ESTUDOS LINGUÍSTICOS, São Paulo, 41 (3): p. 1126-1134, set-dez 2012 1126
Marques Rebelo e o cotidiano pequeno burguês
(Marques Rebelo and the bourgeois quotidian)
Regina Célia dos Santos Alves¹
¹ Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas – Universidade Estadual de Londrina (UEL)
reginacsalves@hotmail.com
Abstract: This paper aims to analyse two short stories by Marques Rebelo (1907-1973), “Oscarina” and “Onofre, o Terrível, ou a sede de justiça”, both taken from Oscarina (1931), in order to show how the writer, actually a little-known writer, shows as one of his main concerns an effective picture of the urban life in Rio de Janeiro city at the beginning of the twentieth century.This effective picture presents sometimes tragic characteristics and reveals specially the life of simple people as workmen, public employees, businessmen, etc.
Keywords: Marques Rebelo; bourgeois quotidian; urban life.
Resumo: O presente trabalho tem por objetivo a análise de dois contos de Marques Rebelo (1907-1973), “Oscarina” e “Onofre, o Terrível, ou a sede de justiça,”ambos de Oscarina (1931), no sentido de mostrar como o escritor, hoje quase um desconhecido, apresenta como uma de suas principais preocupações o desenho vivo e colorido, por vezes trágico, da vida urbana carioca das primeiras décadas do século XX, em especial das camadas mais simples da população, como operários, pequenos funcionários públicos, pequenos comerciantes, etc.
Palavras-chave: Marques Rebelo; cotidiano pequeno burguês; vida urbana.
Destino semelhante ao de um outro contemporâneo seu, José Geraldo Vieira,1 parece ter tido Marques Rebelo (1907-1973). De igual maneira, o autor de Oscarina, que estreia com essa coletânea de contos em 1931, passa a ser, desde sua primeira publicação, um autor bastante prestigiado por grandes nomes da crítica da época – como Mário de Andrade, Tristão de Ataíde, Sérgio Milliet, Wilson Martins, Otto Maria Carpeaux, Agripino Grieco, Álvaro Lins, Drummond, dentre outros – caindo, nas últimas décadas, como aponta Zamboni, “num esquecimento quase total, a ponto de ser conhecido das novas gerações (e talvez de nome) pelo romance A estrela sobe, talvez por ter virado filme no começo dos anos de setenta” (1994, p. 108).
Mário de Andrade, em 1931, quando da publicação de Oscarina, tece comentários elogiosos ao jovem escritor, apontando para aspectos da obra de Marques Rebelo que a crítica iria repisar com frequência nas leituras subsequentes do autor, mesmo quando se tratava de suas obras posteriores. Mário de Andrade, em “Oscarina” (1976), assevera que Marques Rebelo descende de uma tradição iniciada por Manuel Antonio de Almeida, passando por Machado de Assis e Lima Barreto, que se especializou “na descrição nua e crua da pequena burguesia ou do... alto proletariado” (p. 375).
1 José Geraldo Vieira (1897-1977) publica sua primeira obra na década de 1920, mas se torna conhecido a partir da publicação, em 1931, do romance A mulher que fugiu de Sodoma. Bastante prestigiado e lido em vida, recebendo elogio de Oswald de Andrade em artigo de Ponta de Lança (São Paulo:Globo, 1997), com várias edições de sua obra numerosa, após a morte cai quase que num completo esquecimento.
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Essa afirmação do crítico e escritor modernista, que de certo modo mede a importância do escritor estreante pela aproximação, ainda bastante vaga, entre ele e nomes significativos da literatura nacional, como Manuel Antônio, Machado e Lima Barreto, transformar-se-á numa das questões centrais de preocupação da crítica na abordagem da obra de Marques Rebelo, não apenas quando o assunto é Oscarina, mas também os demais textos do autor, como A estrela sobe (1939), Três caminhos (1933), Stela me abriu a porta (1942), Marafa (1935) e O espelho partido (1959). Retomando o comentário de Mário de Andrade sem a ele acrescentar maiores esclarecimentos ou no sentido de estabelecer suas limitações ou mesmo refutá-lo, como faz Mario Luiz Frungillo (2007) ao retomar essa suposta linhagem da qual proveria Marques Rebelo com vistas a mostrar o que de fato procede dessa verdade pouco explicitada e tornada quase incontestável acerca do escritor, a crítica parece revisitar com frequência os primeiros apontamentos investigativos do autor de Macunaíma, cuja justeza das reflexões – ainda que muito breves dentro dos limites de seu artigo – quase sempre se transformam em ponto de partida para a leitura de Marques Rebelo.
A abordagem que aqui pretendemos do autor carioca parte também de um comentário já feito por Mário de Andrade e que nos parece constituir questão central na obra de Marques Rebelo: a leitura do cotidiano da cidade, sobretudo do Rio de Janeiro, de sua população simples e de seus pequenos dramas e tragédias. Rebelo, no entanto, como afirma Zamboni,
não é só o contista e novelista da gente humilde da zona norte carioca, visão apressada e insuficiente para a compreensão de uma obra complexa que, sob a casca costumbrista, escondia um auscultar atento da vida, com agudo senso das contradições humanas [...] (1994, p.115-116).
É justamente o olhar agudo para a realidade, a partir da observação dos acontecimentos miúdos e corriqueiros do cotidiano que vemos desfilar pelas páginas de contos, crônicas, novelas e romances de Marques Rebelo, com “domínio de estilo, profundidade psicológica, de ação e segurança de virtuosismo” (ABRANCHES, 1958, p.32), confirmando o insight crítico de Mário de Andrade acerca do estreante autor de Oscarina, que via, naquele momento, 1931, como excepcional no quadro das letras brasileiras, impressão que viria a reafirmar com mais pujança alguns anos depois nos artigos “Psicologia em ação” e “A estrela sobe”, ambos de 1939. Neles, atesta a originalidade e a capacidade expressiva de Rebelo (ANDRADE, 2002).
Para o estudo aqui proposto, como mencionado anteriormente, interessa-nos observar, sobretudo, o retrato da vida urbana carioca desenhado por Rebelo a partir da atenção dispensada ao dia-a-dia de um grupo indefinido, nem bem proletariado, nem ainda burguesia, conforme afirma Mário de Andrade (2002, p. 131), a ocupar uma espécie de entre-lugar, incerto quanto ao seu papel e lugar na sociedade, na labuta cotidiana e na busca pela realização de seus anseios. Tomaremos para análise dois contos do autor, “Oscarina” e “Onofre, o Terrível, ou a sede de justiça”, ambos de Oscarina.
“Oscarina”, conto publicado primeiramente na revista Feira Literária, em 1927, e que em 1931 passa a compor o livro homônimo e de estreia de Marques Rebelo, narra a história de Jorge, um jovem que vive com a família no subúrbio do Rio e que, ansioso por conseguir dinheiro de uma forma mais rápida, decide abandonar os estudos, mesmo a contragosto do pai, e ingressar no mundo do trabalho. A decepção imediata, logo após
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o primeiro salário, é responsável pelas mudanças de plano do rapaz, que vai em busca do dinheiro por um caminho que julga mais fácil, o do serviço militar.
No conto está em cena o cotidiano de uma família simples e convencional, composta pelo pai, pela mãe e pelo filho, num regime tipicamente patriarcal, em que o pai ocupa a posição central, é o trabalhador, mantenedor financeiro do lar, senhor a quem a mãe e o filho devem obediência e aquele a quem cabe respeito aos valores morais e sociais postos.
Essa é a posição ocupada pelo pai de Jorge, Augusto, terceiro oficial do ministério da Marinha, um funcionário modesto que, dentro de sua posição de pai e chefe patriarcal, sonha em fazer o filho doutor, pois, a seu ver, essa seria a forma mais segura de Jorge ter um futuro diferente do seu, de sair da posição indefinida e sem grandes privilégios e alcançar prestígio social e econômico:
O pai se opusera, com vontade que ele fosse doutor, único filho, que diabo! Valia a pena. Sempre era uma honra para a família e para ele, principalmente, que era o chefe. Devaneava.
─ Apresento-lhe aqui o prezado amigo Augusto dos Santos, digno progenitor do ilustre doutor Jorge dos Santos.
Que gozo! Doutor... Cantava-lhe nos ouvidos como uma música no céu. (REBELO, 2010, p.16)
O devanear do pai de Jorge é a projeção do sentido social que a palavra doutor comporta dentro da sociedade retratada. Para Augusto, estudar o filho, fazê-lo doutor, significa, mais que dar a ele conhecimento e uma profissão, a porta de entrada do reconhecimento social, principalmente para ele, como afirma, “que era o chefe”. Ainda que não pertencente propriamente ao mundo burguês, o pai tem como verdadeiro um valor burguês. Ao expor seu desejo mais ardente, traz à tona o retrato da sociedade regida pela aparência – o título de doutor confirma isso – cujas classes privilegiadas permitem o acesso a seu universo somente àqueles que obedecem às suas normas.
No devanear de Augusto, os termos “prezado amigo”, “digno progenitor” e “ilustre doutor” apontam para o valor social do título, para a elevação daquele que o possui e, no caso, também para o pai, responsável direto pelo título do filho. Mesmo distante dos privilégios burgueses, levando uma vida simples e com muitas restrições, pois o dinheiro era pouco, o pai de Jorge carreia todos os esforços para a ascensão do filho por meio do ser doutor, de enorme valia para quem, como ele, tinha poucas oportunidades de elevação socioeconômica:
─ Eu quero que você se forme, meu filho, que tenha um título, não pelo simples fato de ser doutor, que doutor não quer dizer ciência ─ ah! Isto, não ─, mas é que sempre um diploma vale qualquer coisa nesta terra. É um mal, não nego, é um grande mal, mas o certo é que há mais facilidades para se arranjar boas colocações, às vezes até um bom casamento! (REBELO, 2010, p. 25-26)
Se Jorge se assemelha ao pai no tocante ao desejo de uma outra vida, as proximidades esgotam-se aí. Jorge almeja uma vida mais abastada não propriamente pelo status social que poderia lhe oferecer, mas porque o dinheiro, do seu ponto de vista, poderia trazer-lhe liberdade. Com dinheiro próprio, não teria que se submeter às ordens familiares, sobretudo
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paterna, e poderia desfrutar a vida do modo que julgasse melhor, inclusive com o abandono dos estudos – vontade do pai – que julgava maçantes e sem serventia imediata:
Livre! Como seria outra a vida, que forra tiraria dos anos em que vivera preso! Logo de saída procuraria um bom emprego, ganharia bastante, seria da turma, do pessoal batuta e fugista do Bilhar Primavera e do Café Pernambuco.[...]
Se trabalhasse, faria o que lhe desse na cabeça, ficaria na rua, passaria a noite na pândega, voltaria para a casa de madrugada [...] Trabalho durante o dia ali no pesado, à noite quero gozar – argumentaria, e ninguém podia dizer nada que o argumento, vamos e venhamos, era de peso. (REBELO, 2010, p.24)
Nos anseios do jovem Jorge, ávido por liberdade, encena-se um olhar ideal acerca de seu futuro, que a personagem irá buscar com ânimo e coragem, seja para abandonar as regalias oferecidas pela família, mesmo que pagando o preço de um certo aprisionamento, seja para enfrentar as decisões e vontades do pai, que queria fazê-lo doutor.
Para Jorge, o trabalho é uma espécie de saída salvacionista e nele deposita todas as suas esperanças. Mostra-se, ainda, tanto como liberdade como possibilidade de pertencimento a uma sociedade aburguesada, como poderio econômico suficiente para desfrutar a vida como melhor lhe conviesse. Assim, começa a trabalhar para “Souza Almeida & Cia., negociantes em grosso (fumos, cachimbos, artigos para fumantes em geral), um sobradão na rua do Rosário” (REBELO, 2010, p. 12).
A porta de entrada para uma outra vida parece aberta para Jorge, uma vez que ingressa num mundo que crê poder dar-lhe dinheiro, dedica-se ostensivamente ao trabalho, é elogiado pelo patrão e dele tem a promessa da boa recompensa. Todavia, as expectativas da personagem são quebradas logo de início, impedindo-o de adentrar no universo da liberdade e do dinheiro tão sonhados quando recebe um mísero salário, quase insuficiente para suas despesas básicas com alimentação e transporte: “Mas qual!... Foi uma desilusão! Cento e vinte mil-reis só” (REBELO, 2010, p.12).
Vê-se, portanto, na desilusão de Jorge, a condição dessa classe a que pertence a personagem, que Mário de Andrade (1976) diria intermediária, nem burguesa nem proletária, e que Augusto dos Santos Abranches definiria como “uma espécie de pequena burguesia [...] amorfa e vazia, espécie de tabuleiro de ligação com as massas do povo (que despreza), em recado da grande burguesia que serve (e inveja)” (1958, p.18).
Tanto Jorge quanto seu pai pretendem galgar degraus na escala social, seja pelo estudo (pai), seja pelo trabalho (Jorge). No entanto, a opção feita pela personagem revela a falência de seu projeto, uma vez que a ela é vedada a passagem para o outro nível social e econômico, mesmo com todo o empenho demonstrado. Nesse sentido, o movimento observado em “Oscarina” em relação à busca de ascensão parece confirmar o comentário de Abranches (1958) acerca dessa “pequena burguesia” presente na ficção de Marques Rebelo, ou seja,
O de existir entre a burguesia propriamente dita e as classes populares, não sendo admitida pela primeira e não aceitando a segunda. Dum lado está o plano que a sobreleva e onde lhe impedem a entrada; do outro está a camada que explora e com que não se quer misturar – e cuja atividade a assusta como perigo iminente. (1958, p. 23)
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A frustração de Jorge e a certeza de não ser possível o que almeja pelo viés do trabalho, faz nele aflorar um lado malandro, já latente anteriormente e que se manifesta de forma mais aguda ao tomar consciência da inutilidade da força dispensada ao trabalho. Se, de início, tudo fazia para agradar o patrão, atendendo-o pronta e eficazmente, como uma “besta de carga” (p.12), depois do inexpressivo salário recebido abandona todo e qualquer esforço e executa suas tarefas com o mais absoluto descaso:
Uma beleza o tal de trabalho dali por diante. Calma no Brasil! Nada de fazer força inutilmente, nada de canseiras sem proveito. Bastara a experiência que tivera. Agora era tratar de não ser mais tolo. Uma pacova que ele fosse aos bancos correndo, afobado como ia... Pressa para quê, se não ia tirar o pai da forca? (REBELO, 2010, p. 26)
A experiência negativa de Jorge com relação àquilo que esperava conseguir faz com que o rapaz, até então trilhando o mundo da ordem, na busca da liberdade e do dinheiro por meio do trabalho honesto e dedicado, direcione-se pouco a pouco para o caminho oposto, isto é, o da desordem. Tal mudança pode ser observada, primeiro, no modo como passa então a encarar o trabalho após a desilusão com o pagamento; segundo, na opção por um meio mais fácil de conseguir dinheiro e a liberdade tão sonhada, assentando praça, cujo ambiente do quartel vai se descortinando como um cotidiano pouco sério, repleto de picuinhas e futilidades, não condizentes com o real sentido da instituição militar; terceiro, no rapaz violento e amante do álcool que se torna, em especial depois que conhece Oscarina, vindo, inclusive, a trocar de nome, passando a atender por Gilabert.
No percurso da personagem, portanto, está construído um movimento decrescente a forçá-la “para baixo na pirâmide social” (FRUNGILLO, 2007, p.125). Longe de termos em “Oscarina” um trânsito da personagem entre os polos da ordem e da desordem, como Candido observa na obra de Manuel Antônio de Almeida, Memórias de um sargento de milícias, no conto de Rebelo esse movimento dialético não se perfaz. O comentário de Renato Cordeiro Gomes, ainda que sobre Marafa, do mesmo autor, parece esclarecedor quanto ao conto em questão:
Do meu ponto de vista, essa dicotomia [ordem/desordem] é antes contraste que oposição. Cada um dos termos comanda dois veios descontínuos, dois espaços separados que não se encontram. São paralelas alternadas e simétricas com sinais trocados. Não há uma verdadeira dialética. A estrutura não sofre a tensão das duas linhas e dilui a dramaticidade entre elas. A ordem rege os que vivem segundo normas estabelecidas que separam os padrões morais de certo/errado, lícito/ilícito, moral/imoral. Em Marafa, é o mundo das famílias humildes arraigadas com bastante rigidez aos valores pequeno-burgueses e cristãos. A desordem rege os que vivem em oposição ou pelo menos integração duvidosa àquelas normas estabelecidas. [...] Ordem e desordem não interagem neste universo romanesco rebeliano. As duas esferas não se alteram. Permanecem os contrastes. (2008, p.140)
O comentário de Renato Cordeiro Gomes pode ser transposto sem dificuldade também para o universo de “Oscarina”. De igual maneira, no conto de Rebelo não há interação entre o polos contrastivos. De um lado, da ordem, encontramos a família de Jorge, simples, mas obediente aos valores sociais e morais postos, como o estudo, o trabalho e a honestidade; também Jorge, quando opta por buscar a liberdade por um viés lícito, o trabalho, e mesmo quando, de início, pensa no serviço militar como forma de conseguir um emprego melhor, que viabilizasse seu casamento com Zita; e a família de Zita, gente
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trabalhadora e de bem. Do outro lado, da desordem, constituindo os pares dicotômicos, encontra-se a personagem principal, sobretudo depois de assentar praça, já não mais Jorge, mas Gilabert, e também Oscarina.
A troca de nome é significativa na medida em que representa a mudança de postura, de lugar da personagem. Enquanto ainda pertencente ao universo da ordem, temos Jorge morador do subúrbio, filho de um casal simples – mas não miserável –, de início um futuro doutor e depois um comerciário, que nutre um amor puro e romântico por Zita, antiga amiguinha de infância, com quem pretende se casar. Ao adentrar a esfera da desordem, torna-se Gilabert, sargento rusguento, briguento e afeito ao álcool. Conhece Oscarina, cabrocha livre e dona de si, com quem passa a viver um amor sensual, apaixonado e regado a violência em um barraco alugado no morro.
Desse modo, tem-se em “Oscarina” uma construção de pares dicotômicos, Jorge/Gilabert, subúrbio/morro, estudo e trabalho/sargento bêbado, Zita/Oscarina, amor puro e romântico/amor sensual e violento. De fato, no conto, não há trânsito, dialética entre esses pares, mas a permanência do contraste, sendo que à personagem central, Jorge, é reservado um futuro, ao que parece, degradante. Embora Gilabert alcance o posto de sargento, passando a ganhar mais, “dinheiro pra burro”, como afirma, a promoção financeira não implica crescimento moral e, ao final da narrativa, a personagem é apresentada no vício do álcool – os pileques agora são na própria casa, ao lado da amásia, causando barulho e confusão com os vizinhos. Há, portanto, um processo de queda da personagem na aproximação e incorporação do universo da desordem.
O outro conto aqui abordado, “Onofre, o Terrível, ou a sede de justiça”, também de “Oscarina”, apresenta o sonho de mudança de Onofre, cujo dia-a-dia resume-se no trabalho de agente sanitário, responsável pela exterminação do mosquito causador da febre amarela, dentre outras doenças endêmicas que então assustavam a população carioca, sendo uma das principais causas de morte na cidade.2
Se em “Oscarina” está em cena, como já dito, o cotidiano de uma classe intermediária, nem burguesa, nem proletária, em “Onofre” aparece com muito mais nitidez a condição dos menos privilegiados na escala social, sendo Onofre um de seus representantes. Modestíssimo funcionário da Saúde pública, um mata-mosquito “magro, escanifrado”, de “cabelo rebelde e duro” (p. 152), domado à custa de muita brilhantina, Onofre Pereira da Silva,3 em um momento do trabalho diário, ao usar o poderoso Estegomiol para matar as larvas do mosquito encontradas em uma poça d’água, tem uma espécie de revelação. Ao se mirar na poça, esta o reflete com uma imagem totalmente invertida. Ao contrário do insignificante Onofre, surge um homem poderoso, espécie de Deus:
A poça era pequena para refleti-lo, mas pouco importava, pois estava se vendo perfeitamente. Via-se grande, enorme, portentoso, pela grandeza da sua profissão. Era o nobre e eloqüente. Não era mais o Onofre Pereira da Silva, o magro, escanifrado Onofre, mas qualquer coisa
2 O Rio de Janeiro, no início do século XX, era uma cidade temida, inclusive pelos estrangeiros, pois representava uma ameaça em potencial em razão de várias doenças endêmicas, como a varíola, a febre amarela e a dengue, por exemplo, que se disseminavam facilmente entre a população, matando de forma alarmante, em grande parte devido à falta de saneamento e de serviço de saúde.
3O sobrenome de Onofre, Pereira da Silva, aponta para um nome comum, sem importância, assim como de fato é a personagem. Opõe-se aos pomposos nomes dos ricaços que vê mortos em seu delírio: Castro, Alvim, Albuquerque.
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de divino, o onipotente sob a farda cáqui com o distintivo da Saúde pública – sentinela avançada da saúde da população. (REBELO, 2010, p. 152)
A imagem grandiosa que a personagem vê de si mesma refletida na água transforma-se na expressão concreta do valor que acredita ter seu trabalho. Como protetor da vida e exterminador da morte (o mosquito), cresce em proporções gigantescas e totalmente opostas à do Onofre real a imagem do Onofre refletido.
Essa espécie de sonho em que se envolve a personagem abre caminho não apenas para a compreensão da importância de seu trabalho, mas também para sua condição social marginal. Embora seja o agente direto no cuidado com a vida das pessoas, um tipo de anjo protetor, ao qual todos recorrem, Onofre não é recompensado minimamente: “Sucumbiu logo, porém, com a lembrança de seu salário, miserável, irrisório. Ficou mais miserável ainda ao confrontá-lo com a grandeza da sua ação, ao sol, à chuva, sem domingos, sem feriados, sem hora, sem nada” (REBELO, 2010, p. 153).
O desencanto provindo da não recompensa merecida dialoga com “Oscarina”, pois Jorge também, mesmo empenhado e esforçado no trabalho para o Souza Almeida & Cia, não recebe um salário digno. Em “Onofre, o Terrível”, os contrastes ter/não ter, forte/fraco, privilegiado/desprivilegiado tornam-se ainda mais agudos por meio do olhar crítico que a personagem canaliza para as injustiças e diferenças gritantes de sua realidade:
Enquanto isso, quanto ganhava o diretor? Sim, senhores, quanto ganhava? Contos! Muitos contos! Quantos? Nem sabia! Um mundo! E para quê? – o sorriso superior dançou-lhe nos lábios escarninhos. – Para assinar papéis... Defender uma cidade, aniquilar a morte, destruir o estegomia, assinando papéis... Ridículo!... E contos de réis pelos rabiscos que ninguém entendia. Ele sim, ele que ganhava uma ninharia defendia, afastava o perigo, dominava focos, ele o herói obscuro, o ignorado, o mal pago. Nos ombros dele, Onofre, é que descansava um milhão de almas. (REBELO, 2010, p. 153-154)
Na revelação que o momento banal – olhar-se na poça repleta de larvas do mosquito – proporciona à personagem está a consciência infeliz da sociedade desigual e injusta da qual faz parte como grupo explorado. De um lado o poder, ou seja, o diretor, o dinheiro e pouco trabalho. De outro, os oprimidos, como ele, Onofre, a sobreviver com um salário miserável e a trabalhar incansavelmente. Ilumina-se para Onofre uma cruel realidade de opressão em que muitos, “os humildes, os fracos, os desprotegidos, em resumo, os pobres” (REBELO, 2010, p.154), trabalham para que os ricos, poucos, desfrutem do esforço do outro.
Em um primeiro momento, a consciência da opressão desperta o até então franzino e insignificante Onofre para a revolta, para a busca de justiça. Na sua atitude revoltada, coroada por um idealismo revolucionário, a personagem acredita ser o portador da chave capaz de alterar a condição dos muitos oprimidos e marginalizados como ele. Sendo, como afirma, aquele que mata a própria morte (o mosquito), vê em suas mãos o poder da mudança. Basta um gesto simples, que não mais aplique o estegomiol às larvas, deixando que proliferem , deixando que levem “a morte em suas asas, nos seus ferrões, pelas casas dos ricos, para ceifar, para ceifar” (REBELO, 2010, p.155).
No delírio de Onofre, o mundo nobre ceifado pelos mosquitos transforma-se num ambiente sombrio e fantasmagórico, uma espécie de grande cemitério a expor escancaradamente os alicerces, agora sem força, da opressão:
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E ele já via os mesmos urubus voando, a grasnar, sobre a carniça abandonada nas ruas silenciosas, ao peso da desgraça que devastava os lares opulentos. Já via os urubus molengos disputarem a bicada os corpos insepultos, aqui o Castro e o Teixeira – o da loja de ferragens –, ali o doutor Medeiros (osso só!) e o deputado Alvim, mais acolá o Valfredo, um ricaço que ele nem sabia onde ganhava tanto dinheiro, mais à frente o Viçosa, o doutor Stênio, o major Albuquerque, em suma, todos os graúdos que ele conhecia. (REBELO, 2010, p. 155)
Das cinzas desse mundo destruído, como que devastado por uma guerra impiedosa, Onofre vê a concretização da revelação proporcionada por um ato seu, com a tomada de poder pelos pobres e oprimidos:4
Aí acabaria a pobreza. Os pobres desceriam da Babilônia, do Pinto, da ladeira do Leme, para invadir as casas. Desceriam como em procissões, vagarosas, quatro a quatro, levando estandartes, imagens de santos, palmas, louvando Deus nas alturas, soltando foguetes de cinco bombas, cantando loas a são Benedito. (REBELO, 2010, p. 155)
No trecho citado, é nítida a imagem da cidade bipartida. De um lado, o espaço reservado aos grupos mais abastados, formado por comerciantes, doutores, deputados, majores, como a Urca, por exemplo; de outro, o local onde se aglomeram os pobres e marginalizados, os morros da Babilônia e do Pinto e o Leme.5
A fantasia revolucionária de Onofre, assim, aponta para o desejo de uma sociedade igualitária, cujos menos favorecidos passariam a ocupar os espaços antes a eles barrados.
No entanto, no conto de Marques Rebelo não nos encontramos diante de qualquer idealismo romântico. Assim, da mesma forma que o sonho revolucionário de Onofre cresce em proporções grandiosas e parece de fato encontrar o caminho para a liberdade, ele rapidamente é desfeito, ao ser desmascarado pela fragilidade da saída salvacionista encontrada pela personagem, pois os mosquitos não escolhem a vítima e matariam tanto o rico quanto o pobre. O sonho se transforma, portanto, em pesadelo.
Fracassado o plano, Onofre é retirado da espécie de transe em que se encontra pela voz do chefe, que o chama à realidade. Nesta, desaparece qualquer heroísmo, qualquer ato grandioso, qualquer atitude revolucionária, qualquer sentimento de vingança coletiva. Onofre continua a ser apenas um Pereira da Silva, um mata mosquito magro e escanifrado,
4 Nesse momento, o conto parece fazer referência a uma espécie de utopia comunista, à tomada de poder dos menos privilegiados e oprimidos na construção de uma sociedade igualitária, sem desigualdades. O texto de Marques Rebelo, no entanto, numa visão bastante crítica, e até mesmo pessimista, acaba por revelar a falência desse projeto.
5 Durante a chamada Belle Époque carioca (final do século XIX e início do século XX), sobretudo a partir das reformas empreendidas pelo prefeito Pereira Passos, conhecida como “bota abaixo” e que tinha por objetivo modernizar e “civilizar” o Rio de Janeiro, no sentido de construir, em terras tropicais, uma cidade semelhante a Paris, então símbolo de requinte e modernidade, a população pobre, negra e mulata que então habitava o centro da cidade, não raro em cortiços ou em casarões antigos transformados em tal, foi literalmente expulsa da região central – espaço a ser reconstruído e que precisava ser limpo de tudo que pudesse maculá-lo, como “esmoleres, pedintes, indigentes, ébrios, prostitutas e quaisquer grupos marginais”, como bem mostra Nicolau Sevcenko em Literatura como missão (2003) – e abandonada à própria sorte, sendo empurrada para áreas mais distantes, como os subúrbios e os morros.
No conto, a população que pretende ocupar o espaço dos ricos vem dos morros, Babilônia e Pinto, e do Leme, trazendo não apenas a sua presença física, mas seus costumes e tradições, que juntos com ela foram também expulsos por significarem atraso e mau gosto frente à nova sociedade, em moldes europeus, que se desejava construir.
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a comer uma marmita fria sentado na calçada, enquanto o chefe, diferentemente, almoça em uma casa de pasto. Na sua dura realidade cotidiana, os conflitos permanecem e qualquer sonho de mudança é logo desfeito: “Então a brisa do mar veio mais forte e enxotou o farrapinho de sonho que teimava” (REBELO, 2010, p. 158).
Ao final do conto, é possível ver no título uma grande ironia. O epíteto, o Terrível, dado a Onofre, é uma farsa, pois só se sustenta durante o sonho da personagem e enquanto acredita na perfeição de seu plano e no poder que a sua profissão lhe confere. Mortas essas verdades, Onofre não passa de um pobre diabo, obediente às normas que lhe são impostas. A sua desordem revolucionária não passa de fantasia, ou grande pesadelo, incapaz de alterar o estado das coisas. Desse modo, no percrustar o cotidiano do homem simples, ora mais, ora menos desencantado, como nos dois contos abordados, Marques Rebelo encontra um dos caminhos possíveis de legibilidade do urbano, espelhado, com grande força dramática, nas pequenas tragédias e misérias do dia-a-dia. O escritor consegue, assim, como afirma Zamboni, mostrar-se como um “auscultador atento da vida, com agudo senso das contradições humanas” (1994, p.116).
REFERÊNCIAS
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ANDRADE, Mário de. O empalhador de passarinho. 4 ed. Belo Horizonte:Itatiaia, 2002.
______. Táxi e crônicas no Diário Nacional. São Paulo:Duas Cidades, 1976.
GOMES, Renato Cordeiro. Todas as cidades, a cidade. Rio de Janeiro:Rocco, 2008.
FRUNGILLO, Mário Luiz. O Rio é o mundo: sobre Marques Rebelo no seu centenário. Revista Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, n. 20-21, jan./dez. 2007.
REBELO, Marques. Contos reunidos. 3 ed. Rio de Janeiro:José Olympio, 2010.
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão. 2 ed. São Paulo:Companhia das Letras, 2003.
ZAMBONI, José Carlos. Madalena & Pinga-Fogo. 1994. Tese (Doutorado em Teoria da Literatura e Literatura Comparada) - Faculdade de Ciências e Letras, UNESP, Assis.
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