segunda-feira, 4 de março de 2019

Teoria das cores, de Aristóteles até hoje - 3 - Mondrian, Picasso, Braque, Cézanne

Teoria das cores, de Aristóteles até hoje - 3



Antes de abordar as questões cromáticas de Leonardo vamos falar do conflito entre a percepção sensível e a linguagem.
Há um filósofo que diz: "Sim, pois, onde estão as cores puras no mundo percebido? Na verdade elas pertencem ao mundo nomeável, mas esse mundo nomeável reparte o mundo percebido e o organiza de acordo com essa coisa enigmática que é o critério de relevância implícito na língua estruturada. Parece que se abre um abismo entre os domínios da percepção sensível e da linguagem, entre as qualidades percebidas e as qualidades nomeadas, mas ficamos em dúvida se deveríamos concordar de que o percebido só se faz passando pelo crivo da nomeação, como se a linguagem estivesse filtrando a percepção, canalizando-a no sentido de só poder captar certos padrões em detrimento de outros. Com certeza este é um problema que teria de ser colocado para uma fenomenologia das cores, onde uma incursão no domínio da pintura seria, certamente, bastante esclarecedora." (Mário Guerreiro)

Costumo dizer que o pintor pode chegar à filosofia por seus próprios meios e não, como muitos pensam, partir da filosofia para chegar à pintura.

No texto de Mário Guerreiro acima vemos que ele fala da percepção, mas considerando o objeto em seu simples aspecto. Ou seja, sem considerar as cores adjetivadas, as que compõem um colorido, e as substantivadas, ou seja, as cores de lembrança e, por consequência, nomeáveis.

Vejamos, então, as observações de Poussin. Diz ele que há duas maneiras de se olhar um objeto. Uma delas: ou o olhamos considerando, pela percepção, seu simples aspecto e há nisso uma visão simples. Em minha opinião, nesse caso, logo o nomeamos para não nos perdermos. Afinal essa língua estruturada tem uma lógica. Poussin continua afirmando que podemos olhar prospectivamente e nesse caso temos que considerar o saber do olho. Nesse saber está implícito um conhecimento, ou seja, uma lógica que independe das palavras, portanto outro pensamento, um pensamento plástico no qual as palavras não têm nenhuma necessidade. Mas não considero nem um nem outro com valores absolutos. O pintor lida com os dois, o plástico e o verbal. 

Digo que as cores abstratas são substantivas, são ideias platônicas e subsistem por si mesmas. São como cores de lembrança e as identificamos muito mais pelas suas respectivas nomeações. Não as relacionamos com outras cores.

Um exemplo. Nos quadros de Mondrian pintados com horizontais e verticais em preto, esbranquiçados e amarelos, vermelhos e azuis percebemos essas cores porque delas temos uma lembrança e podemos nomeá-las.


 Mondrian

Mondrian no final de sua vida declara que esses quadros pintados com pretos, esbranquiçados, vermelhos, amarelos a azuis são desenhos a óleo.  Pinta, então, seus últimos quadros. Como o artista não era pressionado pelo mercado, certamente percebeu  que havia chegado a um limite, e se continuasse a na mesma linha cairia em uma repetição.  Nos quadros anteriores a esses últimos há uma presença, uma solidez que os tornam exemplares. Há invenção plástica.


 Picasso

No quadro de Picasso acima vemos as cores mais como abstratas substantivas e a figura contornada por traços. Diremos, portanto, que esse quadro é mais um desenho colorido.  Nele é forte o narrativo, mas este fica totalmente subordinado ao plástico. 
Podemos observar, também, um ritmo cromático: a quantidade de azul está para a de vermelho, assim como esta para o amarelo. Ou então o espaço total do quadro está para o das cores, assim como este está para o espaço de cinzas. Podemos afirmar, assim como o fizemos com Mondrian, que esse quadro de Picasso também tem uma presença muito forte.

Em um espaço plástico pictórico, pela manifestação do cinza sempiterno e das cores concretas adjetivas, a lógica é mais qualitativa. Já no espaço plástico gráfico, no qual as cores são abstratas substantivas, essas subordinadas às formas, a lógica é quantitativa.  

A condição da cor concreta adjetiva é ser no colorido. Por consequência nunca poderemos dizer quando uma cor é ela mesma.  Assim diremos que na natureza as cores ou são azuladas ou amareladas, esverdeadas ou avermelhadas, ou claras e escuras.



Braque

Nesse quadro de Braque diremos que as cores são amareladas e azuladas, avermelhadas e esverdeadas, claras, escuras. Temos, portanto, um colorido que tem uma lógica.

No meu estudo abaixo mostro um tom a se romper e como nunca saberemos quando uma cor é ela mesma.



Uma observação: as geometrias, desde a euclidiana, são acromáticas. Creio ser possível pensarmos em uma geometria cromática. Por exemplo, uma geometria fractal cromática. O  cinza sempiterno seria o elemento que se repetiria em cada fracionamento. Curioso é nos lembrarmos da frase de Cézanne na qual ele diz que pinta somente uma fração do espaço. Tenho muito que estudar a partir dessas observações.

Citemos agora Paul Valéry para termos uma ideia do que vem a ser um pensamento plástico: "[...] Mas examinemos mais de perto: olhemos dentro de nós. Apenas nosso pensamento tende a arredondar-se - vale dizer, a se aproximar de seu objeto, tratando de operar sobre as coisas mesmas (na medida em que seu ato se converte em coisa) e não já sobre signos quaisquer que excitam as ideias superficiais das coisas - , apenas vivemos esse pensamento, sentimo-lo separar-se de toda linguagem convencional.[...] Sentimos que nos faltam as palavras e sabemos que não há razão para que existam as que nos respondam - quer dizer - ... as que nos substituam - , pois o poder das palavras (do qual tomam sua utilidade) é trazer-nos à proximidade de situações que nunca se repetem, é regularizar ou instituir a repetição; e nos encontramos aderidos agora a essa vida mental que nunca se repete."

Por esse olhar prospectivo, ou seja, por um saber do olho e um pensamento plástico, vamos além dessa vida que nunca se repete. Vamos construindo uma lógica, como diz Cézanne, que não tem nada de absurdo. Podemos entender, por exemplo, uma geometria das cores. Ou que as cores e os coloridos quando resultantes do cinza sempiterno,  cinza este causa de si mesmo, são causas, consequentemente, deles mesmos e assim nos aproximamos de Espinoza, como mais a seguir veremos.

Havendo uma lógica há consequentemente um conceito, portanto toda arte é conceitual. Mas se deve dizer que o pintor lida simultaneamente com o pensamento plástico e o verbal, pois estes não são excludentes.

Nos quadros de Leonardo há a representação do colorido natural, mas a questão que mais prevalece é o das luzes e sombras. Mas no Tratado da Pintura Leonardo faz algumas considerações sobre as cores. Diz ele: "As cores simples são seis e a primeira é o branco, se bem que alguns filósofos não aceitem nem o branco nem o preto entre o número das cores simples, posto que um é a causa de todas as cores e o outro a ausência delas. Apesar disso, como o pintor nada pode fazer sem elas, nós as incluiremos no número das outras e diremos que o branco é o primeiro nesta ordem das cores simples; o amarelo o segundo, o verde o terceiro, o azul o quarto, o vermelho o quinto e o preto o sexto, e assim poremos os brancos para as luzes e o preto para as sombras".
Leonardo estabelece diversas passagens entre luzes e sombras passando pelas quatro cores que ele enumera, mas com uma ordem, ou seja, com um ritmo enquanto recorrência pressentida. Cria uma escala que pode ser a base de um colorido. Por consequência podemos percebê-las prospectivamente como concretas adjetivas. Pertencem ao pensamento plástico. Diremos agora que as cores são enigmáticas e as formas racionais.

Citemos agora dois teóricos da Renascença.
De Vasari: "O desenho, pai de nossas três artes, Arquitetura, Escultura e Pintura, como provém do intelecto, envolve um juízo final universal das coisas e se traduz em uma forma ou ideia da natureza, exata em todas suas medidas. Daí que o desenho conheça a proporção que guarda o todo com as partes e com as partes entre si com o todo; isso não se aplica unicamente ao corpo humano e aos animais, mas também às plantas, edifícios, esculturas e pinturas. Deste conhecimento, nasce certa opinião que, depois de elaborado na mente, passa a ser expresso com as mãos  mediante o desenho".
De Francisco Holanda: "O desenho, a que em outro nome se chama debuxo, nele consiste e é a fonte e o corpo da pintura e escultura e de todo outro gênero de pintar e a raiz de todas as ciências".
"As colores, de meu conselho, não devem ser muito alegres, mas antes tristes e graves. E no meio da tristeza e sombras acudir com uma, duas e até três colores finíssimas e alegres, porque esse dessemulado aviso faz grande harmonia, e tem môr primor do que se pode cuidar".
Francisco Holanda já prenuncia os semitons ou rompimentos de tons que serão utilizados a partir do período Barroco. 

No quadro de Cézanne abaixo temos um panejamento realizado com rompimentos de tons (cores tristes). A mesa e o fundo com rompimentos escuros. Por contraste o  panejamento torna-se mais claro, a mesa e o fundo mais escuros. O cinza sempiterno se manifesta como um pré ou pós fenômeno. As frutas são pintadas com cores intensas (alegres). Um colorido lógico se estabelece.

  

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