Antes de abordar as questões cromáticas de Leonardo
vamos falar do conflito entre a percepção sensível e a linguagem.
Há um filósofo que diz: "Sim, pois, onde estão as cores puras no
mundo percebido? Na verdade elas pertencem ao mundo nomeável, mas esse mundo
nomeável reparte o mundo percebido e o organiza de acordo com essa coisa
enigmática que é o critério de relevância implícito na língua estruturada.
Parece que se abre um abismo entre os domínios da percepção sensível e da
linguagem, entre as qualidades percebidas e as qualidades nomeadas, mas ficamos
em dúvida se deveríamos concordar de que o percebido só se faz passando pelo
crivo da nomeação, como se a linguagem estivesse filtrando a percepção,
canalizando-a no sentido de só poder captar certos padrões em detrimento de
outros. Com certeza este é um problema que teria de ser colocado para uma
fenomenologia das cores, onde uma incursão no domínio da pintura seria,
certamente, bastante esclarecedora." (Mário Guerreiro)
Costumo dizer que o
pintor pode chegar à filosofia por seus próprios meios e não, como muitos pensam,
partir da filosofia para chegar à pintura.
No texto de Mário
Guerreiro acima vemos que ele fala da percepção, mas considerando o objeto em
seu simples aspecto. Ou seja, sem considerar as cores adjetivadas, as que compõem
um colorido, e as substantivadas, ou seja, as cores de lembrança e, por
consequência, nomeáveis.
Vejamos, então, as
observações de Poussin. Diz ele que há duas maneiras de se olhar um objeto. Uma
delas: ou o olhamos considerando, pela percepção, seu simples aspecto e há
nisso uma visão simples. Em minha opinião, nesse caso, logo o nomeamos para não
nos perdermos. Afinal essa língua estruturada tem uma lógica. Poussin continua
afirmando que podemos olhar prospectivamente e nesse caso temos que considerar
o saber do olho. Nesse saber está implícito um conhecimento, ou seja, uma
lógica que independe das palavras, portanto outro pensamento, um pensamento
plástico no qual as palavras não têm nenhuma necessidade. Mas não considero nem
um nem outro com valores absolutos. O pintor lida com os dois, o plástico e o
verbal.
Digo que as cores
abstratas são substantivas, são ideias platônicas e subsistem por si mesmas.
São como cores de lembrança e as identificamos muito mais pelas suas
respectivas nomeações. Não as relacionamos com outras cores.
Um exemplo. Nos quadros
de Mondrian pintados com horizontais e verticais em preto, esbranquiçados e amarelos,
vermelhos e azuis percebemos essas cores porque delas temos uma lembrança e
podemos nomeá-las.
Mondrian
Mondrian no final de
sua vida declara que esses quadros pintados com pretos, esbranquiçados,
vermelhos, amarelos a azuis são desenhos a óleo. Pinta, então, seus últimos quadros. Como o
artista não era pressionado pelo mercado, certamente percebeu que havia chegado a um limite, e se
continuasse a na mesma linha cairia em uma repetição. Nos quadros
anteriores a esses últimos há uma presença, uma solidez que os tornam exemplares.
Há invenção plástica.
Picasso
No quadro de
Picasso acima vemos as cores mais como abstratas substantivas e a figura
contornada por traços. Diremos, portanto, que esse quadro é mais um desenho
colorido. Nele é forte o narrativo, mas
este fica totalmente subordinado ao plástico.
Podemos observar,
também, um ritmo cromático: a quantidade de azul está para a de vermelho, assim
como esta para o amarelo. Ou então o espaço total do quadro está para o das
cores, assim como este está para o espaço de cinzas. Podemos afirmar, assim
como o fizemos com Mondrian, que esse quadro de Picasso também tem uma presença
muito forte.
Em um espaço
plástico pictórico, pela manifestação do cinza sempiterno e das cores concretas
adjetivas, a lógica é mais qualitativa. Já no espaço plástico gráfico, no qual
as cores são abstratas substantivas, essas subordinadas às formas, a lógica é
quantitativa.
A condição da cor
concreta adjetiva é ser no colorido. Por consequência nunca poderemos dizer
quando uma cor é ela mesma. Assim
diremos que na natureza as cores ou são azuladas ou amareladas,
esverdeadas ou avermelhadas, ou claras e escuras.
Braque
Nesse quadro de Braque
diremos que as cores são amareladas e azuladas, avermelhadas e esverdeadas,
claras, escuras. Temos, portanto, um colorido que tem uma lógica.
No
meu estudo abaixo mostro um tom a se romper e como nunca
saberemos quando uma cor é ela mesma.
Uma observação: as
geometrias, desde a euclidiana, são acromáticas. Creio ser possível pensarmos
em uma geometria cromática. Por exemplo, uma geometria fractal cromática. O cinza sempiterno seria o elemento que se
repetiria em cada fracionamento. Curioso é nos lembrarmos da frase de Cézanne
na qual ele diz que pinta somente uma fração do espaço. Tenho muito que estudar
a partir dessas observações.
Citemos agora Paul
Valéry para termos uma ideia do que vem a ser um pensamento plástico:
"[...] Mas examinemos mais de perto: olhemos dentro de nós. Apenas nosso
pensamento tende a arredondar-se - vale dizer, a se aproximar de seu objeto,
tratando de operar sobre as coisas mesmas (na medida em que seu ato se converte
em coisa) e não já sobre signos quaisquer que excitam as ideias superficiais
das coisas - , apenas vivemos esse pensamento, sentimo-lo separar-se de toda
linguagem convencional.[...] Sentimos que nos faltam as palavras e sabemos que
não há razão para que existam as que nos respondam - quer dizer - ... as que
nos substituam - , pois o poder das palavras (do qual tomam sua utilidade) é
trazer-nos à proximidade de situações que nunca se repetem, é regularizar ou
instituir a repetição; e nos encontramos aderidos agora a essa vida mental que
nunca se repete."
Por esse olhar
prospectivo, ou seja, por um saber do olho e um pensamento plástico, vamos além
dessa vida que nunca se repete. Vamos construindo uma lógica, como diz Cézanne,
que não tem nada de absurdo. Podemos entender, por exemplo, uma geometria das
cores. Ou que as cores e os coloridos quando resultantes do cinza sempiterno, cinza este causa de si mesmo, são causas,
consequentemente, deles mesmos e assim nos aproximamos de Espinoza, como mais a
seguir veremos.
Havendo
uma lógica há consequentemente um conceito, portanto toda arte é conceitual.
Mas se deve dizer que o pintor lida simultaneamente com o pensamento plástico e
o verbal, pois estes não são excludentes.
Nos quadros de Leonardo há a representação do
colorido natural, mas a questão que mais prevalece é o das luzes e sombras. Mas
no Tratado da Pintura Leonardo faz algumas considerações sobre as cores. Diz
ele: "As cores simples são seis e a primeira é o branco,
se bem que alguns filósofos não aceitem nem o branco nem o preto entre o número
das cores simples, posto que um é a causa de todas as cores e o outro a
ausência delas. Apesar disso, como o pintor nada pode fazer sem elas, nós as
incluiremos no número das outras e diremos que o branco é o primeiro nesta
ordem das cores simples; o amarelo o segundo, o verde o terceiro, o azul o
quarto, o vermelho o quinto e o preto o sexto, e assim poremos os brancos para
as luzes e o preto para as sombras".
Leonardo estabelece diversas passagens entre luzes e
sombras passando pelas quatro cores que ele enumera, mas com uma ordem, ou
seja, com um ritmo enquanto recorrência pressentida. Cria uma escala que pode
ser a base de um colorido. Por consequência podemos percebê-las
prospectivamente como concretas adjetivas. Pertencem ao pensamento plástico.
Diremos agora que as cores são enigmáticas e as formas racionais.
Citemos agora dois teóricos da Renascença.
De Vasari: "O
desenho, pai de nossas três artes, Arquitetura, Escultura e Pintura, como
provém do intelecto, envolve um juízo final universal das coisas e se traduz em
uma forma ou ideia da natureza, exata em todas suas medidas. Daí que o desenho conheça
a proporção que guarda o todo com as partes e com as partes entre si com o
todo; isso não se aplica unicamente ao corpo humano e aos animais, mas também
às plantas, edifícios, esculturas e pinturas. Deste conhecimento, nasce certa
opinião que, depois de elaborado na mente, passa a ser expresso com as mãos mediante o desenho".
De Francisco Holanda: "O
desenho, a que em outro nome se chama debuxo, nele consiste e é a fonte e o
corpo da pintura e escultura e de todo outro gênero de pintar e a raiz de todas
as ciências".
"As colores, de meu
conselho, não devem ser muito alegres, mas antes tristes e graves. E no meio da
tristeza e sombras acudir com uma, duas e até três colores finíssimas e alegres,
porque esse dessemulado aviso faz grande harmonia, e tem môr primor do que se
pode cuidar".
Francisco Holanda já prenuncia os semitons ou
rompimentos de tons que serão utilizados a partir do período Barroco.
No quadro de Cézanne abaixo temos um
panejamento realizado com rompimentos de tons (cores tristes). A mesa e o fundo
com rompimentos escuros. Por contraste o
panejamento torna-se mais claro, a mesa e o fundo mais escuros. O cinza
sempiterno se manifesta como um pré ou pós fenômeno. As frutas são pintadas com
cores intensas (alegres). Um colorido lógico se estabelece.
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