pigmentares, mas como sobreposição no tom de sua pós-imagem, o que deu à cor uma dimensão temporal. Pensei nas cores abstratas substantivas, ideias platônicas nas quais a cor subsiste por si só. Pensei nas cores concretas adjetivas como um par que contém em si sua oposta e cuja condição é ser no colorido. Reinterpretei o serpenteamento vinciano. Estou imaginando a possibilidade de se pensar em uma geometria das cores. E digo que essa geometria sou eu, pois a cor é um fenômenos subjetivo. Mas assim como Cézanne, me sinto como um primitivo pelas coisas novas que descobri. Muitas são ainda as dúvidas.
Tenho consciência da importância de considerarmos as cores abstratas substantivas e concretas adjetivas e para justificá-las cito um texto no qual alguns físicos e filósofos são lembrados: “[...] Niels Bohr fazia notar, no âmbito da física nuclear, que ‘partículas materiais isoladas são abstrações, sendo suas propriedades definíveis e observáveis apenas por suas interações com outros sistemas. E, bem antes de Bohr, Hegel desenvolveu a ideia de que o particular, tomado fora de suas interações com os demais elementos particulares e com o todo, é uma abstração desprovida de realidade e de potência cognitiva [...].” Luiz Marques, Capitalismo e o colapso ambiental, Editora Unicamp.

Então se faz necessário em todos os ramos do conhecimento, e a pintura é um deles, que outra mentalidade se forme para que possamos enfrentar os desafios de nosso tempo.

Vejamos, agora, como essas questões se desdobraram nas obras de alguns artistas contemporâneos.

Certamente Hélio Oiticica percebeu o impasse a que chegara a pintura ao insistir na utilização de uma teoria cromática baseada no círculo cromático pós-newtoniano. Penso que, ao afirmar o fim da pintura de cavalete, não estava endossando o que muitos artistas e críticos afirmavam: a morte da pintura.  Hélio Oiticica espacializou a pintura ao realizar os relevos. Pergunto-me:  não estaria também esse artista seguindo Cézanne, que nos mostrou um espaço da pintura coincidindo com esse no qual nos orientamos? Lida menos com o conceito da cor abstrata substantiva e enfatiza mais a concreta adjetiva, muito embora ainda não as diferenciasse. E mais ainda: estará nos apontando para repensar o que Leonardo da Vinci nos diz sobre o serpenteamento e como o pintor deve evitar a segunda morte da pintura?



Fig. 4 - Hélio Oiticica 



Fig. 5 – Tunga  - True rouge

Vejamos, agora, como essas questões se desdobraram nas obras de alguns artistas contemporâneos.

Há também uma curiosa obra de Tunga, True rouge. Nessa obra percebe-se também o serpenteamento que anima o espaço, portanto uma geometria não euclidiana. Mas gostaria de fazer outra observação. Há uma tendência da crítica de considerar geométricas as obras nas quais se vê quadrados, triângulos, esferas, ou seja, figuras da geometria euclidiana. Essa obra de Tunga é também geométrica. Nela se percebe uma complexa estrutura topológica. 




Fig. 6 -  Milton  Machado

Tanto nas obras de Tunga como nas de Milton Machado temos um colorido na medida em que as formas estão subordinadas às cores. E ambas permitem a manifestação do cinza sempiterno pelos rompimentos dos tons e, assim, aproximam-se da geometria dos fractais. Vale lembrar o que Cézanne disse: que pinta somente uma seção do espaço.
A seguir cito uma frase de Helmut Hungerland, do livro Sugestão para a crítica de arte e outros ensaios. Um entre muito dos que, como observa Gauguin, desorientam não somente os artistas, mas o público em geral. Mas antes algumas observações.

Uma pincelada pode vir para o primeiro plano de nossa percepção como objetivamente uma pincelada ou subordinada a uma cor. Como nada consideramos com valores absolutos, pode haver um equilíbrio entre elas. E vale lembrar o que já falamos: as cores concretas adjetivas têm mais de duas dimensões, têm uma dimensão temporal.

“De acordo com Hetzer, desde a renascença se desenvolveu um conflito entre forma e cor (i.e., formas tridimensionais incluídas por linhas de contorno, ligadas à perspectiva científica) e cor,  (sendo essa essencialmente em duas dimensões). [...] desde que Cézanne dominou a perspectiva científica, restabelecendo a importância  do plano pictórico em duas dimensões,  e desde que a cor em si tem duas dimensões, segue-se, mais ou menos, que, nas pinturas de Cézanne, as ‘pinceladas individuais’ de cor são o verdadeiro apoio da estrutura pictórica.”




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