domingo, 29 de janeiro de 2017

Breves anotações sobre as cores e coloridos na arte moderna e contemporânea, Braque, Picasso, Cézanne, Hélio Oiticica, Tunga e Milton Machado.



Breves anotações sobre as cores e coloridos na arte moderna e contemporânea

“Em cada dez pintores apenas um é colorista.”
Sêneca

Helio Oiticica escreveu, na década de sessenta, que havia um problema na pintura, a cor. Declarou, então, que a era da pintura de cavalete estava definitivamente encerrada. Seguiu seu caminho “espacializando” a pintura.  Pergunta-se: o problema continua? Creio que sim. E mais. Tal afirmação pode nos levar as indagações: o que é um colorido e o que é um desenho colorido? Creio que tais perguntas podem ser pertinentes se consideramos que a cor abstrata substantiva é uma ideia platônica, tem somente duas dimensões, ou seja, é planar, o que contraria o que Cézanne afirmou: que a natureza é mais em profundidade do que em superfície, e assim diremos que a cor abstrata subsiste por si só. Já a cor concreta é adjetiva, e que pelo rompimento do tom tem uma dimensão temporal, portanto mais que três, e que sua condição é ser no colorido. 

Creio que esse problema da cor na pintura pode ser estudado a partir dos artistas pós- impressionistas do final do século XIX.

Van Gogh e Odilon Redon, ao se referirem ao rompimento do tom, afirmaram que se misturássemos um laranja e um azul puros em quantidades iguais obteríamos um cinza absolutamente incolor. Apoiavam-se no círculo cromático iluminista que pretendia, racionalmente, explicar todos os fenômenos cromáticos da natureza. Já Gauguin  afirmou que a cor era enigmática. E se perguntou se deveríamos pintar uma sombra azulada ou o mais azul possível. Instalaram-se suas dúvidas. Sendo a cor enigmática, como racionalizá-la? Deveria usar a cor adjetivada ou idealizada? Já Cézanne afirmou que a luz não existe para o pintor, tem que se substituída por outra coisa, a cor. No final de sua vida diz que não realizou e nem realizará nada do que pretendeu e que fora um primitivo pelas coisas novas que descobrira. Já Seurat, baseado no livro de Chevreul, realizou uma obra ancorada em princípios científicos. Estudou a divisão do tom baseado no círculo cromático iluminista. Seurat foi seguido por Paul Signac e esse método foi classificado pela crítica como pontilhismo, que pode indicar, talvez, bem mais procedimento que uma questão teórica. Seurat preferia que o que vinha pesquisando fosse classificado como divisionismo, ou seja, que um tom, visto a curta distância, poderia ser divido em pequenas pinceladas de cor, que quando vistas a longa distância resultariam no tom original. Por outro lado seus quadros eram construídos a partir do número de ouro, ou seja, baseados na geometria euclidiana, que o colocava próximo à tradição grega retomada durante a Renascença. Vale dizer, Seurat pode ser um clássico que a academia alimentava. Como veremos a seguir, no início do século XX alguns artistas se rebelaram contra essa tradição que tem sua origem na Grécia.
No início do século XX duas retrospectivas importantes são realizadas em Paris entre 1902 e 1904; a de Van Gogh e Gauguin, respectivamente. Mas já em 1901 Matisse dá início ao movimento fauvista. Afirma que as cores devem ser puras e obedecer à emoção. Diz ainda não querer pintar como Signac, e que este pintor escolhe uma cor ou outra se baseando em princípios teóricos e científicos, princípios estes baseados no círculo cromático iluminista. Matisse é seguido por Braque, Vlaminck, Derain e muitos outros pintores. Esses pintores utilizavam cores intensas, sem um estudo prévio, como as crianças e os artistas primitivos, e eram contra os estudos acadêmicos. A cor, que não procurava uma relação com a realidade, torna-se mais idealizada que adjetivada e reduzida apenas a duas dimensões. O espaço plástico, assim, passa a coincidir com o plano do suporte, vale dizer, sem profundidade. Deixa de ser lá, conforme preconizava Alberti considerando a perspectiva científica euclidiana e passa a ser ali. Sem uma base teórica forte o fauvismo dura apenas dois anos, de 1905 a 1907.
Os fauvistas ao descartarem a perspectiva monocular e a biocular, esta iniciada por Leonardo da Vinci com seus estudos sobre os limites dos corpos e o modo como serpenteiam, e depois com Cézanne, que afirma que entre o objeto e o pintor se interpõe um plano, a atmosfera, fazendo coincidir o espaço plástico com este no qual nos orientamos, um espaço plástico aqui, e descartando, também, as cores com mais de duas dimensões, não estariam produzindo desenhos coloridos?
Sobre Matisse podemos afirmar que ele, além de se opor à tradição grega, também seguiu as observações de seu orientador, Gustave Moreau, que afirmou que seu projeto era o e simplificar a pintura. Matisse nos diz que conforme o tamanho do suporte procura relacionar formas bem proporcionadas (mas fora dos cânones da geometria euclidiana), para depois acrescentar as cores conforme suas sensações. Cria, assim, novas formas, tirando-lhes, até certo ponto, uma racionalidade que lhes são inerentes. As cores são enigmáticas, não racionalizáveis e, assim, as formas ficam a elas subordinadas. Com esse esvaziamento de uma racionalidade das formas cria-se uma aproximação com esse enigmatismo das cores utilizando-se muito dos arabescos. Assim, Matisse se afasta da tradição grega que estava impregnada na pintura.
Perguntamos, então: não são suas obras excelentes desenhos coloridos? Com essas observações quero deixar claro que não estou criando uma hierarquia, pois quadros coloridos e desenhos coloridos podem se equivaler em qualidades artísticas.
Ao nos referirmos ao enigmatismo das cores temos que esclarecer que ela possui uma lógica que está na zona do sagrado e que, a partir de certo ponto, nos é interditada, conforme nos expõe o físico Basbara Nicolescu em seu manifesto da transdisciplinaridade, lógica esta que se opõe à aristotélica. Portanto não há um mistério. Se nos é interditada podemos antevê-la como uma verdade, ou seja, que há uma lógica. E aqui citamos um dos pensamentos de Braque: “A verdade não tem contrário.”
Em 1906 é realizada a retrospectiva de Cézanne. Um ano depois Braque dá início aos primeiros quadros cubistas e começa a usar o rompimento do tom que tem uma dimensão temporal. É seguido logo por Picasso. A crítica, não percebendo toda a riqueza dos rompimentos de tons dinamizando o colorido com uma dimensão temporal, afirma que os cubistas resumiram suas paletas aos ocres, cinzas e pretos. Ou seja, não considerando o conflito entre a percepção sensível e a linguagem articulada, e também não percebendo a diferença entre as cores adjetivadas e substantivadas. Mais adiante comentaremos a questão do conflito entre a percepção sensível e a linguagem articulada. Nomeando-as, considero-as abstratas substantivas e não concretas adjetivas. Ao utilizar o rompimento do tom, agora percebo, Braque anima a pintura graças ao serpenteamento vinciano e ao cinza sempiterno, modulando (ou seja, as passagens claro-escuro são obtidas por diversos matizes) e não modelando (e neste caso temos um mesmo matiz, ora claro, ora escuro), seguindo os postulados de Cézanne, que sempre fala em modulação. No quadro de Braque abaixo (fig 1), podemos observar como, pelos rompimentos dos tons, o espaço cromático é modulado, ou seja, os ocres, ou amarelados, se não ficarmos presos às nomeações, passam, por interação da cores e contrastes, para uns tons azulados, e não absolutamente cinzas.

Fig.1 – Braque – Little Harbor in Normandy, spring 1909
Acrescenta-se: isso permanece em toda sua obra, ao contrário de Picasso, que depois de 1914 passa mais a modelar, ou fazer desenhos coloridos na medida em que as cores passam a ter somente duas dimensões. E assim, com poucas exceções, outros pintores cubistas. Podemos afirmar que Braque sempre coloriu e que Picasso, quando se afastou de Braque, também executou desenhos coloridos?
No quadro abaixo de Picasso (fig. 2) podemos observar a falta de modulação e de rompimentos dos tons. Mas vemos traços contornando a figura. Assim esse quadro permanece com apenas duas dimensões.

Fig. 2 –Picasso – Mulher  chorando – 1937
Matisse e Picasso, este em alguns quadros, utilizavam as cores segundo a ordem do espectro. Já Cezanne, ao utilizar o rompimento do tom, cria outra ordem. Segue uma citação de Gilles Deleuze Francis Bacon – Logica da Sensação:
"A modulação por toques distintos puros e segundo a ordem do espectro foi a invenção propriamente cezanneana para atingir o sentido háptico da cor.” Gilles Deleuze, Francis Bacon - Lógica da Sensação. Claro, essa observação do filósofo de que Cézanne em seu cromatismo seguia a ordem das cores no espectro, não é uma conclusão a que chegara, mas uma citação do que se dizia comumente.

Alguns impressionistas utilizaram em seus quadros duas escalas básicas para a passagem luz-sombra que obedeciam à ordem das cores do espectro. As duas escalas: 1 - laranja, amarelo, verde e azul; 2 - laranja, vermelho, violeta e azul.
Cézanne ao romper com os impressionistas não mais pensou nas cores e coloridos a partir do círculo cromático iluminista, portanto, não mais colorindo a partir de una escala baseada na ordem das cores do espectro. Daí ter afirmado que a luz não existe para o pintor e que somente um cinza reina na natureza. Para mim esse é o cinza sempiterno, um não espaço e um não tempo, causa e feito dos  coloridos, um pré ou pós- fenômeno. Esse cinza resulta do rompimento do tom que dá uma dimensão temporal à cor.  Assim percebemos em Cézanne uma escala que pode ser exemplificada: cor A, rompimento da cor A, cinza sempiterno, rompimento da cor oposta de A, cor oposta de A. Portanto uma escala que em nada obedece a uma ordem das cores do espectro.

Fig. 3 – Cézanne – A montanha de Santa Vitória
A escala básica do quadro acima:
LR, TR-LR, TR-AZ, AZ, VD, TR-VD (laranja e seu rompimento, azul e seu rompimento e verde e seu rompimento)

Citemos então Gauguin: “Esforcei-me para provar que os pintores, em nenhum caso, precisam do apoio e instruções dos homens de letras. Esforcei-me lutando contra todas essas resoluções que se transformam em dogmas que desorientam não somente os pintores mas o público. Afinal, quando compreenderemos o sentido da palavra liberdade?” De minha parte creio que devemos procurar fazer um discurso de dentro da pintura e não fora dela.

Continuemos. Em meados do século XX tivemos alguns estudiosos das cores, Kandinsky, Klee, Albers e Itten, mas todos ainda considerando o círculo cromático iluminista. Alguns pintores coloristas surgiram depois, poucos, certamente pelo fato de esses pintores considerarem um olhar não pelo simples aspecto, mas um prospectivo que implica em um saber do olho, como nos adverte Poussin.  Esses coloristas não se apoiaram tanto nesse círculo cromático iluminista, mas também não criaram nenhuma outra teoria cromática para substituí-lo. O curioso é que Rudolf Arnheim em seu livro Arte e percepção visual percebe a inadequação desse círculo cromático e propõe até outra teoria, mas nada convincente. Vale notar também que Mondrian, já no fim da sua vida, declara que seus quadros em branco, preto e as três cores primárias não passam de desenhos coloridos.
Parece-me que essa crise na pintura que eclodiu a partir da década de sessenta do século XX e os discursos sobre sua morte recalcaram ainda mais a questão da cor. Claro, isso não impediu que grandes artistas com novas ideias surgissem, como acima anotamos.

De minha parte continuei fiel à cor e aos coloridos, e nos meus estudos descartei o círculo cromático iluminista, o que me permitiu descobrir o cinza sempiterno como um pré ou pós-fenômeno. Redefini o rompimento do tom não mais como misturas pigmentares, mas como sobreposição no tom de sua pós-imagem, o que deu à cor uma dimensão temporal. Pensei nas cores abstratas substantivas, ideias platônicas nas quais a cor subsiste por si só. Pensei nas cores concretas adjetivas como um par que contém em si sua oposta e cuja condição é ser no colorido. Reinterpretei o serpenteamento vinciano. Estou imaginando a possibilidade de se pensar em uma geometria das cores. E digo que essa geometria sou eu, pois a cor é um fenômenos subjetivo. Mas assim como Cézanne, me sinto como um primitivo pelas coisas novas que descobri. Muitas são ainda as dúvidas.
Tenho consciência da importância de considerarmos as cores abstratas substantivas e concretas adjetivas e para justificá-las cito um texto no qual alguns físicos e filósofos são lembrados: “[...] Niels Bohr fazia notar, no âmbito da física nuclear, que ‘partículas materiais isoladas são abstrações, sendo suas propriedades definíveis e observáveis apenas por suas interações com outros sistemas. E, bem antes de Bohr, Hegel desenvolveu a ideia de que o particular, tomado fora de suas interações com os demais elementos particulares e com o todo, é uma abstração desprovida de realidade e de potência cognitiva [...].” Luiz Marques, Capitalismo e o colapso ambiental, Editora Unicamp.

Então se faz necessário em todos os ramos do conhecimento, e a pintura é um deles, que outra mentalidade se forme para que possamos enfrentar os desafios de nosso tempo.

Vejamos, agora, como essas questões se desdobraram nas obras de alguns artistas contemporâneos.

Certamente Hélio Oiticica percebeu o impasse a que chegara a pintura ao insistir na utilização de uma teoria cromática baseada no círculo cromático pós-newtoniano. Penso que, ao afirmar o fim da pintura de cavalete, não estava endossando o que muitos artistas e críticos afirmavam: a morte da pintura.  Hélio Oiticica espacializou a pintura ao realizar os relevos. Pergunto-me:  não estaria também esse artista seguindo Cézanne, que nos mostrou um espaço da pintura coincidindo com esse no qual nos orientamos? Lida menos com o conceito da cor abstrata substantiva e enfatiza mais a concreta adjetiva, muito embora ainda não as diferenciasse. E mais ainda: estará nos apontando para repensar o que Leonardo da Vinci nos diz sobre o serpenteamento e como o pintor deve evitar a segunda morte da pintura?



Fig. 4 - Hélio Oiticica 



Fig. 5 – Tunga  - True rouge

Vejamos, agora, como essas questões se desdobraram nas obras de alguns artistas contemporâneos.

Há também uma curiosa obra de Tunga, True rouge. Nessa obra percebe-se também o serpenteamento que anima o espaço, portanto uma geometria não euclidiana. Mas gostaria de fazer outra observação. Há uma tendência da crítica de considerar geométricas as obras nas quais se vê quadrados, triângulos, esferas, ou seja, figuras da geometria euclidiana. Essa obra de Tunga é também geométrica. Nela se percebe uma complexa estrutura topológica. 




Fig. 6 -  Milton  Machado

Tanto nas obras de Tunga como nas de Milton Machado temos um colorido na medida em que as formas estão subordinadas às cores. E ambas permitem a manifestação do cinza sempiterno pelos rompimentos dos tons e, assim, aproximam-se da geometria dos fractais. Vale lembrar o que Cézanne disse: que pinta somente uma seção do espaço.
A seguir cito uma frase de Helmut Hungerland, do livro Sugestão para a crítica de arte e outros ensaios. Um entre muito dos que, como observa Gauguin, desorientam não somente os artistas, mas o público em geral. Mas antes algumas observações.

Uma pincelada pode vir para o primeiro plano de nossa percepção como objetivamente uma pincelada ou subordinada a uma cor. Como nada consideramos com valores absolutos, pode haver um equilíbrio entre elas. E vale lembrar o que já falamos: as cores concretas adjetivas têm mais de duas dimensões, têm uma dimensão temporal.

“De acordo com Hetzer, desde a renascença se desenvolveu um conflito entre forma e cor (i.e., formas tridimensionais incluídas por linhas de contorno, ligadas à perspectiva científica) e cor,  (sendo essa essencialmente em duas dimensões). [...] desde que Cézanne dominou a perspectiva científica, restabelecendo a importância  do plano pictórico em duas dimensões,  e desde que a cor em si tem duas dimensões, segue-se, mais ou menos, que, nas pinturas de Cézanne, as ‘pinceladas individuais’ de cor são o verdadeiro apoio da estrutura pictórica.”




A cor abstrata substantiva e concreta adjetiva, Espinosa e Poussin



A cor abstrata substantiva e concreta adjetiva, Espinosa e Poussin
Digo que a cor abstrata é uma ideia e que subsiste por si mesma e que a cor concreta é adjetiva, que é um par, contém em si sua oposta, que se rompe por ação dessa oposta, e cuja condição é ser no colorido. Digo mais, que o pintor lida com as duas. Acredito que com esses conceitos pelos quais descartamos a ideia de cor definida em função do espectro e também considerando só a percepção, podemos entender Cézanne quando ele afirma que a luz não existe para o pintor. Com esses conceitos de cor podemos distinguir o que seja um colorido e um desenho colorido. Ou seja, podemos entender o que seja um colorido. Este tem sua lógica própria, e não mais somente diversas cores em uma superfície seguindo um determinado princípio de harmonia.
Certamente esses conceitos podem nos levar hábitos estéticos que somente com o tempo farão algum sentido.
Assim podemos nos aproximar de Espinosa e entender Cézanne quando ele diz que na natureza tudo é colorido e que a arte é uma religião.
Para Espinosa Deus não é mais um criador, mas a própria natureza como causa de si mesma e, por consequência, um produtor. Para Espinosa, Deus (ou a natureza), tem toda a liberdade, nada o constrange. Já o homem não tem toda essa liberdade, pois o que lhe é exterior o constrange.
Considerando a epistemologia de Espinosa podemos de uma forma bem simplificada dizer que primeiro o homem percebe o objeto e em seguida usa de sua razão para a compreensão desse objeto. Mas com isso não ultrapassa o constrangimento, ou seja, não produz nem cria, e por consequência, não consegue ser livre. Para tal Espinosa nos fala de uma terceira etapa. Nesta o homem pode, por uma sabedoria adquirida, criar, e neste ato se aproximar da natureza e entender melhor a liberdade. O filósofo fala de uma criação, ou conhecimento  por intuição. Agora podemos fazer uma referência a Poussin, que se refere a uma percepção considerando o simples aspecto do objeto, e um olhar prospectivo que considera o saber do olho que é bem mais que uma simples percepção.






segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Camões e João Cabral de Melo Neto


Arte, etimologicamente, significa técnica.  Portanto arte e tecnologia é um pleonasmo. Celine escreveu um livro, A arte de pintura o qual se referia somente à técnica, como preparar um suporte,  com fabricar tintas, como pintar a óleo, encáustica, têmpera a ovo, etc.
Qdo Leonardo diz q arte é coisa mental se refere a um fazer além de somente técnica, podemos dizer, arte e pensamento. o século XX Duchamp se refere à arte retiniana, e continua, qdo o pintor se apaixona pelo próprio pigmento.  .
Vale lembrar uns versos de Camões:
Cantando espalharei por toda a parte
Se tanto me ajudar o engenho e arte.
Um comentário do organizador da edição q tenho de Os Luzídas, Francisco da Silveira Bueno.
Distingue o Poeta entre engenho, talento, inventiva, natural, dom individual de cada um, e arte, técnica, fruto de aprendizado, ao alcance de todos. 
Para complementar segue um poema de João Cabral 
O Engenheiro

A luz, o sol, o ar livre
envolvem o sonho do engenheiro.
O engenheiro sonha coisas claras:
Superfícies, tênis, um copo de água.

O lápis, o esquadro, o papel;
o desenho, o projeto, o número:
o engenheiro pensa o mundo justo,
mundo que nenhum véu encobre.

(Em certas tardes nós subíamos
ao edifício. A cidade diária,
como um jornal que todos liam,
ganhava um pulmão de cimento e vidro).

A água, o vento, a claridade,
de um lado o rio, no alto as nuvens,
situavam na natureza o edifício
crescendo de suas forças simples.

Sim, a pós-verdade é um conceito mentiroso!

Sim, a pós-verdade é um conceito mentiroso!

Pergunto-me a mim próprio por que razão se descobriu o conceito de pós-verdade quando tínhamos à mão uma palavra tão boa para referir o mesmo conceito. Não, não me refiro a inverdade, que já teve os seus tempos.
É mesmo m-e-n-t-i-r-a! MENTIRA!
A pós-verdade, dizem-nos, ocorre neste tempo e sociedade em que a verdade deixou de ser relevante. Rasgam as vestes, como se fosse a primeira vez na História que tal acontece. Não é verdade! É mera pós-verdade, ou como prefiro dizer: MENTIRA!
Conhecido versus desconhecido
O que aconteceu, então? Ocorreu que uma série de conceitos que tínhamos por verdadeiros, pelo menos desde o Iluminismo e mais convictamente após o positivismo e o marxismo, começaram a ser postos em causa, a desmoronar-se, a ir por água abaixo. O consenso existente e que foi claramente dominado por uma abordagem epistemológica que não era, nem podia ser neutra, afunda-se. Nas universidades, em cuja maioria o conhecimento antigo foi substituído por uma nova vulgata pós-moderna, a crise não podia ser maior. Afinal, o que nos andaram a impingir não só não se verifica como acontece o contrário. Penso que a ‘pós-verdade’ reside nessa perplexidade contraditória. Sartre, Chomsky e Boaventura Sousa Santos não tinham razão. Os mais pessimistas, como Isaiah Berlin, Raymond Aron ou Fernando Gil estavam mais próximos da verdade.
Isto podia não ser mau se, como quase sempre, a criança, neste caso, conceitos transcendentes como o da Verdade (com v grande) não estivesse a ir pelo ralo com a água do banho (frase querida a Lenine). Mas está.
Trump veio demonstrar que se pode mentir com quantos dentes se tem na boca, sem que daí surjam consequências, pelo contrário tem milhões a apoiá-lo. Isto é verdade, sem qualquer prefixo pós. Mas peço licença: pessoas mil vezes menos recomendáveis, como Hitler e Estaline, Mao e Pol Pot já o tinham feito. Ninguém se lembrou da dita pós-verdade na altura dos crematórios e dos campos de concentração e dos tiros na nuca ou dos mortos de fome por uma política dogmática e insana. É certo que o mundo não era global a esta escala, mas a técnica é velha. E a verdade ou é ou não é. O problema é que, para boa parte dos relativistas, a verdade não é. E assim a mentira também não pode ser. Por isso, a mentira tem a mais recente tradução no dicionário do relativismo: pós-verdade!
Diz Manuel Fonseca no comentário a este post de Pedro Norton ” As massas induzidas por notícias falsas, a informação inventada, é velha de séculos. Da Grécia e de Roma. Foi a pós-verdade que levou a cicuta à boca de Sócrates e já havia pós-verdade nas Catilinárias. Sem a pós-verdade Shakespeare não teria posto na boca de Marco António a arrebatada oratória que virou do avesso a multidão que deixa de incensar Brutus para logo lhe querer queimar a casa. Eu vi a pós-verdade a fazer correr sangue nas ruas de Luanda na transição para a independência e depois da independência… Eu vi, gerações e gerações viram a pós-verdade ainda ela não tinha nascido”. Tem razão. Tem muita razão.
Mas, afinal, quando falam de pós-verdade, de que verdade falam?
O bom relativista postula que não há verdades absolutas (o que é logicamente falso, porque para este postulado ser verdadeiro pelo menos uma verdade absoluta tem de existir – a que diz não haver verdades absolutas). Ao postular que não há verdades absolutas e que tudo depende do ponto de vista do observador, confunde dois conceitos, além de matar mais uns.
Por um lado confunde o conceito de verdade prática (filiada na razão prática), quase toda ela indefinível em absoluto, mas apenas através de conflitos de valores (clashes of values) com a Verdade transcendente, aquela platonicamente preexistia na Psyke antes de se juntar ao Soma (corpo). Bem sei que Sartre defendeu que antes do ser há o Nada (Néant, que é uma palavra maior do que nada, ausência, vazio) inaugurando um novo existencialismo formado apenas por construções sociais, no qual nem as construções sociais naturais têm praticamente lugar. Assim, não haveria qualquer Verdade fora do ser. É esta a questão que já opusera Kant a Benjamin Constant. A Verdade com V grande só pode ser absoluta no espaço da razão pura e não na prática. A novidade com os pós-modernos (que na verdade só o são depois de Lyotard os descrever em 1970 em  ‘A Condição Pós-Moderna’) é, dito depressa e mal, uma amálgama do que ficara do niilismo com os restos do marxismo (não o da URSS), de ultrapassagem do iluminismo e da tradição liberal para uma sociedade multicultural sem referências centrais ou transcendentais, que os críticos classificavam como tribalizada.
Ao contrário do que se possa pensar a pós-modernidade não se filia na tradição liberal (embora alguns o sustentem). A tradição liberal sendo certo que detesta verdades impositivas convive e defende os conceitos transcendentais. Isto significa o quê? Que há conceitos que estão para lá de cada um e que cada um toma o caminho que lhe parece mais apropriado para lhes tentar chegar. E que, por outro lado, há um espaço conhecido e ao alcance de todos onde se lida com o bom senso e com o conflito de valores para determinar qual o mais importante a cada momento – e aqui temos verdades que podem ser relativizadas em função das situações concretas (o célebre exemplo do fugitivo da Gestapo escondido em nossa casa que nos leva moralmente a mentir sobre o seu esconderijo, apesar da mentira no mundo da razão pura ser condenável).
Mas no espaço que nos transcende, porque não o conhecemos, as verdades têm de ser absolutas, de outro modo não teríamos referências. Caso não reconhecêssemos como absoluta a Verdade, a Liberdade, a Igualdade, a Fraternidade, a Justiça, a Honra, a Probidade e mais uma série de valores.
(Peço a fineza de não confundirem verdade transcendental, ou seja que transcende cada indivíduo, com verdade revelada, que é o do domínio da crença livre de cada um).
A ser assim, e socorrendo-me de uma imagem gráfica, imaginemos que uma clareira no centro de uma floresta corresponde ao nosso universo conhecido. O perímetro dessa clareira corresponde ao incognoscível. Quando dobramos a área do que é conhecido, dobramos a do que não é conhecido. É o que tem vindo a acontecer nas áreas científicas da chamada ciência dura. Se multiplicarmos por 100 o conhecido, multiplicamos por 100 o desconhecido. E esta relação só tem duas soluções: ou a floresta é finita – e o nosso conhecimento seria limitado, a determinada etapa do conhecimento, porque tudo era conhecido, ou o desconhecido será sempre muito superior ao conhecido.
Mas o positivismo e o materialismo histórico pensaram noutra forma de derrotar esta irritante constatação (que além de Kant, Rousseau já pensara). Como? Postulando que seria possível prever o que não se conhece. O materialismo histórico sabe o sentido da História; o positivismo sabe que a mais educação corresponde mais conhecimento e sabedoria e que, armados dessas duas armas, a natureza humana modifica-se. Cria-se um homem novo, um homem diferente, o homo informatus.
Ora estas ideias, talvez generosas foram-se, O homo informatus pode ser um trumpiano ou um adepto de Putin ou Erdogan. Os nossos pós-modernos, que diabolizaram Merkel têm-na agora como líder do mundo livre – tocha que lhe foi passada por Obama.
A frase do Eclesiastes: “Tudo o que foi será; tudo o que aconteceu, acontecerá. Não há nada novo debaixo do Sol”, que não fazia sentido na modernidade, parece voltar a galope, como dizia Destouches ao adaptar um verso de Horácio (“chassez le naturel, il revient au galop”). Nada do que era antigo fazia sentido para o espírito moderno. E, no entanto, o espírito liberal nunca quis matar os conservadores nem os progressistas, antes tentou um chão comum onde convivessem todos.
Quando o homem se liberta de Deus – esse enorme desconhecido que atrapalha de uma forma terrível qualquer teoria de conhecimento total ou de previsão, parece não levar em conta essa grande reacionarice que é a natureza humana. Eis algo tramado. Muda pouco ou nada. Lida com a mentira e aplaude-a quando ela parece melhor do que a verdade. O povo adora vendedores de ilusões, mesmo quando é devidamente escolarizado (não é por acaso que 70 anos sem Igreja na Rússia não alterou grande coisa a devoção naquelas paragens). E são pontapés em conceitos destes, que eram preconceitos, o que a atualidade tem estado a dar. O que hoje se passa não é mais nem menos pós-verdade. É o que somos, sem as sombras criadas por teorias que vão pelo ralo (e que levam com elas adquiridos culturais, ideias generosas, muita coisa boa, mas ao mesmo tempo muita sujidade, muito mau cheiro).
“O Senhor pôs um espírito de mentira na boca de todos os profetas aqui presentes”, está escrito no Livro dos Reis (I Rs, 22,23); “Ó poderosos, até quando tereis o coração endurecido, no amor das vaidades e na busca da mentira?” (Salmos 4,3); “Na verdade, do maior ao menor, todos se entregam aos ganhos desonestos; desde o profeta ao sacerdote praticam todos a mentira” (Jeremias, 6,13). Posso continuar indefinidamente.
A pós-verdade começou com a expulsão de Adão e Eva do paraíso. Como não acredito que esse episódio seja histórico, resta-me dizer que é um conceito inventado pelos adeptos da pós-modernidade para não terem de lidar com conceitos que lhe são estranhos. Tais como a Verdade (com V grande) e a mentira.

sábado, 21 de janeiro de 2017

COR E LINGUAGEM uma gramática das cores Marco Giannotti


COR E LINGUAGEM uma gramática das cores
Marco Giannotti
Nunca se reflete suficientemente sobre o fato de que a linguagem é apenas simbólica, figurada, e de que jamais exprime diretamente os objetos, mas somente por reflexos.  Goethe
         Já é um senso comum afirmar que a linguagem interfere na percepção e identificação dos objetos cromáticos ao longo da história. Porém, nosso objetivo neste ensaio consiste em analisar como a cor  no século XX passa a ser entendida como um linguagem especifica, sujeita a regras próprias, independente de sua utilização mimética. Desde o século XVI perdura um debate interminável sobre a primazia da linguagem escrita sobre a linguagem visual, bem como do desenho diante o colorido.[1] Até o século dezoito, se uma obra representava uma paisagem, cabia ao observador narrar os fatos observados: a história dos personagens, o que estão fazendo naquele lugar específico, os objetos ao seu redor etc. O quadro era descrito como um espetáculo da natureza que se desenrola diante dos nossos olhos. O aspecto formal da composição - a disposição das cores, as relações espaciais, as proporções - tendia a ser ocultado pela descrição realista do motivo. A obra era analisada em função da sua capacidade de suscitar um conteúdo claro e distinto. Os critérios de avaliação de um quadro eram literais, a pintura era julgada conforme os critérios estabelecidos pelo escritor. Daí a famosa máxima de Horácio: a pintura como poesia (Ut pictura poesis)[2]. Contudo,  a partir do séc. XVIII as palavras passam a se distanciar das coisas representadas [3], elas são interpretadas como signos que formam uma linguagem, formas de representação. Elas não são mais vistas apenas como meios de invocar simplesmente as coisas do mundo sensível, revelam uma singularidade tal que devemos pensar a respeito da sua própria natureza. Este movimento, que abrangeu todas as artes, pode ser entendido de uma maneira bastante genérica como o fim do período clássico. Escritores começaram a pensar nas particularidades da escrita, pintores, sobre a relação entre desenho e cor, músicos, sobre a singularidade de cada som. Neste momento, Lessing escreve em seu Laocoonte (1766) a respeito da diferença entre artes temporais e espaciais, ou seja, advoga a independência da pintura (arte espacial) frente à poesia (arte temporal), quebrando a submissão da pintura à narrativa. O pressuposto clássico de que os pintores tenham que descrever determinadas ações também é colocado em cheque. É quando o artista se vê livre das convenções clássicas que ele pode pensar na especificidade do seu meio de expressão: o fato de uma pintura ser feita sempre em uma superfície bidimensional, de que seus instrumentos básicos são desenho e cor. Os pintores sempre tiveram consciência de trabalhar sobre uma superfície, mas a relação entre o espaço virtual e o espaço real, bem como o compromisso com a storia, a dimensão narrativa, faziam com que este problema fosse colocado de outra maneira. A superfície da tela não é mais vista como um meio transparente (a janela renascentista que evoca um espaço virtual), mas como um terreno de experimentação contínua[4]
O círculo cromático
         É notável como a utilização de esquemas  geométricos cromáticos nos tratados sobre a cor partir sec. XVIII antecipa o abstracionismo do século XX. Em seguida, tentaremos mostrar como tais esquemas abstratos aos poucos escapam do seu uso científico e passam a se firmar como um modo exemplar para se refletir sobre a cor. Durante vinte anos Goethe debate as teorias óticas de Newton acusando-o de empregar uma linguagem matemática que jamais se adequaria ao fenômeno cromático: “números não descrevem um fenômeno” repete ele ao longo deste anos. Entretanto, o círculo cromático newtoniano perdura em sua Doutrina das Cores. Se, por um lado, Newton recorre ao círculo para provar uma experiência cientifica em que o branco surge da síntese das outras cores, Goethe, ao negar esta hipótese, interpreta-o como um fenômeno primordial, ou seja, como o próprio fundamento da sua Doutrina. Assim como o imã é polar, positivo e negativo,  e revela uma lei até então considerada pelo autor como oculta na natureza, o círculo demonstra uma lógica na sua disposição cromática.[5] Para o poeta é inútil buscar uma teoria por trás dos fenômenos, pois eles mesmos exibem os conceitos,  e, ao invés de provar uma teoria cientifica, têm um estatuto estético e espiritual.
Círculo cromático. J. W.Goethe, 1806
         No círculo cromático  acima feito a base da aquarela podemos notar como Goethe se esforça em relacionar as manchas cromáticas com nossas faculdades: razão, fantasia, entendimento e sensibilidade, e, em seguida, com os conceitos de belo, nobre, necessário, comum, bom. A aquarela, pela sua natureza técnica, faz com que a cor, ao ser diluída, desafie o contorno ditado pelo desenho. Willian Turner, que chega homenagear Goethe em um de seus quadros, busca elevar esta técnica a uma categoria artística autônoma, não mais sendo vista como um estudo preliminar.[6]
          Ao longo do sec. XIX, surge uma estética cientifica que busca juntar a psicologia experimental, a fisiologia e a filologia na busca de um linguagem primordial. Surge uma gramática das artes que busca modos de representação mais sintéticos e abstratos. “Dotada de um coeficiente, a cor entra em um sistema de relações combinatórias puras que a retira definitivamente de sua relação primordial com a mimesis, realizando uma das leis fundamentais da fisiologia, segundo a qual nos percebemos relações e não realidades.”[7]      
          Na arte moderna os pintores progressivamente se distanciam do estudo da natureza, eles não buscam mais representar a cor local e registrar uma impressão visual no quadro, mas antes trabalhar com as opções cromáticas que o pigmento oferece na própria palheta do pintor. Para que este salto se efetue, o artista antes teve que abrir mão de conceitos clássicos como a representação mimética da natureza, em busca de uma realidade interior. A cor passa a ser vista como expressão de uma subjetividade artística. O processo da emancipação da cor na pintura coincide com o ápice do Romantismo, que fez com que a beleza da arte consistisse não na adequação a um modelo ou a um cânone externo de beleza, mas na beleza da expressão, isto é na íntima coerência das figuras artísticas com o sentimento que as anima e suscita. Como diz Baudelaire, “o Romantismo não está na escolha do tema, nem na verdade exata, mas na maneira de sentir” [8]. A exaltação do romantismo conduz Baudelaire a valorizar a obra de Delacroix, que imprime em suas pinturas um colorido altamente emocional, em relação ao seu oponente Ingres, que por sua vez privilegia o desenho e os valores neoclássicos (bem como a contenção dos sentimentos). Segundo Gombrich, os artistas já conheciam o potencial expressivo das formas e cores antes da teoria expressionista (por exemplo, em Lorenzo Lotto), mas é um fato incontestável que ela se torna uma questão dominante para os artistas modernos.[9]
         Se no romantismo a cor adquire uma tonalidade interior, no impressionismo,  à medida em que a pintura é entendida como um registro de uma percepção visual, as cores são compreendidas na maneira em que aparecem para o sujeito. O dilema entre uma dimensão subjetiva e outra mais objetiva torna-se evidente na dúvida de Cézanne. A valorização do aspecto expressivo das cores mescla-se ao processo de descoberta do mundo interior do artista. Em uma carta a Joaquim Gasquet, Cézanne nos diz: “perder a consciência, descer com a pintura às raízes sombrias presentes nas coisas e voltar a subir com as cores para impregná-las de luz” .9 Por outro lado, para não cair no desvario cromático, é fundamental colocar as cores em ordem numa composição. A mudança decisiva na carreira do artista “ocorreu no início da década de 1870, quando Cézanne, sob a proteção de Pissarro, passou de uma pintura sombria, com tons carregados e contrastes frequentemente violentos (influenciados por Delacroix), para uma fatura impressionista, mais delicada, luminosa e agradável. Com essa mudança, Cézanne libertou-se da turbulência das paixões em seu trabalho.[10] As cores para o artista não estão na natureza, são antes abstrações do nosso espírito.[11] Neste processo de distanciamento em relação a “realidade exterior " o artista se identifica muitas vezes com um ser maldito, capaz de tudo criar ou destruir no momento seguinte. Esse processo está descrito com precisão em um conto célebre de Balzac, Le Chef d’ouvre Inconnu - aliás, um dos contos preferidos de Cézanne.  Frenhofen é um pintor que acaba enlouquecendo  ao retratar um pequeno pé  feminino no meio de um amontoado de manchas, a pintura se transforma em uma muralha abstrata, não há profundidade, apenas tinta aplicada na superfície da tela.
          Na arte moderna, a matéria pictórica torna-se expressiva, e a escolha de determinadas técnicas já é um ato expressivo. Para Van Gogh, pintar era uma verdadeira catarse, um jorro, uma purgação de sentimentos; não é, contudo, um ato meramente sentimental: a presença da massa corpórea da pintura anula qualquer devaneio, sua presença material garante esta ambiguidade necessária, uma tensão permanente entre a cor como pigmento e simultaneamente como emoção.[12] Por isso é que ele nos diz que a pintura é o que permitia o adiamento de um colapso iminente. Contudo, nos momentos insanos, o pintor chegava a ingerir a própria tinta.
         Ao final do século XIX, a introdução de corantes químicos produziu uma enorme transformação na palheta do pintor, que passa a conter cada vez mais cores artificiais. As cores aplicadas na pintura se distanciam cada vez mais das coisas percebidas como coloridas, são signos que se separam das cores percebidas natureza.Se não há mais uma medida exterior como a mimesis para guiar a prática, como encontrar novas regras para que os artistas não entrem em devaneio? A procura por uma composição cromática mais rigorosa fez com que o artistas se apoiassem em teorias cromáticas como a de Goethe, Chevreul, Ostwald.[13] De fato, os pintores abstratos iniciais adotaram uma série de círculos cromáticos, o que permitiu a eles refletir sobre a cor como uma linguagem autônoma. O próprio conceito mimético passa a ser entendido não como a representação de uma natureza exterior, mas a busca por certas medidas ideais que revelariam uma natureza oculta, ideal, suprema. Não é surpreendente que o uso desta linguagem se baseasse em um simbolismo, e que esta linguagem tenha se tornado tão hermética. Ivan Kleiun, no manifesto suprematista de 1919 afirma que “nossas composições cromáticas estão sujeitas somente as leis cromáticas e não às leis da natureza.”[14] O que era visto como teoria torna-se motivo para uma inspiração poética.
DELAUNAY, ROBERT. Formes circulaires, 1930. Óleo sobre tela,128.9 x 194.9 cm
  Um dia, em torno de 1913, abordava o problema da essência da pintura, a técnica mesma da cor. Chamávamos de pintura pura, enquanto fazia experiências com discos simultâneos. O disco primitivo consistiu em um tela com cores opostas que não tinham outra significação além do que estava visível: cores em contraste dispostas em um círculo. Robert Delaunay.
         A experiência ótica se torna mais abstrata na medida em que o artista, ao invés de olhar para a natureza na busca de estímulos externos, usa arbitrariamente as cores dispostas em sua palheta e busca expressar um estado interior[15]. As cores são vistas na sua dimensão fisiológica, nos efeitos que produzem internamente na retina do observador. É neste momento que a obra de Goethe passa a ser discutida seriamente entre os artistas. Ao invés de descrever um comportamento físico da luz, o círculo cromático se torna um recurso para explorar as dimensões fisiológicas, psíquicas e espirituais da cor. Para Kandinsky, a abstração seria o contrário de uma postura intelectualista e sim uma busca das camadas ocultas do psiquismo: “Só num estágio avançado da evolução do homem é que se amplia o círculo das características que incluem diferentes objetos e seres. Nesse estágio tais objetos e seres adquirem um valor interno e, finalmente uma ressonância interna. O mesmo ocorre com a cor que, num estágio mais rudimentar da alma, só é capaz de produzir um efeito superficial, que desaparece apenas terminado o estímulo...Num estágio posterior de evolução, porém tal efeito elementar dá origem a outro, mais penetrante, que provoca um abalo interior. Nesse caso, verifica-se o segundo resultado básico da observação da cor, ou seja, seu efeito psíquico, que provoca uma vibração espiritual. E a primeira força psíquica elementar torna-se então um meio através do qual a cor chega à alma”[16] Este estado interior precisa no entanto ser objetivado, há um “ocultamento do espírito na matéria”. A forma é a expressão exterior de um conteúdo interior.
         A viagem para países mediterrâneos em busca da luz mescla-se a uma viagem interior de formação: Goethe inicia sua investigação sobre a cor após ter descoberto o colorido da pintura italiana, Paul Klee, após uma viagem a Tunísia, se encontra na cor: “a cor me possui, bem o sei” escreve em seu diário. “ é um momento feliz, eu e a cor somos um só. Sou pintor.” Exímio violinista, Klee, cria uma linguagem extremamente original, uma espécie de ideograma, onde a palavra é graphein: letra, nota musical e desenho ao mesmo tempo.

- "O cinza da noite acaba de ir" (1918). Aquarela, pena e lápis sobre papel, colagem sobre cartão (22,6 x 15,8 cm). Zentrum Paul Klee, Bern
         Neste poema-pintura de Klee, a letra surge a partir de um solo cromático, a aquarela adquire uma dimensão sinestésica, a escrita possui sonoridade, timbre e matiz simultaneamente.[17] Ao invés de imitar, o artista busca criar um segunda natureza. A utilização das cores um uma grade geométrica por sua vez advém dos esquemas cromáticos descritos acima, onde a cor chega a articular uma gramática própria. A presença de um cinza bem no meio da composição nos faz pensar ainda nos recursos  acromáticos que serão utilizados posteriormente por Jasper Johns, discutidos um pouco mais adiante.
         Os artistas franceses[18], advindos de uma tradição mais empírica, impressionista da cor, tomam o livro de Chevreul como guia, um tratado menos metafísico e mais pautado na observação da mistura ótica advinda da tapeçaria, quando, por exemplo, fios vermelhos e verdes produzem uma sensação fisiológica de cinza. Se por um lado os neoimpressionistas, em particular Seurat, irão buscar cada vez mais uma fundamentação cientifica para este fenômeno, os fauves procuram uma dimensão expressionista, interior da cor, e assumem uma postura mais as reticente frente à teoria. Como afirma um dos seu percussores, Matisse, uma das grandes conquistas modernas foi ter encontrado o segredo da expressão pela cor. Cor e forma articulam uma nova linguagem.
Gramática das cores
         Quando digo, por exemplo, que tal ou tal ponto no campo é azul, não digo apenas isso, mas igualmente que esse ponto não é verde, nem vermelho, nem amarelo. Apliquei de uma só vez toda a escala cromática. Pela mesma razão um ponto não pode ter, ao mesmo tempo cores diferentes. Wittgenstein
         As cores subjetivas ou fisiológicas são as mais importantes da Doutrina das Cores  e o ponto de partida para a análise e compreensão de toda as cores resultantes. Mas é justamente neste ponto crucial que Wittgenstein discorda de Goethe, pois este conceito se baseia em uma experiência fenomenológica primordial, ou seja, na busca de um fenômeno anterior a todos os outros, que, paradoxalmente, nos leva a uma contemplação das ideias. Ao invés de buscar um conceito único sintético para as cores, Wittgenstein analisa as relações conceituais que elas estabelecem entre si ao formarem uma gramática ou uma linguagem. Um azul, por exemplo, só pode ser compreendido na medida em que sabemos que não se trata de um amarelo ou laranja, etc. Este sistema cromático varia de cultura para cultura, de modo que as cores só podem ser interpretadas a partir de suas diferentes práticas que se inserem num determinado contexto. Torna-se impossível deste modo aplicar uma teoria geral para um fenômeno tão instável como a cor. Para Wittgenstein, os problemas fenomenológicos perduram à revelia de uma fenomenologia. [19]Goethe como Wittgenstein escreve aforismas sobre a cor. É como se a própria linguagem não pudesse dar conta integralmente do fenômeno cromático. Quanto se faz um aforisma abre-se espaço para o que não está dito. Goethe, em sua Doutrina das Cores, oscila entre uma linguagem de natureza cientifica e outra mais poética e fenomenológica, de modo que temos a impressão que nenhuma linguagem é capaz de dar conta integralmente dos fenômenos cromáticos. Isto porque as cores podem ser vistas tanto sob a ótica física, como sob a artística, poética.
         O que acontece quando a nossa percepção de uma cor é desafiada pela palavra? Os fenômenos visuais são codificados como uma linguagem, e a compreensão de uma obra parece implicar um entendimento prévio dos códigos de cada cultura. A pintura efetivamente parece cada vez mais falar de si mesma, de seus esquemas de representação, de suas regras espaciais, das maneiras como podemos captar um fenômeno cromático.
Jasper Johns False Start. 1959, Óleo sobre tela, 170.8 x 137.2 cm
 Jubilee, 1959. Óleo e colagem sobre tela. 170.8 x 137.2 cm (fig.05)
         Jasper Johns joga com as ambiguidades semânticas de cada linguagem, questiona a cada instante a maneira como estamos predispostos a olhar uma obra de arte. Isto aparece quando nossas expectativas são de certa forma frustradas. Do ponto de vista cromático, embora esta atitude inovadora de criar uma ambiguidade visual já esteja presente em suas primeiras obras (onde uma bandeira é tanto uma bandeira como uma pintura), False Start é o primeiro quadro onde Johns joga radicalmente com as diferentes maneiras que podemos perceber as cores. Nesta obra, as manchas cromáticas entram em conflito com as palavras aplicadas sobre elas: Johns denomina de amarelo uma superfície azul, uma mancha vermelha tem o nome de laranja e assim por diante. A presença da cor na nossa sensação não mais corresponde ao significado da palavra aplicada. A identidade da cor é posta em xeque, pois dois critérios de identificação da cor são utilizados simultaneamente, um se contrapondo ao outro: o conceito que define o que são as cores entra em choque com a nossa percepção, que parece aturdida, desqualificada. O titulo do trabalho “False Start” justamente reitera esta experiência, visto que um falso começo remete a uma largada queimada em uma corrida de cavalos, é preciso assim recomeçar o jogo. Johns foi profundamente influenciado pela critica que Duchamp faz da maneira como vemos um objeto de arte. A pintura explicita a maneira como nos preparamos para vê-la: “o ato de ver uma obra de arte é transformado em um ato de voyeurismo. Olhar não é uma experiência neutra: é uma cumplicidade, pois ilumina o objeto. O contemplador é um observador (...) Olhar é uma transgressão, mas a transgressão é um jogo criador.”[20] De certa forma, toda pintura explicita seus esquemas conceituais que moldam o nosso olhar. Jasper Johns, refazendo no plano sensível a crítica de Wittgenstein a uma interpretação fenomenológica das cores, nos mostra que não há mais um critério único para identificar as cores.[21] Os critérios para distinguir um fenômeno visual estão imbricados com o uso da nossa linguagem, do que entendemos pela palavra vermelho, de como podemos distinguir um amarelo-alaranjado de um laranja-avermelhado, enfim, como o fenômeno cromático pressupõe uma gramática das cores. Cores e formas deixam de ser o repertório único do artista, que se volta cada vez mais para os limites do fenômeno visual, já que a linguagem passa a interferir no modo como percebemos as coisas.[22] A sua critica à autonomia da imagem pura retiniana se baseia no fato que nossa percepção pressupõe uma articulação com a linguagem. Nota-se deste modo uma critica radical à pintura como algo que se realiza exclusivamente na retina do observador. Johns é um dos artistas que coloca novos limites para o uso da cor, quando a utiliza de forma cada vez mais objetiva e impessoal. Não é de se estranhar que suas pinturas tenham uma grande quantidade de cinza, uma cor a seus olhos interessante porque “evita toda qualidade emocional e dramática”.[23] Ao buscar uma pintura literal, a fim de conduzir o espectador a regiões mais verbais do que retinianas, Johns evoca a atitude de Duchamp de buscar, através dos títulos que atribui as obras, uma cor invisível.[24]Porém, na medida em que a cor se torna um fenômeno cada vez mais mediado por outras formas de linguagem, não corremos o risco de perder este componente irredutível da representação? É possível resgatar atualmente uma experiência expressiva da cor? Será possível ainda dizer que “a cor é o sensível na, ou melhor, da pintura, componente irredutível da representação escapando da hegemonia da linguagem, experiência pura de um visível silencioso que constitui a imagem como tal?”
Johns, Periscope (Hart Crane). 1963
Óleo sobre tela (170.2 x 121.9 cm), coleção do artista.
         Duchamp explicita a maneira como deciframos uma imagem utilizando critérios linguísticos: “os títulos são escolhidos de tal maneira que impedem de situar meus quadros numa região familiar que o automatismo do pensamento não deixaria de suscitar a fim de subtrair a inquietação”. O principio que reinou durante quinhentos anos, ou seja, o que afirma a separação (ou uma relação hierárquica) entre a representação plástica (que implica semelhança) e a referência linguística (que a exclui), se quebra na medida em que passam a ocupar o mesmo campo visual, de modo que há uma justaposição de figuras com a sintaxe dos signos. Nesta rede inextricável de imagens e palavras, muitas vezes “uma palavra pode tomar o lugar de um objeto na realidade assim como uma imagem pode tomar o lugar de uma palavra numa proposição”.[25] A experiência estética da cor parece se diluir no mundo contemporâneo, onde práticas diferentes de utilização das cores parecem se misturar. Técnicas diversas como a colagem, aquarela, móbiles, tintas automotivas, pigmentação etc. passam a apresentar a cor de diferentes modos.
         O emprego da cor torna-se mediado por um conceito específico, percebemos cores de diferentes modos, pois a interpretação do fenômeno cromático está condicionada a uma determinada prática e a uma poética: Jasper Johns usa a encáustica, técnica que mistura o pigmento com a cera, para mostrar a opacidade da linguagem. Mark Rothko utiliza a têmpera a fim de garantir a presença luminosa do pigmento, pois a cor parece se desprender desta fina poeira e começa a habitar o espaço. Jackson Pollock aplica uma tinta veloz, automotiva, para poder implodir a pincelada em um gesto para além da tela. Yves Klein, Hélio Oiticica e mais recentemente Anish Kapoor procuram questionar os limites do objeto e do espaço ao trabalhar com a cor como um pigmento que se transforma em luz. Se não pensarmos neste jogo de resistência entre as cores e o seu meio material, corremos o perigo de lidar com a cor como algo exclusivamente ótico, um jogo virtual de cores. Devemos evitar tratar a cor como uma relação abstrata, onde “x” cor se relaciona com “y” cor.
         A cor não pode ser abstraída da técnica empregada bem como do seu  contexto espacial. Um amarelo pintado com têmpera é radicalmente diferente do mesmo pigmento utilizado na encáustica. Uma pintura é um jogo permanente entre os significados múltiplos de seus elementos. As cores ainda podem revelar um olhar subjetivo, uma forma de interpretar o mundo ao redor, mas, a fim de resgatar este seu potencial, é preciso entender a cor como um fenômeno complexo, que muda de característica conforme sua utilização. O processo de nomeação cromática está intimamente ligado ao processo da manufatura de objetos cromáticos, sendo que estes muitas vezes adquirem nomenclaturas distintas ao longo da história. Por outro lado,  a alquimia fazia com que os próprios matérias se transmutassem, necessitando, logo, de outros nomes.
         Um pintor contemporâneo que contrapõe uma gramática das cores frente à antiga storia é Brice Marden. As cores aparecem como uma revelação em seus quadros: Conturbatio, Cogitatio, Interrogatio, Humiliatio, Meritatio (título de uma série de pinturas de 1978) são os diversos momentos representados que fazem parte do ciclo da anunciação à Virgem, da sua surpresa e hesitação ao instante da submissão a uma ordem divina. Durante o Renascimento a diferença de atitude da Virgem frente ao anjo era facilmente reconhecida por um homem razoavelmente culto. Entretanto, atualmente, se não fosse o livro de Baxandall,[26] não seriamos capazes de captar a sutileza de cada gesto. As pinturas de Marden são como um mistério revelado a um olhar iniciado, há nelas um jogo sutil de cores que só pode ser percebido com tempo. Os pigmentos são misturados com uma base de óleo e cera, de modo que a cor deve vencer a opacidade da cera para aparecer. Contudo, justamente por esta dificuldade, seus quadros apresentam em alto grau uma emoção contida. Neste caso, a variação de escala e matiz cromático em cada pintura produz significações diversas, o observador saberá destrinchar o sentido de cada uma destas telas se estiver mais familiarizado com as teorias cromáticas do que com a bíblia. A semelhança visual entre estas pinturas e os estudos de passagem cromáticas feitas por Goethe há cento e cinquenta anos chega a ser notável.
Goethe, passagem do amarelo ao vermelho, aquarela, 1796, Weimar Stiftung,
Brice Marden, Meritatio, 1978, pintura a óleo a cera sobre tela.
Nomear e ver
Ao invés de condenar estas imperfeições ás palavras, devemos atribuí-las a nosso entendimento, visto que as palavras se colocam entre nosso espírito de verdade das coisas. Leibniz
         A interpretação da cor como um fenômeno visual que se articula com uma linguagem não impede uma discussão questões propriamente fenomenológicas. Neste sentido as cores aparecem ora como fenômenos espaciais, ora como temporais. Chamamos muitas vezes de uma mesma cor dois fenômenos distintos, por outro lado, um só fenômeno pode ter muitos nomes.
         Por que vemos em geral uma maçã sempre vermelha (ou verde) apesar de suas variações de luminosidade? A constância cromática explicita o quanto estamos condicionados a ver o que conhecemos. Por outro lado, se buscarmos efetivamente comparar o que estamos vendo com o que nomeamos há um enorme o descompasso. Sabe-se que a percepção da cor é tardia nas crianças e está atrelada a própria educação dos sentidos, sempre mediada pela linguagem. Um esquimó tem mais acuidade em perceber as diferentes nuances de branco, e sua linguagem tem mais termos para este fim, pois saber discernir a neve  recente da neve mais antiga pode ajuda-lo na sua sobrevivência. Do mesmo modo os índios da América do Sul criaram mais termos para o verde e azul, associando-os a diferentes formas e texturas de plantas. Neste sentido, cabe indagar por que temos ainda esta crença mítica sobre a existência de cores puras. “Quem tem medo do vermelho, azul e amarelo” é o titulo de um quadro de Barnet Newman que explicita esta crença.
         Do mesmo  modo, teimamos em ver as sete  cores no arco Iris, enquanto seu espectro  cromático é infinito. Newton escolheu sete cores para o seu círculo cromático muito mais por questões cabalísticas do que por questões propriamente cientificas. E no entanto, “a concepção espectral da cor se impôs progressivamente e suas consequências sobre a classificação e provavelmente sobre a denominação da cor são profundas. A ordem espectral pouco a pouco substitui a antiga ordem simbólica que predominou durante a idade media[27]”.
Mursi
         Para combater estes “preconceitos” basta ampliar nossos horizontes e verificar que “a noção de cor não é explicitada por um vocábulo próprio em todas as linguagens: a cor é apreendida, em muitas culturas, paralelamente a outros parâmetros sensoriais, em particular táteis, gustativos, olfativos ou até mesmo auditivos”.[28] Wittgenstein por sua vez nos alerta que um dos grandes desafios da filosofia é desfazer as ilusões fomentadas por nossa linguagem.
          Uma tribo africana como os Mursi não utilizam o conceito de cor pura. Essa tribo, dependente da coleta do sangue do gado, utiliza como padrão conceitual a pele de vaca, de forma que ao invés de dizerem que a montanha é verde, eles a atribuem um termo que remete a pele estriada do gado.  Logo, quando estão falando a respeito da pele de vaca,  sempre utilizam termos básicos, mas quando discorrem sobre outros fenômenos, muitas vezes utilizam dois termos e a partir dai, conseguem diversas gradações que lhes permitem descrever o mundo sensível.[29]
         Sob esta ótica é questionável a empreitada feita na década de sessenta por Berlin e Kay, que utilizaram tabelas de cores padronizadas (Munsell) a fim de estabelecer um padrão geral de desenvolvimento na percepção da cor entre as sociedades mais primitivas, que vai do par binário branco e preto, em seguida o vermelho e assim por diante.[30]O fenômeno cromático é um conceito culturalmente construído, sendo que no caso dos Mursi, por exemplo, nem podemos afirmar que estamos empregando o conceito adequado. Não há nenhuma visão, nenhuma linguagem pura, imediata e transparente, ao contrário do que algumas posições cientificas pretendem postular.
         Ao invés de buscar uma linguagem primordial, grande sonho iluminista de uma babel cromática, devemos antes nos ater na diversidade com que a linguagem se metamorfoseia no mundo da cor no espaço histórico e cultural, sempre nos colocando novos problemas fenomenológicos. O emprego de determinados termos como por exemplo o cerúleo, varia de contexto bem como de época, podendo designar além do azul, o amarelo e o verde.[31]
         Os Maoris tem cerca de 3.000 nomes de cor, isto não significa que tenham uma acuidade particular, mas que justamente não identificam os mesmos termos em situações distintas, eles tem uma apreensão mais concreta, menos abstrata deste fenômeno. No entanto, para o mundo ocidental a abstração se tornou uma constante no principio de identificação cromática, seja no emprego de cores puras, seja na tentativa de catalogar e sistematizar este fenômeno. Portanto, determinadas polaridades, ou antagonismos cromáticos, só podem ser compreendidos no interior da gramática de uma cultura especifica: em muitas civilizações o antagonismo entre verde e vermelho ou entre azul e amarelo simplesmente não existe. Desde a Antiguidade se discute em que medida os termos utilizados na linguagem podem corresponder efetivamente a vasta gama do espectro visível.[32]
         Se, como vimos acima, Jasper Johns e Brice Marden utilizaram a cera em suas pinturas com o intuito de acentuar a imbricação entre cor e técnica, de tal forma que a opacidade presente na encáustica torna a apreensão da cor menos imediata, Bruce Nauman confere materialidade a cor na sua articulação com a linguagem. O signo se desprende da frase e adquire um corpo próprio. Estamos longe de uma obra que busca uma percepção meramente visual: a palavra “HOT”-quente em inglês- claramente associa cor a calor, visto que a cor vermelha é associada as “cores quentes”, por outro lado, a palavra está sendo polida com a cera derretida, quente. Mas, por que acreditamos que o vermelho é uma cor “quente”, embora sua frequência seja menor do que a da cor azul, que é considerada “fria”? Na chama de uma vela a parte mais intensa é justamente a parte azul. A visão da imagem Hot produz um serie de associações táteis, de forma que a apreensão da obra se faz quando o observador passa a trabalhar sinestesicamente com estas sensações que vão além da imagem visual. A obra é feita no ato de polir bem como no ato de sentir o calor produzido pela palavra. O texto nestas imagens produzidas em 1966 adquire uma dimensão tátil ou até mesmo gustativa, quando vemos o artista passar geleia sobre palavras feitas nos biscoitos. Como afirma o artista: “Quando a linguagem começa a se quebrar aos poucos, ela se torna instigante e comunica da maneira mais simples: somos forçados a notar o sons e as partes poéticas das palavras” .
Bruce Nauman, Waxing Hot, 1966 e Eating My Words from Eleven Color Photographs 1966-67/70 © ARS, N Y and DACS, London 2006 Whitney Museum of American Art, New York
“sem titulo”, Mira Schendel, 1965
Uma arte de palavras e quase palavras onde o signo gráfico veste e desveste vela e desvela...Uma arte onde a cor pode ser o nome da cor.
 Haroldo de Campos
         No meio de uma floresta de grafismos, uma palavra em alemão aparece calcada no centro desta monotipia. Rot significa vermelho e está desenhado com a cor vermelha. Mesmo aquele que não sabe alemão é induzido a esta resposta. Para Mira Schendel, que falava alemão, italiano e português com sotaque, só o desenho se caracterizava como ursprache, linguagem primordial que remonta ao graphein, desenho e grafia ao mesmo tempo. Mira nos faz pensar no seu antecessor suíço Paul Klee,  que traz para a arte moderna o desenho e a grafia unidos em uma intima aventura. A monotipia embaralha a palavra frente ao gesto gráfico, que é sempre feito de maneira invertida, como num espelho. O gesto é rápido e deve ser produzido com a mesma velocidade do que a palavra enunciada. Para Mira, o principio era o verbo. Escrever e desenhar, ver e nomear são atividades simultâneas.
Referências Bibliográficas
CRARY. J. Suspensions of perception. MIT Press , 2001
GAGE, John. Colour and Culture. Thames and Hudson . 1993.
____Color and Meaning Thames and Hudson 1999 .
LE RIDER, Jacques Le Rider. Du scepticisme linguistique à l’analyse des jeux de langage
JUDD. Donald.On some aspects of colour in general
NAUMAN, Bruce. Bruce Nauman’s Word. Writings and interviews. Edited By Janet Kraynak MIT Press, 2005
RICHIR, M. Phénomenologie des Couleurs.
TURTON, D. La catégorisation de la Couleur en Mursi . Tradução de. Serge Tornay presente em seu livro apud Voir et Nommer les couleurs. Laboratoire de Ethnologie et Sociologie Comparative, Nanterre, 1978.


[1] Ver a este respeito livro organizado por LICHENSTEIN, Jacqueline, A pintura, textos essenciais, volume 7, O paralelo das artes e volume 9, O desenho e a cor, editora 34, 2006.

[2] “A doutrina do Ut pictura poesis, tal como se constituiu no Renascimento e se desenvolveu ao longo da década clássica, baseia-se num contra-senso... em Horácio a frase cria um privilégio em favor das artes da imagem... os teóricos do Renascimento inverteram o sentido da comparação: a poesia tornou-se o termo comparativo e a pintura o termo comparado” idem, p.10 volume 7.
[3] FOUCAULT, As Palavras e as Coisas. Foucault se pergunta como se reconhece um signo. Questão diante da qual a época clássica responde por uma análise da representação, e diante da qual o pensamento moderno responde por uma análise de sentido e da significação. Pelo fato da linguagem não ser nada mais do que um caso particular da representação clássica ou da significação moderna a ligação profunda entre a linguagem e o mundo se desfaz. A primazia da escrita é suspensa, desaparece então esta base uniforme onde se entrecruzam indefinidamente o visto e o lido, o visível e o enunciável. As coisas e as palavras se separam, o olho se destinará a ver, e a ver somente, a orelha a escutar somente.
[4] A este respeito Leo Steinberg nos mostra o quanto Michelangelo já se preocupava em tensionar a pintura com a sua moldura. STEINBERG, Outros critérios. Cosac Naify
[5]  Os primeiros diagramas cromáticos circulares  são conhecidos como o de Forsiusem1611e Robert Fludd,c.1630 e continham o preto e o branco no interior do círculo. A primeira tentativa de representar o a refração da luz no círculo foi feita por Isaac Newton em na sua Optics de 1704.. (GAGE, 1993, pp. 162). http://www.huevaluechroma.com/071.php Imagens em wanderingmoonpr.files.wordpress.com/2008/10/0
[6] Em uma carta coletiva ao diretor da Galeria Grovesvenor em 1885 os impressionistas afirmam que na obra tardia de Turner é a cor que se torna o “teatro”. ELIE. Couleurs & theories, p.122, Ovadia, 2009.

[7] ROUSSEAU,P. Un Langage Universel, l’esthetique scientifique aux origines de l’abstraction, p.20 em Aux Origines de l’ Abstraction Catálogo da exposição realizado no Museu d’Orsay em novembro de 2003

[8] “ Delacroix traduziu melhor do que ninguém o invisível, o impalpável, o sonho, os nervos, a alma sem utilizar outros meios do que o contorno e a cor. BAUDELAIRE, Salon de 1846, p. 610 e, Eugène Delacroix, ses oeuvres, ses idées, ses moyens, p. 856
[9] GOMBRICH, Art and Ilusion, from representation to expression, p. 373.
[10]  SCHAPIRO continua sua análise: “ A pintura das maças também pode ser considerada um meio deliberadamente escolhido de distanciamento emocional e autocontrole; as frutas ofereciam ao mesmo tempo um campo objetivo de cores e formas, com uma aparente riqueza sensual que faltava em sua apaixonada arte anterior... Ao passar da pintura de fantasias à disciplina da observação, Cézanne fez da cor – o princípio da arte aliada à sensualidade e ao pathos na pintura romântica, mas não desenvolvida em suas primeiras pinturas de paixão – a bela substância de formas-objeto sólidas e estáveis e uma estrutura da composição profundamente coerente. SCHAPIRO, As Maças de Cézanne em A Arte Moderna, Edusp, p. 52-77. Em suas obras de juventude, Cézanne buscava pintar primeiro a expressão, justamente por isso que ela lhe faltava, aos poucos percebeu que a expressão é a linguagem da pintura e nasce da sua configuração. LE RIDER p.372 Ainda Cézanne: “Para o pintor, há duas coisas: o olho e o cérebro, ambos devem se ajudar para seu desenvolvimento na pintura: o olho na visão da natureza, o cérebro, mediante a uma lógica de sensações que cria os meios de expressão. CÉZANNE, apud ELIE, Couleurs et theories, p.147.
[11] LE RIDER,Les Couleurs et le mots,P.U.F.,1997,Paris,p.65.PICASSOa este respeito afirma:“Está vendo este tubo de cor? Na etiqueta esta escrito verde- maça, contudo, não se trata nem de uma maça nem de uma cor, mas de uma colagem de palavras, um titulo bom para nos deixar aturdidos. PICASSO, Propôs sur l’art , Flammarion, Paris, 2002, p.166

[12] Ver a este respeito o ensaio de Sartre sobre Tintoretto:O rasgo amarelo do céu de Gólgota,Tintoretto não oe scolheu para significar angústia, e muito menos para provocá-la, ele é angústia e céu amarelo ao mesmo tempo, não é um céu de angústia e nem um céu angustiado, é uma angústia submersa nas qualidades próprias das coisas, sua extensão, sua permanência cega, sua exterioridade e uma infinidade de relações que estabelecem entre si” Writers on Artists, p. 141.
[13] Idem, p. 366. John Gage a este respeito nos diz que “os objetivos da abstração eram espirituais, mas a fim de realizar estes objetivos, os pintores estavam prontos para utilizar o corpo sólido de teorias cromáticas publicadas ao redor de1900” Colour and Meaning, p. 249 Ver ainda LE RIDER, la langue universelle non verbale. p. 388
[14] DELAUNAY.Apud ELIE,o. cit.  p.161
[15] ROUSSEAU, idem, p.130. Sobre a importância crescente da palheta ver GAGE, Color and Culture, p. 189

[16] KANDINSKY. “O efeito da cor’, 1911, citado em Chipp, Teorias da arte moderna, p.52
 Sobre a questão da Forma, Idem, p.154.Mas, conforme, nos alerta Gombrich, Kandinsky, na medida em que busca uma linguagem universal, corre o perigo de buscar absolutos nas associações entre formas e cores com sentimentos espirituais. Embora tenhamos uma reposta imediata a expressão, não podemos considerá-la irracionalmente, pois só entendemos seu significado em um espaço semântico. Revela-se em Kandinsky uma vontade talvez utópica de quantificar objetivamente as nossas respostas subjetivas frente a um fenômeno cromático. Gombrich volta-se para a teoria já tradicional da arte como expressão como um meio de conhecimento. A falha principal do abstracionismo seria, portanto a crença numa expressão imediata das paixões fora de qualquer articulação lingüística.

[17] KLEE,P.apud POUZOL, F. Robert Walser et la peinture. / Mise en place d'un espace mimétique et critique..http://www. culturactif.ch/livredumois/livredumoiswalser3.htm
[18] O recurso da sinestesia é notório entre os poetas do fim do século XIX, Rimbaud sendo o caso o mais notório:: “ A Blanc, E jaune, I rouge, O bleu, U noir” . RIMBAUD, Les voyelles. O descompasso entre a palavra escrita e a sensação cromática só pode ser resolvida no âmbito de um sujeito capaz de articular sinestesicamente todas as sesações. No poema de Klee as metáforas cromáticas são constantes:" Einst dem Grau der Nacht enttaucht,Dann schwer und teuer,Und stark vom Feuer,Abends voll von Gott und gebeugt,Nun ätherlings vom Blau umschauert,Entschwebt über Firnen,Zu klugen gestirnen."PaulKlee,1918.Once emerged from the gray of night,Then heavy and precious and strong from the fire--In the evening filled with God and bowed... Ethereally now rained round with blue,floating off over mountains' snow caps to wise constellations. KLEE,P.apud POUZOL, F. Robert Walser et la peinture. / Mise en place d'un espace mimétique et critique..http://www.culturactif.ch/livredumois/ livredumoiswalser3.htm

[19] WITTGENSTEIN, L. Bemerkungen über die Farben, p. 49
[20] DUCHAMP, op. cit., p. 88.

[21] “As dificuldades que encontramos ao refletir sobre a essência de cores (às quais quis Goethe fazer frente com sua Doutrina das Cores) encerram-se já em não termos apenas um conceito de identidade cromática, mas sim vários deles, uns aos outros aparentados.”(Wittgenstein, op. cit, # 251, III) Os quadros de Johns não permitem uma interpretação exclusivamente fenomenológica da cor.
Para Husserl a nossa intuição eidética (categorial) da cor vermelha se prolongaria na nossa percepção do fenômeno cromático, de modo que ao vermos uma mancha vermelha já teríamos o conceito do vermelho. Esta atitude paradoxalmente implica uma volta ao platonismo, que acaba descaracterizando o projeto fenomenológico de uma volta
às coisa mesmas.
[22] “ ́É a sensação cromática, mas também  a norma lingüística que permite de dizer ou escrever o que quer que seja sobre as cores"  WITTGENSTEIN Apud LE RIDER, op.cit, p.392
[23] JOHNS, Jasper, op. cit, p.162. John Cage escreve a este respeito que “ Você é o único pintor que eu conheço que não pode diferenciar uma cor da outra” in BATTOCK, A Nova Arte, p. 67
[24] Octávio Paz, op.cit, p. 142.

[25] MAGRITTE apud FOUCAULT, Isto não é um cachimbo, p.39, 47

[26] Baxandall, Painting and Experience in Fifteenth Century Italy, Oxford Press, 1972.
38 “É um equivoco interpretar o abstracionismo maduro (Mondrian), ou ainda o monocromatismo Malevitch, Klein, como ex- pressão de sentimentos singulares. Ao contrário, esses artistas buscaram uma totalidade ou uma substância pura, algo que não pode ser reduzido a singularidade, e portanto foge à dialética entre esquema geral e aplicação particular. A obra de arte moderna tende a literalidade, achata-se num único plano, o das sensações ou o dos conceitos, e por essa via se coloca no limiar de qualquer sintaxe. Ela é um objeto ou o universo inteiro ou ambas as coisas, mas quase nunca é a representação de um objeto dentro de um universo. Com o desaparecimento da natureza, a obra de arte assumiu para si o papel de realidade última MAMMI, Lorenzo resenha sobre Meditações sobre um cavalinho de Pau de Gombrich. Jornal de Resenhas.
[27] TORNAY, S. Voir et Nommer les couleurs. Laboratoire de Ethnologie et Sociologie Comparative, Nanterre, 1978, p.XII Tornay afirma ainda que Newton teria se apoiado em sete cores para firmar a analogia entre luz e som.

[28] BALL,P. Colore, una biografia, Rcs Libri, Milano, 2001, p.20

[29] Não há nenhum nome de cor em Mursi que não seja aplicado ao Gado... O gado confere aos Mursi um modelo mediante a qual clsssificam em termos de cor todos os objetos de seu meio bem como todo objeto advindo do exterior. TURTON, D. La catégorsation de la Couleur en Mursi (Trad. Serge Tonay apud Voir et Nommer lês couleurs), p.354

[30] GAGE, Colour and Meaning, p.53 .Gage analisa como os conceitos cromáticos tendem a se tornar mais abstratos e distantes do seu referente material ao longo da historia. Ver na p. 58 como no processo de fabricação de vidro o oxido de cobre poderia se transformar em vermelho ou verde conforme o calor aplicado.

[31] Gage questiona também este procedimento de estabelecer a priori cores primarias, GAGE ,Colour and Culture, p.79
[32] GAGE dissolve estes antagonismos cromáticos em Color and Meaning, op cit, p.30. Sobre a relação entre a nomenclatura cromática a sua percepção na antiguidade ver como Gage descreve como Aulus Gellius introduz esta questão no sec. 2 dc . Gage,  Colour and Culture, op. cit, p. 80