“A arte brasileira é uma caixa de pandora”
Curador da exposição de 30 anos do Itaú Cultural, Paulo Herkenhoff fala à Bravo! sobre a mostra, sobre sua trajetória e da importância da arte no atual momento político-econômico do Brasil.
“Não
vou nem dizer que minha família tinha uma escola com um museu de
história natural”, brinca o curador Paulo Herkenhoff ao repassar uma
vida dedicada às artes e aos museus. Um dos criadores e curadores do MAR
(Museu de Arte do Rio ), além de idealizador do nome do museu carioca,
Herkenhoff esteve à frente de uma série de instituições privadas e
governamentais, como o Museu de Belas Artes do Rio e a Funarte. Foi o
primeiro latino-americano a integrar a equipe de curadores do MoMa, de
Nova York, e foi curador da Bienal de São Paulo que, segundo ele, não
pode ser “um trampolim” para Kassel ou Veneza. “A Bienal tem de ser
vista, por qualquer curador sério, como um ponto de chegada, um ponto
final. Quem faz a Bienal de São Paulo não precisa fazer Kassel nem
Veneza. Basta”, diz.
Agora Herkenhoff vai curar a exposição de 30 anos do Itaú Cultural, que acontece neste semestre, na Oca em São Paulo. A Bravo!
conversou com o curador sobre o projeto da exposição, a arte no Brasil
hoje, a coleção do MAR e sobre a Bienal. Leia abaixo os principais
trechos da entrevista.
Quais são as linhas mestras da exposição e como ela dialoga com a trajetória das exposições do Itaú Cultural?
A
história do Itaú Cultural tem sido as exposições do acervo. O que a
gente fez foi inverter esse processo. Como é comemorativo dos 30 anos,
partimos de pensar a estrutura do Itaú Cultural, como um conjunto de
trabalhos, projetos e programas que envolvem uma multidisciplinariedade.
Percebemos que, do ponto de vista de artes plásticas, é um museu.
Porque coleciona, registra, conserva, preserva, pesquisa, edita, expõe,
educa, comunica e trata da sustentabilidade. Essas são tarefas de um
museu hoje. E o instituto tem um acervo imenso, um dos maiores do país. E
temos de levar em conta que a formação do acervo encontra núcleos muito
estruturados e outros mais erráticos.
Como direcionou o olhar dentro da coleção?
A
ideia é fazer uma exposição que tenha modos de ver a arte brasileira
através daquilo que é a coleção do Itaú, com densidade conceitual, com
um certo sentido de história, estando aberto para as rupturas e também
considerando a dinâmica do mundo contemporâneo, a agenda que mais afeta o
país, que angustia. Ou seja, como produzir leituras que possam de certa
maneira instruir e instigar o público a fazer suas próprias leituras.
Serão muitos recortes, então.
Vamos
celebrar esse colecionismo, sem encontrar uma lógica única. São focos
de discussão. Nós vamos trazer à luz todos os setores da Instituição,
mas sempre através da arte. A primeira questão que surge é a ideia de
colecionar São Paulo. É um banco paulistano, com presença forte da
família na cidade, se dedicando a museus e a outras instituições
culturais. O Olavo Setúbal foi prefeito. Então tem um nexo muito forte
com a cidade e isso se reflete na coleção. Existe, ao lado da [coleção]
brasiliana, uma paulistânia, que se forma de uma maneira eventual, que
pede leituras. É uma coleção de arte e de fotografias de São Paulo muito
interessante.
Ela tem um recorte no século 20 ou se confunde com a brasiliana?
As
duas se contaminam. Tem coisas importantes de São Paulo do século 18,
19, mas o que ficou, como foco, é mais o modernismo. Mas vamos ter
também linhas de exploração. A arte afro-brasileira, a arte indígena.
Pinçando os artistas que eram modernos antes do modernismo?
O
país não virou moderno nem modernista em 22. Já o era no século 19. De
onde surgiram essas manifestações transformadoras? Podemos pensar na
arte conceitual brasileira, por exemplo, que também é uma linha
importante, mas pouco valorizada no mercado. Só nos últimos dois, três
anos o mercado começa a acordar para ela.
Por que se dá esse descompasso entre o interesse pela arte conceitual no Brasil quando no mundo todo ela ganha força?
A
arte conceitual agregava pouco valor, era tida como brincadeira, coisas
muito irrisórias, como múltiplo.Tudo servia para diminuir o valor. Mas
nos últimos tempos tem havido uma corrida. Isso tem a ver com o fato de a
arte conceitual brasileira começar a ser observada por outras
instituições de fora do país. Embora artistas como Cildo [Meireles] tivessem já o seu reconhecimento. Assim como Regina Silveira,
entre outros. Mas há muita gente a ser descoberta. O Brasil é muito
curioso. Porque existem pessoas muito interessantes a ser descobertas e
existem histórias a serem redescobertas ou desnudadas, que é o caso da
produção sobre a condição afro-brasileira.
Dentro
dessa proposta de rever a atuação do Itaú Cultural, como fica o caso da
performance na exposição? Reencenar uma performance não faz ela perder a
força?
A performance varia muito. Uma Marina Abramovic
depende da personalidade dela, mas talvez outras performances não
dependam tanto do artista. Desde os anos 80 há colecionadores de
performances, o próprio Museu de Arte Moderna de São Paulo tem
performances em seu acervo. É um assunto que ainda não está totalmente
resolvido. Há 100 anos, a própria dança se encontrava numa situação
semelhante. Porque ainda não havia notação dos passos e dos movimentos
da dança até que [Rudolf] Laban começasse a construir um vocabulário.
Acho que tem muito espaço a percorrer, sobretudo entender quais são as
possibilidades da arte no sistema capitalista como o nosso. Quais são as
possibilidades de um artista ser um ativista, mais do que um
administrador de ativos. Porque muitas vezes ele vira sócio da galeria e
passa a fabricar produtos.
E perde o valor instrínseco da obra de arte?
Não
necessariamente, mas existem filósofos hoje muito interessados em
discutir a ética. Houve um pensador brasileiro, Ronaldo Brito, que disse
que se um trabalho quer ser reconhecido como obra de arte, precisa
passar pelo mercado. É uma posição. Mário Pedrosa dizia que para o mercado a arte é um presunto como outro qualquer. Isso foi dar no Nelson Leirner,
no porco empalhado. Se o júri aceitasse o porco como arte, era sinal de
que o júri não sabia diferenciar e aceitou um porco. E se o rejeitasse,
teria rejeitado um porco que na verdade era arte [risos]. O júri estava
condenado a errar.
Tem outros projetos com o Itaú Cultural para além da exposição?
Não,
a ideia é pensar essa exposição. Pensar um pouco o que é a coleção até
aqui. É uma oportunidade para avaliar a trajetória colecionística do
Itaú. Uma instituição que no seus 30 anos foi capaz de dar saltos, de se
rever, se transformar. É uma instituição extremamente inquieta, que não
pára, que tem um processo dialético, de autocrítica, de observação das
consequências do trabalho que faz que é muito forte. Eu sempre gosto de
trabalhar me perguntando qual a missão de uma exposição. E
coincidentemente o próprio instituto, neste momento, está discutindo a
sua missão. E como todos os setores participam, a ideia é que seja uma
exposição como uma construção coletiva. Essa discussão da missão é muito
importante. Sempre digo que iniciativas como essa são daquela ordem da
transformação do capital financeiro em capital simbólico, parte do
capitalismo moderno.
E como entende o contexto atual da arte frente ao momento político-econômico do Brasil?
O
Brasil vive uma situação periclitante. Os fatos históricos e o processo
econômico criaram uma grande confusão. O contexto brasileiro que eu
posso pensar numa exposição sobre uma coleção é o seguinte: o que é hoje
a concentração geográfica de renda em relação aos museus? O Brasil se
torna periférico a São Paulo, como centro do capital financeiro, o
mercado de arte etc.? O que ocorrerá com os museus no Brasil? Há
condições de seguirem esse movimento de estar no jogo? Muito difícil. A
outra pergunta é a seguinte: o que é o custo social da arte e das
atividades da arte num país como o Brasil? Há custos que são de país de
economia avançada, mas o salário mínimo é baixo. São distorções. O
desenho de um artista jovem brasileiro pode custar o mesmo que o desenho
de um artista jovem americano ou alemão. Mas eles pagam imposto com
mais clareza, o sistema fiscal é diferente, os direitos trabalhistas, o
nível do salários per capita, enfim, são discrepâncias muito grandes que
podem afetar a relação do Brasil com sua própria arte.
O senhor dirigiu o MAR (Museu de Arte do Rio), deixou a direção mas continua cuidando da coleção?
Hoje
sou um voluntário. O que é interessante do MAR, como ideia de museu
geral, é que ele tem focos na arte afro-brasileira, indígena, islâmica,
judaica, colecionamos zeros. O MAR toma o acervo como algo quase que
informe, que cada vez que você olha ele tem um relevo diferente, porque é
muito poroso à vontade dos doadores. Temos a maior coleção de arte
amazônica, eu vou muito à Amazônia, três vezes por ano.
De onde nasceu esse interesse pela Amazônia?
Circunstâncias,
identificação. Quando eu trabalhava na Funarte, viajava muito e ali
havia um campo muito forte de vontade de produzir e de pensar a
Amazônia.
O que interessa mais é amazônia histórica, o legado indígena, ou a de agora, pulsante?
Tudo.
Temos, por exemplo, alvarás manuscritos do século 18, temos obras do
períodos da borracha, mas temos uma história da violência na Amazônia.
Um grupo que lida com esse tema: Claudia Andujar, de São Paulo, mas também artistas de Belém como Armando Queiroz, Berna Reale. Também temos o maior grupo de obras de coletivos de São Paulo no acervo. São mais de 50 itens, trabalhos do BijaRi,
da Frente 3 de Fevereiro, entre outros, Enfim, a coleção não é linear,
ela segue as hipóteses, é porosa à participação esse acervo. Estamos
começando uma coleção paulistânia. O Rio colecionou mal São Paulo.
O que define uma coleção?
Uma
coleção nunca é espólio de vencedor, não é investimento, também não é
acumulação pura e simples. É uma construção simbólica importante, que
precisa levar em conta a história, a crítica, a vida dos artistas.
Então, por exemplo, alguns podem achar uma besteira, mas eu acho
interessante que em São Paulo tenha havido três ou quatro gerações da
família Dutra, que pinta desde 1850. No Rio não tem, então estou
construindo isso. Um pintor modernista tão bom como Toledo Piza, interessa. Qual é a São Paulo que interessa?
Depois da semana de 22 o Rio deu um pouco as costas a São Paulo?
O Rio tinha uma modernidade diferente, outra substância e outro enraizamento. É natural que a modernidade aflorasse, depois Mário de Andrade
vai reconhecer isso, porque era uma cidade portuária, cosmopolita,
capital da República, sede da diplomacia. Em 1920 já tinha escrita uma
história da música moderna pelo Darius Milhaud.
O grupo de artistas no Rio nesse período era muito grande. Acho que a
questão no Brasil ficou muito em torno de 22 como um mito construído com
certas funções, que apaga outras modernidades. A modernidade de
Pernambuco, sobre a qual escrevi um livro, é totalmente independente do
resto do Brasil, é uma relação direta com a França, antecipa-se muito.
Sem dúvida que o artista mais maduro em 22, cujas obras nem estavam na
exposição, era Vicente do Rego Monteiro, que tinha um projeto real de arte moderna naquela época, baseada em estudos de fato. Enquanto Tarsila [doAmaral] faz cinco, seis estudos da Negra,
ele fez trezentos estudos de índios. Um outro empenho. Não um modelo
estético para fazer sucesso, existe a busca de uma linguagem. Essa é uma
diferença. E há a modernidade em Belém, que é de outra ordem. É a
cidade que no século 19 está buscando a evolução da ciência, entender a
Amazônia de outra perspectiva. Então falar assim de um evento, com todos
os seus problemas, como sendo algo superior ao resto do Brasil é
injusto. Mitos fundadores de uma hegemonia são mitos com uma vontade de
hegemonia, esse é o problema.
E como vê a questão dos concretos depois?
A
arte concreta naquele momento é subalterna do manifesto de Theo Van
Doesburg, dos anos 20, o manifesto da arte concreta. Há alguma
subalternidade a Max Bill, à teoria filosófica do [Konrad] Fiedler, que é
um pensador do século 19 que fala da previsibilidade da arte, da
objetividade absoluta. E o que se propaga muito é um artigo do Mario
Pedrosa, de 56, 57, em que ele compara a sabença dos paulistas à
intuição dos cariocas. Mas a partir dali os cariocas foram à luta. O que
você vai ter de reflexão crítica sobre a linguagem e ao projeto
construtivo, você não tem nada comparável em outra parte do Brasil. Você
tem Almir Mavignier, [Abraham] Palatinik, Amilcar de Castro, Lygia Clark escrevendo belíssimamente, Hélio Oiticica, Lygia Pape escrevendo. E os dois, [Ferreira] Gullar e Mário Pedrosa. Não existe outro. E o artista de São Paulo que vai ficar próximo, muito envolvido, será Geraldo de Barros, que é um artista muito sensível e se afasta do Waldemar Cordeiro.
Acho que o grande salto do Waldemar Cordeiro vai ser nos anos 60, com a
crise dele com aquele projeto que não deu certo. O neoconcretismo é um
conjunto muito específico de conceitos. Percepção fenomenológica,
entender o comércio dos sentidos, o resgate do sujeito na estrutura
geométrica, na subjetividade ou do artista ou do público. É uma abertura
para a cor como fenômeno sensorial e não fenômeno plástico, rígido,
físico apenas. A gestalt levando para uma dimensão da psicanálise. Há
uma recuperação do lugar da arte na sociedade concreta dos excluídos com
Hélio Oiticica e Lygia Pape.
Como foi sua experiência na Bienal?
Quando
eu fiz a Bienal de São Paulo, eu pensei quero fazer uma Bienal que
devolvesse ao país o custo financeiro dela. Não podia, então escolhi não
fazer um tema, fazer um questão cultural. A antropofagia é um problema
cultural. Para isso fiz algumas perguntas. Se fosse na Bahia, teria um
foco no barroco, na afro-brasilidade. Se fosse em Minas, possivelmente
também o barroco.
E se fosse em Belém?
Seria
a questão da modernização nessa relação entre selva e indústria
moderna, enfim. Mas como estava em São Paulo. Qual seria a real questão
de São Paulo? Vinte e dois é uma ficção, um namorico. Em São Paulo, para
mim, é o modernismo. Mas não o modernismo de respostas, de enlatados.
Escolhi Oswald de Andrade
e não tenho a menor dúvida de que ele fez a cabeça da Tarsila. Ela não
tinha aquela cabeça toda. Ele era muito generoso. Mas, voltando, a
antropofagia é realmente uma questão cultural, de busca de autonomia
cultural. Encontro sustentação teórica em Mário Pedrosa, quando escreve
sobre terceiro mundo versus a cultura na União Soviética e no
capitalismo e a busca de autonomia dentro disso. Depois têm Ferreira
Gullar, “Vanguarda e Subdesenvolvimento”, baseado em Lukács, Haroldo de Campos
estudando a antropofagia a partir de Engels, acreditando que sociedades
dependentes, subalternas, dominadas, poderiam ter uma autonomia
cultural, e o “Manifesto do Terceiro Mundo”, do Artur Barrio.
O Brasil estava pronto, e antropofagia não é uma receita. Não é um
modelo de forma para você copiar, é uma busca de autonomia de linguagem.
É uma atitude que está viva no Brasil de hoje?
Eu
acho que a arte brasileira é uma caixa de pandora. Quantos artistas não
existem para ser descobertos, para ser recuperados? O Brasil tem muito a
descobrir e muita subalternidade a ser denunciada, muito projeto de
poder simbólico a também a ser posto abaixo. Então eu faço o que posso.
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