ENTREVISTADORES: FLÁVIA DUZZO e JOCIELE LAMPERT
LOCAL: MASC/ Florianópolis
DATA: ???? /07/2016
HORÁRIO: ???
Flávia Duzzo: Como você relaciona a sua atividade de artista,
escritor e teórico da cor?
José Maria: Tenho que falar um pouco da
minha formação: sou filho
do escritor Marques Rebelo, o fundador desse museu, o MASC. Ele tinha uma
excelente biblioteca, muitos livros sobre pintura, e de outras disciplinas
também, claro. Era um escritor que tinha um enorme prestígio. Hoje ele está esquecido,
mas nomes como Graciliano Ramos, Millôr Fernandes, Antônio Houaiss, João Cabral
de Mello Neto, há provas, consideravam-no melhor que Machado de Assis. (Vá se
entender nosso país)
Estou falando isso porque
para mim era um embate complicado, filho de escritor famoso. Luiz Fernando
Veríssimo é um excelente escritor, mas uma vez ele, em uma entrevista, falou
que nunca escreveu um romance porque tinha o pai que o constrangia. Estou
comentando isso, porque eu acho que, inconscientemente, claro, fui me apegar à
pintura, que era arte que meu pai mais gostava depois da literatura, para
evitar este enfrentamento. Meu pai era incapaz de dar um traço, era uma negação
para as artes visuais. Como disse, tinha uma boa biblioteca. Então comecei a
ler desde cedo o Tratado de Pintura e vários livros de pintores: Léger,
Delacroix, Redon, Van Gogh, Braque, Klee, André Lhote, Vasari e outros. O que
eu quero dizer é o seguinte: comecei com as fontes primárias e isso foi muito
importante para minha formação. Sou um pintor, quer dizer: não sou escritor.
Então comecei fazer muitas anotações, e a partir delas pude publicar alguns livros.
Sobre o primeiro, A cor e o cinza: estava com tantas anotações que me perguntei
o que farei com elas? Resolvi revisar tudo, simplificar; e daí surgiu o meu
primeiro livro que acima citei, não foi uma vontade de ser escritor, foi uma ideia
de arrumar minhas ideias como pintor. Comecei a ficar mais interessado na
questão da cor, quando li, ainda muito garoto, um livro muito bom, o Tratado da
Pintura e o Tratado de Paisagem do André Lhote.
(Professora Jociele Lampert que estava presente na entrevista, diz que
conhece o livro).
Tem uma passagem que diz porque um pintor deve escolher uma escala
cromática que começa com o laranja, para o claro, passando pelos avermelhados,
violáceos, até o azul, para a sombra, ou então, outra escala, que começa com o
laranja passando pelos amarelados, esverdeados, até o azul para a sombra. Assim,
teríamos duas possibilidades de coloridos.
Pensei então: quer dizer que o artista não pode buscar outros coloridos?
Tem que escolher uma ou outra escala básica? E foi assim que começou o meu
interesse pela cor. Comecei a estudar a questão da cor, devagar, e fazendo
minhas anotações, quer dizer, fui ver o que um pintor estava pensando, estava
escrevendo, isso foi muito bom para mim, consultar as fontes primárias. Pude,
então, criar outra teoria da cor. (Descartei o círculo cromático que classifica
as cores em primárias e secundárias, redefini o rompimento do tom, pensei no
cinza sempiterno como um pré ou pós fenômeno e causa e efeito dos coloridos, classifiquei as
cores em abstratas substantivas e concretas adjetivas, reinterpretei o
serpenteamento vinciano, etc.) Porque acho que dizer que o pintor não pode
fazer isso ou aquilo, como Lhote afirma em relação a um ou outro colorido, é
impedir um estudo de novas ideias. O pintor pode e deve fazer tudo, desde que
tenha uma lógica.
Flávia Duzzo: A sua mudança para Florianópolis influenciou seu
trabalho, em que sentido?
José Maria: A sua pergunta é Interessante. Porque minha vinda para
Florianópolis foi por motivo de saúde, minha filha ficou muito preocupada e eu
estava mal no Rio, me dá até certa emoção ao falar. Aconteceram várias coisas
simultâneas. Primeiro a morte da minha madrasta, Tem uma história. Um advogado
psicopata que se fez amigo da família se apropriou de alguns bens da quando meu
pai e minha madrasta morreram, e depois, por fofoca de outros artistas, minha
situação piorou. Perdi o contrato que tinha com a Galeria Anita Schwartz, deixei
de dar aulas no Parque Lage, fiquei zerado. Entrei num tal estado de
desequilíbrio emocional, eu quase morri.
Jociele Lampert: Sabia mais ou menos, …assim, por cima…
José Maria: Eu quase morri mesmo, não morri por muita sorte, estava em
frente a um hospital, perto da porta, passei mal, entrei, e me acudiram.
A par desses acontecimentos, essas coisas novas que descobri, tinha o
fato de a crítica não me compreender. Durante muito tempo a crítica foi de uma
violência comigo, me queimou mesmo. O Roberto Pontual, por exemplo. Participei
de uma exposição de um panorama da arte brasileira em São Paulo, ele era
crítico de O Globo. Naquela época, década de 80, os jornais abriam espaço para
as manifestações culturais e ele ganhou uma página inteira falando de todos os
artistas, e comecei a ler, fulano: ótimo, espetacular; beltrano: bom; sicrano:
mais ou menos. Meu nome só apareceu na última frase: ”inteiramente fora de
propósito, equivocada e sem sentido é a pintura de José Maria da Cruz”. Isso me
queimou. E tem mais, dava aulas no Parque Lage, a algumas vezes, quando mudava
o diretor, este me retirava do quadro de professores, tinha que me virar. Viver
de pintura é meio complicado, temos que dar aula, ou fazer outras coisas. Fiquei
queimado no mercado. Mas a vinda para Florianópolis não foi um negócio
programado, foi um negócio do destino mesmo, e aqui eu me senti bem recebido.
Como eu gosto de conhecer o meio artístico, comecei a frequentar
exposições, queria saber do artista que estava expondo, ia conversar com o
expositor, me apresentava e trocava ideias. E fui conhecendo gente. Numa exposição no Museu Histórico, conheci
uns artistas e conheci também um professor de filosofia, o Nestor Habkost. Comecei
a conversar com ele, comecei a expor minhas ideias etc. e ele gostou muito do
que eu estava pensando e iniciamos uma troca de e-mails, e em um me escreveu:
“Está programado um seminário no departamento de filosofia, já está tudo
pronto, mas se você quiser, pode dar uma palestra.” e eu inconsequente falei: “tudo
bem, eu dou a palestra”. Depois fiquei pensando: que maluquice, dar uma
palestra para filósofo no departamento de filosofia. Felizmente me saí bem.
No Rio também fui convidado para umas palestras, mas sempre havia certa
aflição, como me dissessem: “o que você está fazendo aqui?” Um negócio meio
agressivo, mesmo. Mas aqui não, foi um negócio completamente diferente, bem
diferente daquela pressão que tinha lá no Rio. E sei que eu estava
inspirado, sei que a palestra acabou ficando muito boa mesmo. Comecei a me
sentir muito mais à vontade aqui em Florianópolis. Estou morando aqui faz
oito anos - e aqui eu já escrevi três livros, lá no Rio só consegui escrever
um, para se ver como aqui eu fiquei muito mais produtivo. Por esses motivos,
me senti bem, me senti aceito, estou agora com vocês, lá no Rio não teria
acontecido isso nunca, lá é muita politicagem. Em Florianópolis praticamente
não tem mercado.
Jociele: José Maria, antes de passar para a outra pergunta, tem haver
com isto que você está colocando aqui para nós, você viveu no Rio um período em
que aconteceu não só no Rio, mas em todos os lugares do Brasil, aquele discurso
da morte da pintura, ou que, o pintor era quase um marginal. Viver de pintura
era uma coisa inacreditável…você estava em um lugar onde performance,
intervenção…, é… haviam outras linguagens artísticas, então, você sentiu
essa “morte da pintura”? Ou como você sentiu isso, como você viveu isto?
José Maria: Não senti tanto, sempre achei isso bobagem. Cito até em um
de meus livros o Hélio Oiticica que diz: “existe um problema complexo na
pintura contemporânea: a cor”, ele não está matando a pintura, ele fala
outra coisa: “para mim a pintura de cavalete está definitivamente encerrada”.
Ele está mudando o espaço da pintura, que é aquilo que eu anotei. Um espaço
plástico não mais lá, além do suporte, e nem ali, na superfície do suporte, mas
aqui, coincidindo com esse no qual nos orientamos. Então, não tive problemas. Meu
problema estava com a crítica que não me compreendia. Mas, eu nunca acreditei
neste negócio de morte da pintura.
Jociele Lampert: Que bom!
José Maria: Eu nunca acreditei. Muitos críticos e alguns artistas
afirmaram a morte da pintura, mas outros continuaram pintando, por exemplo,
Volpi, Iberê, e alguns mais, e da minha geração cito a Katie Van Scherpenberg.
Agora a pintura está aí com toda a força novamente.
Jociele: Nós nunca deixamos de pintar por causa deste discurso, mas como
você estava lá em um grande centro, eu imagino que lá a crítica deve ter sido
muito mais feroz…
José Maria: Sim. Foi muito feroz mesmo, foi muito feroz. Lembro-me,
conversei com o Jairo Smith; o Iberê Camargo, por exemplo, vivia muito mal, ele
não vendia, um senhor pintor, entretanto a crítica o colocava de lado, ele só
ganhou o renome que tem hoje, depois de 1980 com o enfraquecimento do discurso sobre a morte
da pintura.
Jociele Lampert: E com o apoio de um grande financiador: a Gerdau.
José Maria: Um grande financiador. Mas a crítica quase o ignorava, não
se tocava em Iberê Camargo, e não se tocavam em outros artistas que estavam
pintando também. A questão do Volpi, por exemplo, não era esse nome todo
que é hoje, ele ficava meio de lado; Aliás
a história do Volpi é muito curiosa, não sei se bem conhecida. Ele apareceu
porque ganhou o prêmio da primeira Bienal de São Paulo na década de 50. Estava
tudo armado para o premiado ser Di Cavalcanti, um nome bem badalado, inclusive
um dos organizadores da Semana de 22 junto com Villa Lobos e Manuel Bandeira. Mas
convidaram para membro do juri o Herbert Head e
ele afirmou: “aquele ali que é bom”. O que era para esse crítico o bom era o
Volpi, e então ficou todo mundo assim: “Poxa! o cara olha”. Diziam: “ Tem
aqui o Di Cavalvcanti”. “Mas, o bom é aquele”, retrucava. O Volpi
apareceu e começou a ser aquele nome reconhecido, mas em 60 e 70 o nome dele
ficou menos falado, não era muito comentado, agora está voltando a ser estudado
novamente.
Um período meio complicado para quem queria só pintar, muito complicado,
porque era uma pressão, quase toda a crítica e alguns artistas consideravam que
a pintura não tinha mais nada para se pensar. Eu estava estudando a questão da
cor. Dizia: “quanta coisa tem ainda para se pensar em termos de pintura!” Foi um
estudo longo, porque durante muito tempo ainda fiquei preso àquele círculo
cromático de primárias e secundárias, etc, mas estudando Cézanne ficava
intrigado com uma frase na qual ele diz que a luz não existe para o pintor, tem
que ser substituído por outra coisa: a cor. Quer dizer, aquele círculo
cromático tinha uma pretensão de racionalizar a cor e a cor é enigmática, e também
de explicar todos os fenômenos cromáticos da natureza. É bem um pensamento
iluminista, muito racional. Então a cor não tinha lugar nessa racionalidade, e
eu comecei a estudar, estudar, estudar. Só me livrei daquele círculo em 1986,
quando descobri o cinza sempiterno. Cézanne fala também de um cinza que reina
em toda a natureza. Felizmente dava aulas e assim muitos artistas começaram e
me apoiar. Agora alguns críticos, a crítica mais nova, está começando a ver meu
trabalho e finalmente, acho que vou chegar a algum lugar.
Flávia Duzzo: Além de Cézanne quais
seriam as suas grandes referências artísticas?
José Maria: Quando terminei o
científico começou aquela história lá em casa: o que você vai ser?
Quero ser pintor, respondia.
Meu pai insistiu: mas é bom você ter um
diploma, porque você não faz arquitetura? É interessante, inclusive tem certa
afinidade com a pintura. Respondia: Eu
não quero ser arquiteto, eu quero ser pintor.
Meu pai, felizmente, era uma pessoa
compreensiva e disse: então tudo bem, te apoio, vou te arranjar uma bolsa; já
que você quer ser pintor, você vai estudar em Paris. E então, conseguiu
uma bolsa do Itamaraty, e outra do governo francês. Fiquei dois anos na Europa,
em Paris estudando com um pintor argentino: Emílio Pettoruti, que é um senhor
artista. Ainda sobre minha formação e entra aqui, o MASC, que foi o primeiro
Museu de Arte Moderna do Brasil de fato, o de São Paulo foi de direito,
foi registrado em cartório, mas começou a funcionar em 1949 e este já estava
funcionando em 1948, precariamente, tudo bem, mas foi oficializado em 1949 e a
exposição deste museu teve artistas franceses, alemães, etc. além de
brasileiros, claro. Eram quadros da coleção de um embaixador que serviu na
Europa durante a Segunda Guerra. Ele comprou muita pintura, tudo que se possa
imaginar de 1900 a 1950, tinha mais de 2000 quadros. Logo, terminada a Guerra,
ele se aposentou e trouxe essa coleção para o Brasil; e ela ficou pertinho lá
de casa, em Laranjeiras, onde morava, e eu estudando pintura, frequentava-a
muito. Então aquela coisa que eu estou repetindo muito: a minha formação foi
muito em cima das fontes primárias. Passei a não ver reprodução, eu ia lá ver os
quadros mesmo. Ele tinha quatro Picassos, quatro Braques, Paul Klee, Kandinsky,
Mondrian, Leger. Juan Gris, tudo, qualquer nome que se possa imaginar. Quando
fui a Paris ter aulas com Pettoruti já tinha uma boa formação. Ele começou a me
mostrar Cézanne, e comecei a compreender, eu já tinha lido bastante os livros
do André Lhote, e aquela sua opinião sobre as escalas cromáticas. Pettoruti me
mostrando Cézanne, daí passei direto para o Poussin. Poussin instiga.
Reprodução não dá mesmo para se ver. Como ousado ele foi. Por exemplo, em um
quadro tem uma personagem que está com uma roupa verde, e a sombra é
avermelhada, outra personagem ao lado, roupa azul e a sombra mais amarelada, é
inteiramente abstrato, quer dizer, compreendi aquela frase do Cézanne: “Eu
quero refazer Poussin direto da natureza”. Então isso foi muito importante para
eu entender Poussin, entender Cézanne e me levou também a entender Braque. Eu
já tinha lido os pensamentos de Braque e aí fui vê-lo de perto e de perto com o
Pettoruti, é uma coisa espantosa! Então foram três artistas que mexeram muito
comigo: Poussin, Braque, Cézanne. Claro, outros, os venezianos, Chardin, Degas,
Delacroix, artistas coloristas.
Tem um quadro do Poussin que eu sei
quase de cor. Quais os quadros que você já viu realmente, posso te
perguntar? Já fiz essa pergunta para a Katie Van Scherpemberg e ela me
respondeu, uns três ou quatro. Deve ter uns três ou quatro quadros que você
conhece quase de cor. São quadros que marcam nossa formação. Daí entendermos
Cézanne quando ele diz que o Louvre é um livro, nos leva à reflexão.
Jociele Lampert: Les Demoiselles d’Avignon.
José Maria: Les Demoiselles dÁvignon,
você sabe de cor.
Jociele Lampert: Durante três meses pelo menos três vezes na semana eu
ia lá e eu olhava o quadro por duas horas…
José Maria: Tem quadros que acabam sendo uma referência muito forte. Tem
um quadro do Poussin, realmente eu vi muito este quadro! Vi muito também outro
que está no Museu D’Orsay, do Cézanne, aquele que tem as várias maçãs. Vi
também outro que agora está no Museu Pompidou, de Braque. Esses quadros eu sei
quase que de cor.
Jociele Lampert: Você percebe a
influência dele nas suas lições que você faz com os seus alunos hoje?
José Maria: Muita, muita, muita, mesmo,
Pettoruti me passava muitos exercícios. Meus cursos têm uma parte teórica e
muitos exercícios que eu mesmo criei. Um pouco daquilo que eu falo do Leonardo
da Vinci, o discípulo tem que ultrapassar o mestre, não ser melhor, mas pensar,
levar o pensamento do mestre adiante.
Tive uma formação pesada, porque a
tradição da pintura é pesada, não é brincadeira, é um peso, você não acha? Não
é para qualquer um enfrentar a tradição da pintura.
Jociele Lampert: É que tem os extremos,
não basta você só pintar fechadinho no seu atelier, você tem que pintar, mas
você tem que também olhar para o mundo, e olhar para o mundo quer dizer: viajar,
você tem que ir a museus, escolher as fontes, não basta você só ter acesso aos
livros. Você ver um Manet de perto é incomensurável, a você ver um Manet no
livro.
José Maria: Completamente, não dá mesmo,
é muito pobre. E aí entra aquela coisa, você começa a ver o que nós estávamos
conversando no início, que era muito importante esta questão da percepção, da
percepção com o saber do olho, que é uma coisa que eu fui aprender com o
Poussin. A simples percepção é quando ficamos só no aspecto do objeto, e quando
nosso olhar é prospectivo nosso ver se baseia no saber do olho, nas diversas
distância e nos eixos visuais. Por um olhar prospectivo desenvolvemos nosso pensamento
plástico. Um pensamento que tem uma lógica, como Cézanne diz: “que não tem nada
de absurda”. Hoje eu penso um quadro, eu não tenho uma ideia, vou pintar uma
árvore, vou pintar não sei o que, vou pintar um bosque, um quadro amarelado. Penso
na lógica do colorido. Agora a lógica vai ser esta, mas inteiramente plástica,
procuro criar um fato pictórico. O tema ou o motivo ficam a esse fato
subordinados. Eu começo a pintar e sei
que vai dar certo, porque tem uma lógica, tanto é que não dou retoque no quadro,
não tem arrependimentos. Quando eu pinto um quadro é direto, está tudo na minha
cabeça, quer dizer, a lógica, as formas vão surgindo na hora.
Jociele Lampert: Você faz estudos?
José Maria: Antigamente eu fazia, agora
não, fica na cabeça mesmo. Antigamente, estava estudando ainda, fazia um
diagrama cromático. Tinha uma escala básica, tinha também uma lógica, mas eu
fui crescendo, crescendo, hoje eu não preciso fazer estudos, quer dizer, hoje a
lógica está mais precisa e dá para ficar só na cabeça.
Jociele Lampert: Quanto tempo você
leva para elaborar a sua paleta para determinado quadro por exemplo?
José Maria: Muito tempo. Outro dia eu
estava lendo sobre um escritor americano. Ele estava sentado na cadeira na
varanda de sua casa e passou um vizinho.
- Está descansando?
- Não, estou trabalhando.
No dia seguinte o escritor estaca arrumando
o jardim, cortando a grama, subindo em árvore, etc. e o vizinho perguntou.
- Ah! Hoje você está trabalhando?
- Não hoje eu estou descansando.
Eu fico lá em casa, sentado e a cabeça
tá pensando à beça. Levo muito tempo para pintar um quadro, porque é complexo. Não
gosto de ficar me repetindo, tem muito pintor
que vemos que tem uma fórmula, e se repete sempre. Não, eu quero sempre
buscar uma coisa nova, ou melhor, conhecer mais.
Flávia Duzzo: Como você relaciona sua atividade de artista, escritor e teórico da
cor?
Primeiro quero dizer que nunca me
considerei um escritor com preocupações literárias. Sim, publiquei três livros
e tenho um quarto que em breve será editado. Como disse, são as minhas
anotações, ou seja, creio que mostram muito mais como foi meu processo de
conhecimento, tanto que digo que são livros inconclusos. E quanto mais
conhecimento adquiro, mais inconclusos esses livros me parecem.
Assim direi que esses livros se ocupam
de pintura em seus vários aspectos. Claro, me ocupei nessa caminhada já longa
com a questão da cor e dos coloridos, mas eles não são os objetos únicos de
meus estudos.
José Carlos Rocha: Com a tua mudança
do Rio para Florianópolis, você expôs os motivos, mas eu gostaria de saber da
tua arte, da tua produção, esta influência desta pressão que você teve no Rio
sofreu também nos teus trabalhos? Você identifica esta diferença entre estar no
Rio, produzindo no Rio e produzindo aqui em Florianópolis? Você acha que o
lugar te influenciou em novas composições, novas formatações, um novo pensar do
teu trabalho?
José Maria: Ah, não, aqui ficou muito
mais leve. Você deixa de ter grandes preocupações. Vou falar, vou falar mesmo. Por
exemplo, eu dava aula no Museu de Arte Moderna. Quando terminavam as aulas
professores e alunos iam à cantina. Muitas ideias eram trocadas e conversava
muito com certo professor, e naquela ocasião, na década de 80,eu já estava
começando a pensar no cinza sempiterno.
De repente, esse professor me disse que
estava preparando um a exposição, não tinha muito tempo para conversar comigo.
Passaram-se três meses e certo dia leio no jornal que ele ia expor no Museu de
Arte Moderna. Li a entrevista e eu percebi que ele estava repetindo várias
frases minhas. Repetiu na maior caretice, na maior sacanagem. Fiquei uma
arara. Pensei, no dia da abertura da exposição: vou falar com esse cara.
Mas aconteceu o seguinte e ele é que deve
ter ficado uma arara. Quem estava comprando muito trabalho meu nessa ocasião
era o João Sattamini e ele, no dia da abertura, na entrada do Museu, estava com
um catálogo desse professor na mão mostrando para todo mundo e falando; “Olhem,
este cara está copiando o José Maria!”
Jociele lampert: Quem falou para ele?
José Maria: Foi uma iniciativa do
próprio Sattamini.
Jociele Lampert: Que barraco! E era o
colecionador falando.
José Maria: Era um ambiente quente, eu
sei que tenho amigos que me defendem, mas sei também que tem sempre alguém que
está atacando, atacando mesmo, então, é desse peso que eu falo. Aqui em Florianópolis
não tem esse peso, é muito mais agradável, você poder conversar, falar o que
pensa. E agora acho que eu tenho que
falar essas coisas, como o meio artístico no Rio é pesado, como é baixo o nível. Acredito que os
verdadeiros artistas não devem se envolver nessas bobagens. Por isso digo, o
artista não é um ego, é um eco. E a arte é, como dizem muitos filósofos, uma
coisa ética e estética simultaneamente. O que acabei de contar foi a primeira
que o um artista me aprontou. Um galerista quis conhecer o meu trabalho,
começou a conversar comigo para eu fazer um contrato com ele e quando o outro
artista, que vendia muito e praticamente sustentava essa galeria soube, e isto
quem me contou foi um colecionador, e este colecionador perguntou para o
galerista: porque você não faz um contrato com o José Maria? Sabe qual foi a
resposta? Porque eu não posso, se eu fizer um contrato com o Zé Maria, perco um
artista com o qual tenho um contrato. Esse artista me disse que sairia da minha
galeria. É ele que sustenta a minha galeria.
Mas felizmente tenho os meus amigos. E
foi o Gonçalo Ivo que interveio e me apresentou aos donos da Galeria Saramenha,
um deles o Vitor Arruda, e assim consegui um bom contrato.
Apesar do apoio dos amigos é difícil
viver nesse meio.
Jociele Lampert: Meio artístico
selvagem…selvagem é a palavra certa…
José Maria: O meio artístico é
selvagem, selvagem mesmo.
Jociele Lampert: Mas você acha que a
cor por exemplo, na tua pintura mudou?
José Maria: Mudou mesmo. Porque aqui
tem uma atmosfera diferente. O Rio de Janeiro fica mais próximo do Equador, lá
você não tem pequenos contrastes, tem grandes contrastes. A luz é muito
intensa, então a cor é muito intensa também. Aqui não, a luz é de outro
espectro, então você começa a ver mais sutilezas cromáticas. Nesse sentido acho
que isso me enriqueceu muito. Não que eu esteja copiando esta atmosfera
luminosa de Santa Catarina, mas mudou minha pintura no sentido de detalhar mais
o colorido. Eu usava mais cores chapadas e próximas do espectro que deu origem
ao círculo cromático iluminista que já descartei. Aqui, creio, estou
aprofundando meus estudos. Aqui passei a explorar mais os rompimentos dos tons
e, por consequência, a manifestação em meus quadros do cinza sempiterno. Aproximei-me
mais de Espinosa quando ele diz que a natureza é causa de si mesma e mais, que
Deus é a própria natureza. Compreendi melhor a frase de Cézanne quando ele diz
que na natureza tudo está colorido. Compreendi também a relação do cinza
sempiterno com serpenteamento vinciano. Intuí também que podemos pensar em uma
geometria das cores, que nos pode permitir a construção de um espaço plástico
com mais liberdade, chegar às formas não mais presos às regras de proporção que
herdamos da tradição greco-romana. Resumindo, uma pintura que enfrente o
conflito entre a percepção sensível e a linguagem verbal, ou que faça da arte e
engenho uma coisa só.
Vale lembramo-nos de Krajcberg quando
chegou aqui no Brasil quando disse que a luz mata a cor. Aqui em Florianópolis sentimos
que há uma luz que faz com que percebamos mais as sutilezas cromáticas.
Jociele Lampert: Você está de frente
para aquela montanha bonita…
José Maria: Pois é, aquela montanha
bonita, outro dia estava falando com uma amiga minha. Tira aquelas antenas,
tira a RBS, para ficar mais parecida com a montanha de Santa Vitória. Tira um
poste que tem em frente a minha janela, uma placa enorme de trânsito, que
atrapalha, tira tudo isso. Quero ser mais livre para ver essas riquezas
cromáticas!
Jociele Lampert: Zé Maria, muito grata,
obrigada, é sempre um prazer ouvir você, você é um arcabouço de histórias. Então,
poder ficar um pouquinho e ter ouvir, acho que é um presente. Tenho certeza que
a publicação ganha muito com as tuas respostas, isso enriquece também.
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