domingo, 26 de fevereiro de 2017

Marques Rebelo, Silviano Santiago, Silviano Santiago, Hermann Hess, T. S. Eliot

“Há uma certa incapacidade da juventude para compreender que a literatura é consequência de uma obra já realizada.
Quando essa juventude compreender que há sempre uma ligação com o passado – ligação que é dívida – então, sim, será perdurável o que tentar fazer.”
Marques Rebelo

“O interesse radical das vanguardas pelo presente, (...), torna pobre o conhecimento do passado que elas passam ao estudioso. Relegam o passado à condição de possível abstração e, com isso, apagam a possibilidade de análise dos possíveis componentes que distinguem uma época de outra.”
Silviano Santiago


“Quem acredita demais em suas próprias qualidades corre sempre o risco de perder oportunidades de se enriquecer espiritualmente com a assimilação das qualidades alheias. Se confiamos excessivamente em nossas virtudes perdemos o interesse pelas verdades existentes na perspectiva do nosso interlocutor.”
Leandro Konder

“As verdadeiras produções novas no campo da cultura têm sempre por base o recurso a processos de ontem e a realização de valores passados e antigos”.
Hermann Hess

“Nenhum poeta, nenhum artista, tem sua significação completa sozinho. Seu significado e a apreciação que dele fazemos constituem a apreciação de sua relação com os poetas e os artistas mortos. Não se pode estimá-lo em si; é preciso situá-lo, para contraste e comparação, entre os mortos. (...) Os monumentos existentes formam uma ordem ideal entre si, e esta só se modifica pelo aparecimento de uma nova (realmente nova) obra entre eles.”
T. S. Eliot

“Às vezes penso que não acabo. A vida é breve e a arte longa. Não escrevi isto em latim para não parecer mofo. Os jovens do suplemento não gostam de mofo, esquecendo-se de que do mofo veio a penicilina. Mas estou agindo. De vez em quando escrevo uma linha. Com tal cuidado não posso me queixar da qualidade.”
Marques Rebelo

sábado, 25 de fevereiro de 2017

com José Maria Dias da Cruz (Jm), filho do escritor Marques Rebelo

Eduardo Zomkowski
Uma tarde memorável com José Maria Dias da Cruz (Jm), filho do escritor Marques Rebelo, e com Jandira Teske, sua fiel amiga.
Lúcido e jovial, muito amável, vez que outra me evocando a mordacidade do pai, seu José Maria é sincero e devotado artista, incansável investigador da pintura, além de premiada testemunha de encontros entre nossos antigos intelectuais, como Jorge Amado, Burle Marx, Paulo Francis, Poty Lazzarotto, os quais costumava ver e a quem hoje se referiu. Estou porém diante do filho de Rebelo, e é natural que por este nutra especial predileção:
— No apartamento de seu pai, você conheceu vários intelectuais, pintores...
— Sim, sim, e veja só, rapaz... — recordava por trás dos óculos brilhantes: — No apartamento em que morávamos, havia sempre gente interessante... o Samuel Wainer, o Jorge Amado, o Paulo Francis, o Jango, muitos outros. O Jorge Amado, ora, o Jorge Amado ficava lá de pé admirado, emudecido e escutando. E no centro dessas reuniões, meu pai contando histórias, piadas, discutia assuntos intelectuais.
— Ela era bastante engraçado, não? Tinha uma língua ferina.
― Sim, sim... e era homem de alta cultura artística, e até filosófica. ― respondeu. ― Veja só: com aquele seu jeito persuasivo, envolvente... argumentos aqui e ali... ele ia cingindo a pessoa, trazendo-a para a sua idéia e, rapaz! algumas vezes ficava difícil acompanhar a discussão. Quantas vezes um amigo cortava com um argumento superior, e ele vinha com um mais alto, e outro, e outro, e assim ia coisa até que ficávamos boiando. Meu pai era um homem muito culto.
*
Dia de exposição da Bienal ("Não vi nada de novo por aqui! Você viu, Jandira?..."), no Café do Niemeyer conversava gente bonita, fina, sofisticada. Era agradável estar ali, no meio de tanta beleza e beldade. Porém José Maria é genuíno carioca, da saudosa raça da gente antiga, muitas histórias que contar e com quem logo ficamos à vontade, como pouca vez é dado experimentar. Presenteou-me com o recente "O Melhor do Conto Brasileiro" (J. Olympio) e com o seu "O Cromatismo Cezanneano", deitando neles sua plástica dedicatória.
Tomamos uns cafés e fumamos os nossos cigarros, bem-acompanhados da afável Jandira.
*
Errando no labirinto do Centro Histórico, em busca da Rua Clotário Portugal ("Rapaz, e não é que o curitibano não tem relação com as ruas?..."), deixei-o enfim a porta do seu hotel, recebi efusivo abraço e a certeza de que retornará para melhor nos conhecer e contar suas histórias.
(Domingo, 20 de outubro de 2013)

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

O PINTOR E O ENIGMA , Cézanne e Espinoza

 
 
 
 
Assemblage

Assemblage
O PINTOR E O ENIGMA
......................
<Não aceito quando dizem que o cinza é o fim
Se o vejo como início em cor.>
        Mateus Aleluia
......................
Ontologia das cores   <A luz não existe para o pintor, tem que ser substituída por uma outra coisa, a cor.> <A cor é o lugar  omde o mosso cérebro e o universo se encontram.> Cézanne
Agora diremos que esse lugar é o do cinza sempíterno.
.........................
O cinza sempiterno
<Somente um cinza reina na natureza, mas alcançá.lo é de uma dificuldade espantosa.> < A arte é uma religião.>
        Cézanne
O cinza sempiterno não existe. É um pré ou pós.fenômeno. Manifesta.se na natureza. É causa de si mesmo.
<O que não pode ser concebido por outra coisa, deve ser  concebido por si.> <A essência do que pode ser concebido como inexistente não envolve a existência.>
          Espinoza

..........................
Cor, forma e colorido
(quadro)

............................
O rompimento do tom
Um tom se rompe pela sobreposição meme de sua oposta ou pós imagem
(gráfico)

........................
O ponto de passagem
Na passagem de uma cor em direção a sua oposta temos um ponto, o cinza sempiterno.
(gráfico)

..................
 
Fração do espaço
Como são interditados todos os coloridos, ou um colorido total, o pintor, só pode pintar uma fração do espaço. Assim, a partir de certo nível, de realidade a lógica do cinza sempiterno tamém é interditada. Além está a zona do inviolável. 

...................,
José Maria Dias da Cruz 
2017

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<Não aceito quando dizem que o cinza é o fim
Se o vejo como início em cor.>
        Mateus Aleluia
......................
Ontologia das cores   <A luz não existe para o pintor, tem que ser substituída por uma outra coisa, a cor.> <A cor é o lugar  omde o mosso cérebro e o universo se encontram.> Cézanne
Agora diremos que esse lugar é o do cinza sempíterno.
.........................
O cinza sempiterno
<Somente um cinza reina na natureza, mas alcançá.lo é de uma dificuldade espantosa.> < A arte é uma religião.>
        Cézanne
O cinza sempiterno não existe. É um pré ou pós.fenômeno. Manifesta.se na natureza. É causa de si mesmo.
<O que não pode ser concebido por outra coisa, deve ser  concebido por si.> <A essência do que pode ser concebido como inexistente não envolve a existência.>
          Espinoza

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Cor, forma e colorido
(quadro)

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O rompimento do tom
Um tom se rompe pela sobreposição meme de sua oposta ou pós imagem
(gráfico)

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O ponto de passagem
Na passagem de uma cor em direção a sua oposta temos um ponto, o cinza sempiterno.
(gráfico)

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Fração do espaço
Como são interditados todos os coloridos, ou um colorido total, o pintor, só pode pintar uma fração do espaço. Assim, a partir de certo nível, de realidade a lógica do cinza sempiterno tamém é interditada. Além está a zona do inviolável. 

...................,
José Maria Dias da Cruz 
2017

cinza sempiterno e o serpenteamento : Email recebido de Carlos Didier

Email recebido de Carlos Didier comentando o que escrevi sobre o cinza sempiterno e o serpenteamento que segue abaixo
Você procurou no par organização/desorganização do biólogo um paralelo para o seu visível/invisível. Embora haja, de fato, uma sintonia entre ambos, o que veio à cabeça foi uma outra coisa: a migração das cores para uma outra dimensão. Vou explicar, mas permita-me um salto; depois, retorno.
O grande Einstein perseguiu, a partir de determinado ponto de sua
vida, um sonho que não conseguiu concretizar: unificar todas as forças da natureza (magnética, gravitacional, forte e fraca) numa só teoria. Ele pensava assim: se tudo veio do big-bang, então todas as forças da natureza podem ser explicadas numa mesma equação, numa mesma fórmula. Mesmo sem ter êxito, era, na minha opinião, uma bela busca da inteligência de deus. E hoje há quem pense que o "fracasso de Einstein" tenha tido origem num fato assombroso: o desaparecimento de uma ou mais dimensões da realidade. Isso mesmo: o impacto do big-bang teria sido de tal ordem que provocara o sumiço de talvez mais de uma
dimensão. Sem todas as dimensões presentes na criação do universo, não seria possível explicar pela mesma teoria todas as forças da natureza.
De volta. Este "interrompimento de percurso" e esta "área de não
visibilidade" me trouxeram à mente a possibilidade de uma dimensão extra frequentada apenas pelas cores. Não teria você, nesta sua também "bela busca da inteligência de deus", encontrado um vestígio das dimensões perdidas?
Um abraço,
Carlos
_____________________
O cinza sempiterno e o serpenteamento
Amanhece, o sol se esclarece
Armando Freitas Filho
Inicío este texto com duas citações de Paul Klee que se completam: “O pintor torna visível.” “O crepúsculo incerto do centro.”
Ao rompermos um tom sua tonalidade vai mudando em direção a sua oposta, mas o percurso é interrompido. Assim não há como tornar visíveis o cinza sempiterno e o serpenteamento que dele decorre no sentido de animar o espaço plástico antes de se tornarem fenômenos cromáticos porque se situam nessa área de não visibilidade. Tornam-se visíveis, e fenômenos, apenas quando se manifestarem na natureza, mas tanto um quanto outro se nos mostram como um outros níveis de realidade. Como pós ou pré-fenômenos nos são interditados. Isto não nos impede, entretanto, de nosso pensamento construir a lógica que os regem
e de até permitir uma figuração esquemática. Aproximamos, assim, da lógica do terveiro incluído. Seguindo o pensamento de Wittgenstein diremos também q essa lógica não esclarece o enigma.
Podemos agora afirmar que a visibilidade não é permanente, mas um processo de visibilidade e não visibilidade, uma e outra com suas lógicas próprias e interdependentes que criam uma terceira lógica. Esta minha tomada de posição, acredito, confirma o que penso: a teoria antecedendo a experimentação como uma metodologia. E também permitindo outra percepção da arte conceitual. Antes do conceito e a realização, a lógica que rege a obra.
Para uma compreenção do que pretendo mostrar transcrevo aqui uma citação do Biólogo Henry Atlan retirada de seu livro, Entre o Cristal e a Fumaça, Editora Zahar, Rio de Janeiro.
[...] a organização dos seres vivos não é estática, nem tampouco um processo que se oponha a forças e desorganização. Mas antes um processo de desorganização permanente seguida de reorganização, com o aparecimento de propriedades novas, quando a desorganização pode ser suportada e não mata o sistema. Em outras palavras, a morte do sistema faz parte da vida, não apenas por sob a forma de uma potencialidade dialética, mas como uma parte intrínseca de seu funcionamento e sua evolução: sem perturbações ao acaso, sem desorganização, não há reorganização adaptativa ao novo; sem um processo de morte controlada, não há processo de vida.
José Maria Dias da Cruz – Florianópolis – Fevereiro de 2013

Comentários
Lu Mota
Lu Mota Penso que o cinza sempiterno êh como Deus!
Isabela Frade
Isabela Frade Minha orientanda Bianca Silva refere se ao seu estudo da cor em monografia a ser defendida 05/03.
Maria Cecilia Camargo
Maria Cecilia Camargo Isto é para guardar, melhor: publicar.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

“A arte brasileira é uma caixa de pandora” Paulo Herkenhoff

“A arte brasileira é uma caixa de pandora”

Curador da exposição de 30 anos do Itaú Cultural, Paulo Herkenhoff fala à Bravo! sobre a mostra, sobre sua trajetória e da importância da arte no atual momento político-econômico do Brasil.
Foto: Divulgação
“Não vou nem dizer que minha família tinha uma escola com um museu de história natural”, brinca o curador Paulo Herkenhoff ao repassar uma vida dedicada às artes e aos museus. Um dos criadores e curadores do MAR (Museu de Arte do Rio ), além de idealizador do nome do museu carioca, Herkenhoff esteve à frente de uma série de instituições privadas e governamentais, como o Museu de Belas Artes do Rio e a Funarte. Foi o primeiro latino-americano a integrar a equipe de curadores do MoMa, de Nova York, e foi curador da Bienal de São Paulo que, segundo ele, não pode ser “um trampolim” para Kassel ou Veneza. “A Bienal tem de ser vista, por qualquer curador sério, como um ponto de chegada, um ponto final. Quem faz a Bienal de São Paulo não precisa fazer Kassel nem Veneza. Basta”, diz.
Agora Herkenhoff vai curar a exposição de 30 anos do Itaú Cultural, que acontece neste semestre, na Oca em São Paulo. A Bravo! conversou com o curador sobre o projeto da exposição, a arte no Brasil hoje, a coleção do MAR e sobre a Bienal. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.
Quais são as linhas mestras da exposição e como ela dialoga com a trajetória das exposições do Itaú Cultural?
A história do Itaú Cultural tem sido as exposições do acervo. O que a gente fez foi inverter esse processo. Como é comemorativo dos 30 anos, partimos de pensar a estrutura do Itaú Cultural, como um conjunto de trabalhos, projetos e programas que envolvem uma multidisciplinariedade. Percebemos que, do ponto de vista de artes plásticas, é um museu. Porque coleciona, registra, conserva, preserva, pesquisa, edita, expõe, educa, comunica e trata da sustentabilidade. Essas são tarefas de um museu hoje. E o instituto tem um acervo imenso, um dos maiores do país. E temos de levar em conta que a formação do acervo encontra núcleos muito estruturados e outros mais erráticos.
Como direcionou o olhar dentro da coleção?
A ideia é fazer uma exposição que tenha modos de ver a arte brasileira através daquilo que é a coleção do Itaú, com densidade conceitual, com um certo sentido de história, estando aberto para as rupturas e também considerando a dinâmica do mundo contemporâneo, a agenda que mais afeta o país, que angustia. Ou seja, como produzir leituras que possam de certa maneira instruir e instigar o público a fazer suas próprias leituras.
Serão muitos recortes, então.
Vamos celebrar esse colecionismo, sem encontrar uma lógica única. São focos de discussão. Nós vamos trazer à luz todos os setores da Instituição, mas sempre através da arte. A primeira questão que surge é a ideia de colecionar São Paulo. É um banco paulistano, com presença forte da família na cidade, se dedicando a museus e a outras instituições culturais. O Olavo Setúbal foi prefeito. Então tem um nexo muito forte com a cidade e isso se reflete na coleção. Existe, ao lado da [coleção] brasiliana, uma paulistânia, que se forma de uma maneira eventual, que pede leituras. É uma coleção de arte e de fotografias de São Paulo muito interessante.
Ela tem um recorte no século 20 ou se confunde com a brasiliana?
As duas se contaminam. Tem coisas importantes de São Paulo do século 18, 19, mas o que ficou, como foco, é mais o modernismo. Mas vamos ter também linhas de exploração. A arte afro-brasileira, a arte indígena.
Pinçando os artistas que eram modernos antes do modernismo?
O país não virou moderno nem modernista em 22. Já o era no século 19. De onde surgiram essas manifestações transformadoras? Podemos pensar na arte conceitual brasileira, por exemplo, que também é uma linha importante, mas pouco valorizada no mercado. Só nos últimos dois, três anos o mercado começa a acordar para ela.
Por que se dá esse descompasso entre o interesse pela arte conceitual no Brasil quando no mundo todo ela ganha força?
A arte conceitual agregava pouco valor, era tida como brincadeira, coisas muito irrisórias, como múltiplo.Tudo servia para diminuir o valor. Mas nos últimos tempos tem havido uma corrida. Isso tem a ver com o fato de a arte conceitual brasileira começar a ser observada por outras instituições de fora do país. Embora artistas como Cildo [Meireles] tivessem já o seu reconhecimento. Assim como Regina Silveira, entre outros. Mas há muita gente a ser descoberta. O Brasil é muito curioso. Porque existem pessoas muito interessantes a ser descobertas e existem histórias a serem redescobertas ou desnudadas, que é o caso da produção sobre a condição afro-brasileira.
Dentro dessa proposta de rever a atuação do Itaú Cultural, como fica o caso da performance na exposição? Reencenar uma performance não faz ela perder a força?
A performance varia muito. Uma Marina Abramovic depende da personalidade dela, mas talvez outras performances não dependam tanto do artista. Desde os anos 80 há colecionadores de performances, o próprio Museu de Arte Moderna de São Paulo tem performances em seu acervo. É um assunto que ainda não está totalmente resolvido. Há 100 anos, a própria dança se encontrava numa situação semelhante. Porque ainda não havia notação dos passos e dos movimentos da dança até que [Rudolf] Laban começasse a construir um vocabulário. Acho que tem muito espaço a percorrer, sobretudo entender quais são as possibilidades da arte no sistema capitalista como o nosso. Quais são as possibilidades de um artista ser um ativista, mais do que um administrador de ativos. Porque muitas vezes ele vira sócio da galeria e passa a fabricar produtos.
E perde o valor instrínseco da obra de arte?
Não necessariamente, mas existem filósofos hoje muito interessados em discutir a ética. Houve um pensador brasileiro, Ronaldo Brito, que disse que se um trabalho quer ser reconhecido como obra de arte, precisa passar pelo mercado. É uma posição. Mário Pedrosa dizia que para o mercado a arte é um presunto como outro qualquer. Isso foi dar no Nelson Leirner, no porco empalhado. Se o júri aceitasse o porco como arte, era sinal de que o júri não sabia diferenciar e aceitou um porco. E se o rejeitasse, teria rejeitado um porco que na verdade era arte [risos]. O júri estava condenado a errar.
Tem outros projetos com o Itaú Cultural para além da exposição?
Não, a ideia é pensar essa exposição. Pensar um pouco o que é a coleção até aqui. É uma oportunidade para avaliar a trajetória colecionística do Itaú. Uma instituição que no seus 30 anos foi capaz de dar saltos, de se rever, se transformar. É uma instituição extremamente inquieta, que não pára, que tem um processo dialético, de autocrítica, de observação das consequências do trabalho que faz que é muito forte. Eu sempre gosto de trabalhar me perguntando qual a missão de uma exposição. E coincidentemente o próprio instituto, neste momento, está discutindo a sua missão. E como todos os setores participam, a ideia é que seja uma exposição como uma construção coletiva. Essa discussão da missão é muito importante. Sempre digo que iniciativas como essa são daquela ordem da transformação do capital financeiro em capital simbólico, parte do capitalismo moderno.
E como entende o contexto atual da arte frente ao momento político-econômico do Brasil?
O Brasil vive uma situação periclitante. Os fatos históricos e o processo econômico criaram uma grande confusão. O contexto brasileiro que eu posso pensar numa exposição sobre uma coleção é o seguinte: o que é hoje a concentração geográfica de renda em relação aos museus? O Brasil se torna periférico a São Paulo, como centro do capital financeiro, o mercado de arte etc.? O que ocorrerá com os museus no Brasil? Há condições de seguirem esse movimento de estar no jogo? Muito difícil. A outra pergunta é a seguinte: o que é o custo social da arte e das atividades da arte num país como o Brasil? Há custos que são de país de economia avançada, mas o salário mínimo é baixo. São distorções. O desenho de um artista jovem brasileiro pode custar o mesmo que o desenho de um artista jovem americano ou alemão. Mas eles pagam imposto com mais clareza, o sistema fiscal é diferente, os direitos trabalhistas, o nível do salários per capita, enfim, são discrepâncias muito grandes que podem afetar a relação do Brasil com sua própria arte.
O senhor dirigiu o MAR (Museu de Arte do Rio), deixou a direção mas continua cuidando da coleção?
Hoje sou um voluntário. O que é interessante do MAR, como ideia de museu geral, é que ele tem focos na arte afro-brasileira, indígena, islâmica, judaica, colecionamos zeros. O MAR toma o acervo como algo quase que informe, que cada vez que você olha ele tem um relevo diferente, porque é muito poroso à vontade dos doadores. Temos a maior coleção de arte amazônica, eu vou muito à Amazônia, três vezes por ano.
De onde nasceu esse interesse pela Amazônia?
Circunstâncias, identificação. Quando eu trabalhava na Funarte, viajava muito e ali havia um campo muito forte de vontade de produzir e de pensar a Amazônia.
O que interessa mais é amazônia histórica, o legado indígena, ou a de agora, pulsante?
Tudo. Temos, por exemplo, alvarás manuscritos do século 18, temos obras do períodos da borracha, mas temos uma história da violência na Amazônia. Um grupo que lida com esse tema: Claudia Andujar, de São Paulo, mas também artistas de Belém como Armando Queiroz, Berna Reale. Também temos o maior grupo de obras de coletivos de São Paulo no acervo. São mais de 50 itens, trabalhos do BijaRi, da Frente 3 de Fevereiro, entre outros, Enfim, a coleção não é linear, ela segue as hipóteses, é porosa à participação esse acervo. Estamos começando uma coleção paulistânia. O Rio colecionou mal São Paulo.
O que define uma coleção?
Uma coleção nunca é espólio de vencedor, não é investimento, também não é acumulação pura e simples. É uma construção simbólica importante, que precisa levar em conta a história, a crítica, a vida dos artistas. Então, por exemplo, alguns podem achar uma besteira, mas eu acho interessante que em São Paulo tenha havido três ou quatro gerações da família Dutra, que pinta desde 1850. No Rio não tem, então estou construindo isso. Um pintor modernista tão bom como Toledo Piza, interessa. Qual é a São Paulo que interessa?
Depois da semana de 22 o Rio deu um pouco as costas a São Paulo?
O Rio tinha uma modernidade diferente, outra substância e outro enraizamento. É natural que a modernidade aflorasse, depois Mário de Andrade vai reconhecer isso, porque era uma cidade portuária, cosmopolita, capital da República, sede da diplomacia. Em 1920 já tinha escrita uma história da música moderna pelo Darius Milhaud. O grupo de artistas no Rio nesse período era muito grande. Acho que a questão no Brasil ficou muito em torno de 22 como um mito construído com certas funções, que apaga outras modernidades. A modernidade de Pernambuco, sobre a qual escrevi um livro, é totalmente independente do resto do Brasil, é uma relação direta com a França, antecipa-se muito. Sem dúvida que o artista mais maduro em 22, cujas obras nem estavam na exposição, era Vicente do Rego Monteiro, que tinha um projeto real de arte moderna naquela época, baseada em estudos de fato. Enquanto Tarsila [doAmaral] faz cinco, seis estudos da Negra, ele fez trezentos estudos de índios. Um outro empenho. Não um modelo estético para fazer sucesso, existe a busca de uma linguagem. Essa é uma diferença. E há a modernidade em Belém, que é de outra ordem. É a cidade que no século 19 está buscando a evolução da ciência, entender a Amazônia de outra perspectiva. Então falar assim de um evento, com todos os seus problemas, como sendo algo superior ao resto do Brasil é injusto. Mitos fundadores de uma hegemonia são mitos com uma vontade de hegemonia, esse é o problema.
E como vê a questão dos concretos depois?
A arte concreta naquele momento é subalterna do manifesto de Theo Van Doesburg, dos anos 20, o manifesto da arte concreta. Há alguma subalternidade a Max Bill, à teoria filosófica do [Konrad] Fiedler, que é um pensador do século 19 que fala da previsibilidade da arte, da objetividade absoluta. E o que se propaga muito é um artigo do Mario Pedrosa, de 56, 57, em que ele compara a sabença dos paulistas à intuição dos cariocas. Mas a partir dali os cariocas foram à luta. O que você vai ter de reflexão crítica sobre a linguagem e ao projeto construtivo, você não tem nada comparável em outra parte do Brasil. Você tem Almir Mavignier, [Abraham] Palatinik, Amilcar de Castro, Lygia Clark escrevendo belíssimamente, Hélio Oiticica, Lygia Pape escrevendo. E os dois, [Ferreira] Gullar e Mário Pedrosa. Não existe outro. E o artista de São Paulo que vai ficar próximo, muito envolvido, será Geraldo de Barros, que é um artista muito sensível e se afasta do Waldemar Cordeiro. Acho que o grande salto do Waldemar Cordeiro vai ser nos anos 60, com a crise dele com aquele projeto que não deu certo. O neoconcretismo é um conjunto muito específico de conceitos. Percepção fenomenológica, entender o comércio dos sentidos, o resgate do sujeito na estrutura geométrica, na subjetividade ou do artista ou do público. É uma abertura para a cor como fenômeno sensorial e não fenômeno plástico, rígido, físico apenas. A gestalt levando para uma dimensão da psicanálise. Há uma recuperação do lugar da arte na sociedade concreta dos excluídos com Hélio Oiticica e Lygia Pape.
Como foi sua experiência na Bienal?
Quando eu fiz a Bienal de São Paulo, eu pensei quero fazer uma Bienal que devolvesse ao país o custo financeiro dela. Não podia, então escolhi não fazer um tema, fazer um questão cultural. A antropofagia é um problema cultural. Para isso fiz algumas perguntas. Se fosse na Bahia, teria um foco no barroco, na afro-brasilidade. Se fosse em Minas, possivelmente também o barroco.
E se fosse em Belém?
Seria a questão da modernização nessa relação entre selva e indústria moderna, enfim. Mas como estava em São Paulo. Qual seria a real questão de São Paulo? Vinte e dois é uma ficção, um namorico. Em São Paulo, para mim, é o modernismo. Mas não o modernismo de respostas, de enlatados. Escolhi Oswald de Andrade e não tenho a menor dúvida de que ele fez a cabeça da Tarsila. Ela não tinha aquela cabeça toda. Ele era muito generoso. Mas, voltando, a antropofagia é realmente uma questão cultural, de busca de autonomia cultural. Encontro sustentação teórica em Mário Pedrosa, quando escreve sobre terceiro mundo versus a cultura na União Soviética e no capitalismo e a busca de autonomia dentro disso. Depois têm Ferreira Gullar, “Vanguarda e Subdesenvolvimento”, baseado em Lukács, Haroldo de Campos estudando a antropofagia a partir de Engels, acreditando que sociedades dependentes, subalternas, dominadas, poderiam ter uma autonomia cultural, e o “Manifesto do Terceiro Mundo”, do Artur Barrio. O Brasil estava pronto, e antropofagia não é uma receita. Não é um modelo de forma para você copiar, é uma busca de autonomia de linguagem.
É uma atitude que está viva no Brasil de hoje?
Eu acho que a arte brasileira é uma caixa de pandora. Quantos artistas não existem para ser descobertos, para ser recuperados? O Brasil tem muito a descobrir e muita subalternidade a ser denunciada, muito projeto de poder simbólico a também a ser posto abaixo. Então eu faço o que posso.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Marques Rebelo , Oscarina, Onofre, o Terrível, ou a sede de justiça

ESTUDOS LINGUÍSTICOS, São Paulo, 41 (3): p. 1126-1134, set-dez 2012 1126
Marques Rebelo e o cotidiano pequeno burguês
(Marques Rebelo and the bourgeois quotidian)
Regina Célia dos Santos Alves¹
¹ Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas – Universidade Estadual de Londrina (UEL)
reginacsalves@hotmail.com
Abstract: This paper aims to analyse two short stories by Marques Rebelo (1907-1973), “Oscarina” and “Onofre, o Terrível, ou a sede de justiça”, both taken from Oscarina (1931), in order to show how the writer, actually a little-known writer, shows as one of his main concerns an effective picture of the urban life in Rio de Janeiro city at the beginning of the twentieth century.This effective picture presents sometimes tragic characteristics and reveals specially the life of simple people as workmen, public employees, businessmen, etc.
Keywords: Marques Rebelo; bourgeois quotidian; urban life.
Resumo: O presente trabalho tem por objetivo a análise de dois contos de Marques Rebelo (1907-1973), “Oscarina” e “Onofre, o Terrível, ou a sede de justiça,”ambos de Oscarina (1931), no sentido de mostrar como o escritor, hoje quase um desconhecido, apresenta como uma de suas principais preocupações o desenho vivo e colorido, por vezes trágico, da vida urbana carioca das primeiras décadas do século XX, em especial das camadas mais simples da população, como operários, pequenos funcionários públicos, pequenos comerciantes, etc.
Palavras-chave: Marques Rebelo; cotidiano pequeno burguês; vida urbana.
Destino semelhante ao de um outro contemporâneo seu, José Geraldo Vieira,1 parece ter tido Marques Rebelo (1907-1973). De igual maneira, o autor de Oscarina, que estreia com essa coletânea de contos em 1931, passa a ser, desde sua primeira publicação, um autor bastante prestigiado por grandes nomes da crítica da época – como Mário de Andrade, Tristão de Ataíde, Sérgio Milliet, Wilson Martins, Otto Maria Carpeaux, Agripino Grieco, Álvaro Lins, Drummond, dentre outros – caindo, nas últimas décadas, como aponta Zamboni, “num esquecimento quase total, a ponto de ser conhecido das novas gerações (e talvez de nome) pelo romance A estrela sobe, talvez por ter virado filme no começo dos anos de setenta” (1994, p. 108).
Mário de Andrade, em 1931, quando da publicação de Oscarina, tece comentários elogiosos ao jovem escritor, apontando para aspectos da obra de Marques Rebelo que a crítica iria repisar com frequência nas leituras subsequentes do autor, mesmo quando se tratava de suas obras posteriores. Mário de Andrade, em “Oscarina” (1976), assevera que Marques Rebelo descende de uma tradição iniciada por Manuel Antonio de Almeida, passando por Machado de Assis e Lima Barreto, que se especializou “na descrição nua e crua da pequena burguesia ou do... alto proletariado” (p. 375).
1 José Geraldo Vieira (1897-1977) publica sua primeira obra na década de 1920, mas se torna conhecido a partir da publicação, em 1931, do romance A mulher que fugiu de Sodoma. Bastante prestigiado e lido em vida, recebendo elogio de Oswald de Andrade em artigo de Ponta de Lança (São Paulo:Globo, 1997), com várias edições de sua obra numerosa, após a morte cai quase que num completo esquecimento.
ESTUDOS LINGUÍSTICOS, São Paulo, 41 (3): p. 1126-1134, set-dez 2012 1127
Essa afirmação do crítico e escritor modernista, que de certo modo mede a importância do escritor estreante pela aproximação, ainda bastante vaga, entre ele e nomes significativos da literatura nacional, como Manuel Antônio, Machado e Lima Barreto, transformar-se-á numa das questões centrais de preocupação da crítica na abordagem da obra de Marques Rebelo, não apenas quando o assunto é Oscarina, mas também os demais textos do autor, como A estrela sobe (1939), Três caminhos (1933), Stela me abriu a porta (1942), Marafa (1935) e O espelho partido (1959). Retomando o comentário de Mário de Andrade sem a ele acrescentar maiores esclarecimentos ou no sentido de estabelecer suas limitações ou mesmo refutá-lo, como faz Mario Luiz Frungillo (2007) ao retomar essa suposta linhagem da qual proveria Marques Rebelo com vistas a mostrar o que de fato procede dessa verdade pouco explicitada e tornada quase incontestável acerca do escritor, a crítica parece revisitar com frequência os primeiros apontamentos investigativos do autor de Macunaíma, cuja justeza das reflexões – ainda que muito breves dentro dos limites de seu artigo – quase sempre se transformam em ponto de partida para a leitura de Marques Rebelo.
A abordagem que aqui pretendemos do autor carioca parte também de um comentário já feito por Mário de Andrade e que nos parece constituir questão central na obra de Marques Rebelo: a leitura do cotidiano da cidade, sobretudo do Rio de Janeiro, de sua população simples e de seus pequenos dramas e tragédias. Rebelo, no entanto, como afirma Zamboni,
não é só o contista e novelista da gente humilde da zona norte carioca, visão apressada e insuficiente para a compreensão de uma obra complexa que, sob a casca costumbrista, escondia um auscultar atento da vida, com agudo senso das contradições humanas [...] (1994, p.115-116).
É justamente o olhar agudo para a realidade, a partir da observação dos acontecimentos miúdos e corriqueiros do cotidiano que vemos desfilar pelas páginas de contos, crônicas, novelas e romances de Marques Rebelo, com “domínio de estilo, profundidade psicológica, de ação e segurança de virtuosismo” (ABRANCHES, 1958, p.32), confirmando o insight crítico de Mário de Andrade acerca do estreante autor de Oscarina, que via, naquele momento, 1931, como excepcional no quadro das letras brasileiras, impressão que viria a reafirmar com mais pujança alguns anos depois nos artigos “Psicologia em ação” e “A estrela sobe”, ambos de 1939. Neles, atesta a originalidade e a capacidade expressiva de Rebelo (ANDRADE, 2002).
Para o estudo aqui proposto, como mencionado anteriormente, interessa-nos observar, sobretudo, o retrato da vida urbana carioca desenhado por Rebelo a partir da atenção dispensada ao dia-a-dia de um grupo indefinido, nem bem proletariado, nem ainda burguesia, conforme afirma Mário de Andrade (2002, p. 131), a ocupar uma espécie de entre-lugar, incerto quanto ao seu papel e lugar na sociedade, na labuta cotidiana e na busca pela realização de seus anseios. Tomaremos para análise dois contos do autor, “Oscarina” e “Onofre, o Terrível, ou a sede de justiça”, ambos de Oscarina.
“Oscarina”, conto publicado primeiramente na revista Feira Literária, em 1927, e que em 1931 passa a compor o livro homônimo e de estreia de Marques Rebelo, narra a história de Jorge, um jovem que vive com a família no subúrbio do Rio e que, ansioso por conseguir dinheiro de uma forma mais rápida, decide abandonar os estudos, mesmo a contragosto do pai, e ingressar no mundo do trabalho. A decepção imediata, logo após
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o primeiro salário, é responsável pelas mudanças de plano do rapaz, que vai em busca do dinheiro por um caminho que julga mais fácil, o do serviço militar.
No conto está em cena o cotidiano de uma família simples e convencional, composta pelo pai, pela mãe e pelo filho, num regime tipicamente patriarcal, em que o pai ocupa a posição central, é o trabalhador, mantenedor financeiro do lar, senhor a quem a mãe e o filho devem obediência e aquele a quem cabe respeito aos valores morais e sociais postos.
Essa é a posição ocupada pelo pai de Jorge, Augusto, terceiro oficial do ministério da Marinha, um funcionário modesto que, dentro de sua posição de pai e chefe patriarcal, sonha em fazer o filho doutor, pois, a seu ver, essa seria a forma mais segura de Jorge ter um futuro diferente do seu, de sair da posição indefinida e sem grandes privilégios e alcançar prestígio social e econômico:
O pai se opusera, com vontade que ele fosse doutor, único filho, que diabo! Valia a pena. Sempre era uma honra para a família e para ele, principalmente, que era o chefe. Devaneava.
─ Apresento-lhe aqui o prezado amigo Augusto dos Santos, digno progenitor do ilustre doutor Jorge dos Santos.
Que gozo! Doutor... Cantava-lhe nos ouvidos como uma música no céu. (REBELO, 2010, p.16)
O devanear do pai de Jorge é a projeção do sentido social que a palavra doutor comporta dentro da sociedade retratada. Para Augusto, estudar o filho, fazê-lo doutor, significa, mais que dar a ele conhecimento e uma profissão, a porta de entrada do reconhecimento social, principalmente para ele, como afirma, “que era o chefe”. Ainda que não pertencente propriamente ao mundo burguês, o pai tem como verdadeiro um valor burguês. Ao expor seu desejo mais ardente, traz à tona o retrato da sociedade regida pela aparência – o título de doutor confirma isso – cujas classes privilegiadas permitem o acesso a seu universo somente àqueles que obedecem às suas normas.
No devanear de Augusto, os termos “prezado amigo”, “digno progenitor” e “ilustre doutor” apontam para o valor social do título, para a elevação daquele que o possui e, no caso, também para o pai, responsável direto pelo título do filho. Mesmo distante dos privilégios burgueses, levando uma vida simples e com muitas restrições, pois o dinheiro era pouco, o pai de Jorge carreia todos os esforços para a ascensão do filho por meio do ser doutor, de enorme valia para quem, como ele, tinha poucas oportunidades de elevação socioeconômica:
─ Eu quero que você se forme, meu filho, que tenha um título, não pelo simples fato de ser doutor, que doutor não quer dizer ciência ─ ah! Isto, não ─, mas é que sempre um diploma vale qualquer coisa nesta terra. É um mal, não nego, é um grande mal, mas o certo é que há mais facilidades para se arranjar boas colocações, às vezes até um bom casamento! (REBELO, 2010, p. 25-26)
Se Jorge se assemelha ao pai no tocante ao desejo de uma outra vida, as proximidades esgotam-se aí. Jorge almeja uma vida mais abastada não propriamente pelo status social que poderia lhe oferecer, mas porque o dinheiro, do seu ponto de vista, poderia trazer-lhe liberdade. Com dinheiro próprio, não teria que se submeter às ordens familiares, sobretudo
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paterna, e poderia desfrutar a vida do modo que julgasse melhor, inclusive com o abandono dos estudos – vontade do pai – que julgava maçantes e sem serventia imediata:
Livre! Como seria outra a vida, que forra tiraria dos anos em que vivera preso! Logo de saída procuraria um bom emprego, ganharia bastante, seria da turma, do pessoal batuta e fugista do Bilhar Primavera e do Café Pernambuco.[...]
Se trabalhasse, faria o que lhe desse na cabeça, ficaria na rua, passaria a noite na pândega, voltaria para a casa de madrugada [...] Trabalho durante o dia ali no pesado, à noite quero gozar – argumentaria, e ninguém podia dizer nada que o argumento, vamos e venhamos, era de peso. (REBELO, 2010, p.24)
Nos anseios do jovem Jorge, ávido por liberdade, encena-se um olhar ideal acerca de seu futuro, que a personagem irá buscar com ânimo e coragem, seja para abandonar as regalias oferecidas pela família, mesmo que pagando o preço de um certo aprisionamento, seja para enfrentar as decisões e vontades do pai, que queria fazê-lo doutor.
Para Jorge, o trabalho é uma espécie de saída salvacionista e nele deposita todas as suas esperanças. Mostra-se, ainda, tanto como liberdade como possibilidade de pertencimento a uma sociedade aburguesada, como poderio econômico suficiente para desfrutar a vida como melhor lhe conviesse. Assim, começa a trabalhar para “Souza Almeida & Cia., negociantes em grosso (fumos, cachimbos, artigos para fumantes em geral), um sobradão na rua do Rosário” (REBELO, 2010, p. 12).
A porta de entrada para uma outra vida parece aberta para Jorge, uma vez que ingressa num mundo que crê poder dar-lhe dinheiro, dedica-se ostensivamente ao trabalho, é elogiado pelo patrão e dele tem a promessa da boa recompensa. Todavia, as expectativas da personagem são quebradas logo de início, impedindo-o de adentrar no universo da liberdade e do dinheiro tão sonhados quando recebe um mísero salário, quase insuficiente para suas despesas básicas com alimentação e transporte: “Mas qual!... Foi uma desilusão! Cento e vinte mil-reis só” (REBELO, 2010, p.12).
Vê-se, portanto, na desilusão de Jorge, a condição dessa classe a que pertence a personagem, que Mário de Andrade (1976) diria intermediária, nem burguesa nem proletária, e que Augusto dos Santos Abranches definiria como “uma espécie de pequena burguesia [...] amorfa e vazia, espécie de tabuleiro de ligação com as massas do povo (que despreza), em recado da grande burguesia que serve (e inveja)” (1958, p.18).
Tanto Jorge quanto seu pai pretendem galgar degraus na escala social, seja pelo estudo (pai), seja pelo trabalho (Jorge). No entanto, a opção feita pela personagem revela a falência de seu projeto, uma vez que a ela é vedada a passagem para o outro nível social e econômico, mesmo com todo o empenho demonstrado. Nesse sentido, o movimento observado em “Oscarina” em relação à busca de ascensão parece confirmar o comentário de Abranches (1958) acerca dessa “pequena burguesia” presente na ficção de Marques Rebelo, ou seja,
O de existir entre a burguesia propriamente dita e as classes populares, não sendo admitida pela primeira e não aceitando a segunda. Dum lado está o plano que a sobreleva e onde lhe impedem a entrada; do outro está a camada que explora e com que não se quer misturar – e cuja atividade a assusta como perigo iminente. (1958, p. 23)
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A frustração de Jorge e a certeza de não ser possível o que almeja pelo viés do trabalho, faz nele aflorar um lado malandro, já latente anteriormente e que se manifesta de forma mais aguda ao tomar consciência da inutilidade da força dispensada ao trabalho. Se, de início, tudo fazia para agradar o patrão, atendendo-o pronta e eficazmente, como uma “besta de carga” (p.12), depois do inexpressivo salário recebido abandona todo e qualquer esforço e executa suas tarefas com o mais absoluto descaso:
Uma beleza o tal de trabalho dali por diante. Calma no Brasil! Nada de fazer força inutilmente, nada de canseiras sem proveito. Bastara a experiência que tivera. Agora era tratar de não ser mais tolo. Uma pacova que ele fosse aos bancos correndo, afobado como ia... Pressa para quê, se não ia tirar o pai da forca? (REBELO, 2010, p. 26)
A experiência negativa de Jorge com relação àquilo que esperava conseguir faz com que o rapaz, até então trilhando o mundo da ordem, na busca da liberdade e do dinheiro por meio do trabalho honesto e dedicado, direcione-se pouco a pouco para o caminho oposto, isto é, o da desordem. Tal mudança pode ser observada, primeiro, no modo como passa então a encarar o trabalho após a desilusão com o pagamento; segundo, na opção por um meio mais fácil de conseguir dinheiro e a liberdade tão sonhada, assentando praça, cujo ambiente do quartel vai se descortinando como um cotidiano pouco sério, repleto de picuinhas e futilidades, não condizentes com o real sentido da instituição militar; terceiro, no rapaz violento e amante do álcool que se torna, em especial depois que conhece Oscarina, vindo, inclusive, a trocar de nome, passando a atender por Gilabert.
No percurso da personagem, portanto, está construído um movimento decrescente a forçá-la “para baixo na pirâmide social” (FRUNGILLO, 2007, p.125). Longe de termos em “Oscarina” um trânsito da personagem entre os polos da ordem e da desordem, como Candido observa na obra de Manuel Antônio de Almeida, Memórias de um sargento de milícias, no conto de Rebelo esse movimento dialético não se perfaz. O comentário de Renato Cordeiro Gomes, ainda que sobre Marafa, do mesmo autor, parece esclarecedor quanto ao conto em questão:
Do meu ponto de vista, essa dicotomia [ordem/desordem] é antes contraste que oposição. Cada um dos termos comanda dois veios descontínuos, dois espaços separados que não se encontram. São paralelas alternadas e simétricas com sinais trocados. Não há uma verdadeira dialética. A estrutura não sofre a tensão das duas linhas e dilui a dramaticidade entre elas. A ordem rege os que vivem segundo normas estabelecidas que separam os padrões morais de certo/errado, lícito/ilícito, moral/imoral. Em Marafa, é o mundo das famílias humildes arraigadas com bastante rigidez aos valores pequeno-burgueses e cristãos. A desordem rege os que vivem em oposição ou pelo menos integração duvidosa àquelas normas estabelecidas. [...] Ordem e desordem não interagem neste universo romanesco rebeliano. As duas esferas não se alteram. Permanecem os contrastes. (2008, p.140)
O comentário de Renato Cordeiro Gomes pode ser transposto sem dificuldade também para o universo de “Oscarina”. De igual maneira, no conto de Rebelo não há interação entre o polos contrastivos. De um lado, da ordem, encontramos a família de Jorge, simples, mas obediente aos valores sociais e morais postos, como o estudo, o trabalho e a honestidade; também Jorge, quando opta por buscar a liberdade por um viés lícito, o trabalho, e mesmo quando, de início, pensa no serviço militar como forma de conseguir um emprego melhor, que viabilizasse seu casamento com Zita; e a família de Zita, gente
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trabalhadora e de bem. Do outro lado, da desordem, constituindo os pares dicotômicos, encontra-se a personagem principal, sobretudo depois de assentar praça, já não mais Jorge, mas Gilabert, e também Oscarina.
A troca de nome é significativa na medida em que representa a mudança de postura, de lugar da personagem. Enquanto ainda pertencente ao universo da ordem, temos Jorge morador do subúrbio, filho de um casal simples – mas não miserável –, de início um futuro doutor e depois um comerciário, que nutre um amor puro e romântico por Zita, antiga amiguinha de infância, com quem pretende se casar. Ao adentrar a esfera da desordem, torna-se Gilabert, sargento rusguento, briguento e afeito ao álcool. Conhece Oscarina, cabrocha livre e dona de si, com quem passa a viver um amor sensual, apaixonado e regado a violência em um barraco alugado no morro.
Desse modo, tem-se em “Oscarina” uma construção de pares dicotômicos, Jorge/Gilabert, subúrbio/morro, estudo e trabalho/sargento bêbado, Zita/Oscarina, amor puro e romântico/amor sensual e violento. De fato, no conto, não há trânsito, dialética entre esses pares, mas a permanência do contraste, sendo que à personagem central, Jorge, é reservado um futuro, ao que parece, degradante. Embora Gilabert alcance o posto de sargento, passando a ganhar mais, “dinheiro pra burro”, como afirma, a promoção financeira não implica crescimento moral e, ao final da narrativa, a personagem é apresentada no vício do álcool – os pileques agora são na própria casa, ao lado da amásia, causando barulho e confusão com os vizinhos. Há, portanto, um processo de queda da personagem na aproximação e incorporação do universo da desordem.
O outro conto aqui abordado, “Onofre, o Terrível, ou a sede de justiça”, também de “Oscarina”, apresenta o sonho de mudança de Onofre, cujo dia-a-dia resume-se no trabalho de agente sanitário, responsável pela exterminação do mosquito causador da febre amarela, dentre outras doenças endêmicas que então assustavam a população carioca, sendo uma das principais causas de morte na cidade.2
Se em “Oscarina” está em cena, como já dito, o cotidiano de uma classe intermediária, nem burguesa, nem proletária, em “Onofre” aparece com muito mais nitidez a condição dos menos privilegiados na escala social, sendo Onofre um de seus representantes. Modestíssimo funcionário da Saúde pública, um mata-mosquito “magro, escanifrado”, de “cabelo rebelde e duro” (p. 152), domado à custa de muita brilhantina, Onofre Pereira da Silva,3 em um momento do trabalho diário, ao usar o poderoso Estegomiol para matar as larvas do mosquito encontradas em uma poça d’água, tem uma espécie de revelação. Ao se mirar na poça, esta o reflete com uma imagem totalmente invertida. Ao contrário do insignificante Onofre, surge um homem poderoso, espécie de Deus:
A poça era pequena para refleti-lo, mas pouco importava, pois estava se vendo perfeitamente. Via-se grande, enorme, portentoso, pela grandeza da sua profissão. Era o nobre e eloqüente. Não era mais o Onofre Pereira da Silva, o magro, escanifrado Onofre, mas qualquer coisa
2 O Rio de Janeiro, no início do século XX, era uma cidade temida, inclusive pelos estrangeiros, pois representava uma ameaça em potencial em razão de várias doenças endêmicas, como a varíola, a febre amarela e a dengue, por exemplo, que se disseminavam facilmente entre a população, matando de forma alarmante, em grande parte devido à falta de saneamento e de serviço de saúde.
3O sobrenome de Onofre, Pereira da Silva, aponta para um nome comum, sem importância, assim como de fato é a personagem. Opõe-se aos pomposos nomes dos ricaços que vê mortos em seu delírio: Castro, Alvim, Albuquerque.
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de divino, o onipotente sob a farda cáqui com o distintivo da Saúde pública – sentinela avançada da saúde da população. (REBELO, 2010, p. 152)
A imagem grandiosa que a personagem vê de si mesma refletida na água transforma-se na expressão concreta do valor que acredita ter seu trabalho. Como protetor da vida e exterminador da morte (o mosquito), cresce em proporções gigantescas e totalmente opostas à do Onofre real a imagem do Onofre refletido.
Essa espécie de sonho em que se envolve a personagem abre caminho não apenas para a compreensão da importância de seu trabalho, mas também para sua condição social marginal. Embora seja o agente direto no cuidado com a vida das pessoas, um tipo de anjo protetor, ao qual todos recorrem, Onofre não é recompensado minimamente: “Sucumbiu logo, porém, com a lembrança de seu salário, miserável, irrisório. Ficou mais miserável ainda ao confrontá-lo com a grandeza da sua ação, ao sol, à chuva, sem domingos, sem feriados, sem hora, sem nada” (REBELO, 2010, p. 153).
O desencanto provindo da não recompensa merecida dialoga com “Oscarina”, pois Jorge também, mesmo empenhado e esforçado no trabalho para o Souza Almeida & Cia, não recebe um salário digno. Em “Onofre, o Terrível”, os contrastes ter/não ter, forte/fraco, privilegiado/desprivilegiado tornam-se ainda mais agudos por meio do olhar crítico que a personagem canaliza para as injustiças e diferenças gritantes de sua realidade:
Enquanto isso, quanto ganhava o diretor? Sim, senhores, quanto ganhava? Contos! Muitos contos! Quantos? Nem sabia! Um mundo! E para quê? – o sorriso superior dançou-lhe nos lábios escarninhos. – Para assinar papéis... Defender uma cidade, aniquilar a morte, destruir o estegomia, assinando papéis... Ridículo!... E contos de réis pelos rabiscos que ninguém entendia. Ele sim, ele que ganhava uma ninharia defendia, afastava o perigo, dominava focos, ele o herói obscuro, o ignorado, o mal pago. Nos ombros dele, Onofre, é que descansava um milhão de almas. (REBELO, 2010, p. 153-154)
Na revelação que o momento banal – olhar-se na poça repleta de larvas do mosquito – proporciona à personagem está a consciência infeliz da sociedade desigual e injusta da qual faz parte como grupo explorado. De um lado o poder, ou seja, o diretor, o dinheiro e pouco trabalho. De outro, os oprimidos, como ele, Onofre, a sobreviver com um salário miserável e a trabalhar incansavelmente. Ilumina-se para Onofre uma cruel realidade de opressão em que muitos, “os humildes, os fracos, os desprotegidos, em resumo, os pobres” (REBELO, 2010, p.154), trabalham para que os ricos, poucos, desfrutem do esforço do outro.
Em um primeiro momento, a consciência da opressão desperta o até então franzino e insignificante Onofre para a revolta, para a busca de justiça. Na sua atitude revoltada, coroada por um idealismo revolucionário, a personagem acredita ser o portador da chave capaz de alterar a condição dos muitos oprimidos e marginalizados como ele. Sendo, como afirma, aquele que mata a própria morte (o mosquito), vê em suas mãos o poder da mudança. Basta um gesto simples, que não mais aplique o estegomiol às larvas, deixando que proliferem , deixando que levem “a morte em suas asas, nos seus ferrões, pelas casas dos ricos, para ceifar, para ceifar” (REBELO, 2010, p.155).
No delírio de Onofre, o mundo nobre ceifado pelos mosquitos transforma-se num ambiente sombrio e fantasmagórico, uma espécie de grande cemitério a expor escancaradamente os alicerces, agora sem força, da opressão:
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E ele já via os mesmos urubus voando, a grasnar, sobre a carniça abandonada nas ruas silenciosas, ao peso da desgraça que devastava os lares opulentos. Já via os urubus molengos disputarem a bicada os corpos insepultos, aqui o Castro e o Teixeira – o da loja de ferragens –, ali o doutor Medeiros (osso só!) e o deputado Alvim, mais acolá o Valfredo, um ricaço que ele nem sabia onde ganhava tanto dinheiro, mais à frente o Viçosa, o doutor Stênio, o major Albuquerque, em suma, todos os graúdos que ele conhecia. (REBELO, 2010, p. 155)
Das cinzas desse mundo destruído, como que devastado por uma guerra impiedosa, Onofre vê a concretização da revelação proporcionada por um ato seu, com a tomada de poder pelos pobres e oprimidos:4
Aí acabaria a pobreza. Os pobres desceriam da Babilônia, do Pinto, da ladeira do Leme, para invadir as casas. Desceriam como em procissões, vagarosas, quatro a quatro, levando estandartes, imagens de santos, palmas, louvando Deus nas alturas, soltando foguetes de cinco bombas, cantando loas a são Benedito. (REBELO, 2010, p. 155)
No trecho citado, é nítida a imagem da cidade bipartida. De um lado, o espaço reservado aos grupos mais abastados, formado por comerciantes, doutores, deputados, majores, como a Urca, por exemplo; de outro, o local onde se aglomeram os pobres e marginalizados, os morros da Babilônia e do Pinto e o Leme.5
A fantasia revolucionária de Onofre, assim, aponta para o desejo de uma sociedade igualitária, cujos menos favorecidos passariam a ocupar os espaços antes a eles barrados.
No entanto, no conto de Marques Rebelo não nos encontramos diante de qualquer idealismo romântico. Assim, da mesma forma que o sonho revolucionário de Onofre cresce em proporções grandiosas e parece de fato encontrar o caminho para a liberdade, ele rapidamente é desfeito, ao ser desmascarado pela fragilidade da saída salvacionista encontrada pela personagem, pois os mosquitos não escolhem a vítima e matariam tanto o rico quanto o pobre. O sonho se transforma, portanto, em pesadelo.
Fracassado o plano, Onofre é retirado da espécie de transe em que se encontra pela voz do chefe, que o chama à realidade. Nesta, desaparece qualquer heroísmo, qualquer ato grandioso, qualquer atitude revolucionária, qualquer sentimento de vingança coletiva. Onofre continua a ser apenas um Pereira da Silva, um mata mosquito magro e escanifrado,
4 Nesse momento, o conto parece fazer referência a uma espécie de utopia comunista, à tomada de poder dos menos privilegiados e oprimidos na construção de uma sociedade igualitária, sem desigualdades. O texto de Marques Rebelo, no entanto, numa visão bastante crítica, e até mesmo pessimista, acaba por revelar a falência desse projeto.
5 Durante a chamada Belle Époque carioca (final do século XIX e início do século XX), sobretudo a partir das reformas empreendidas pelo prefeito Pereira Passos, conhecida como “bota abaixo” e que tinha por objetivo modernizar e “civilizar” o Rio de Janeiro, no sentido de construir, em terras tropicais, uma cidade semelhante a Paris, então símbolo de requinte e modernidade, a população pobre, negra e mulata que então habitava o centro da cidade, não raro em cortiços ou em casarões antigos transformados em tal, foi literalmente expulsa da região central – espaço a ser reconstruído e que precisava ser limpo de tudo que pudesse maculá-lo, como “esmoleres, pedintes, indigentes, ébrios, prostitutas e quaisquer grupos marginais”, como bem mostra Nicolau Sevcenko em Literatura como missão (2003) – e abandonada à própria sorte, sendo empurrada para áreas mais distantes, como os subúrbios e os morros.
No conto, a população que pretende ocupar o espaço dos ricos vem dos morros, Babilônia e Pinto, e do Leme, trazendo não apenas a sua presença física, mas seus costumes e tradições, que juntos com ela foram também expulsos por significarem atraso e mau gosto frente à nova sociedade, em moldes europeus, que se desejava construir.
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a comer uma marmita fria sentado na calçada, enquanto o chefe, diferentemente, almoça em uma casa de pasto. Na sua dura realidade cotidiana, os conflitos permanecem e qualquer sonho de mudança é logo desfeito: “Então a brisa do mar veio mais forte e enxotou o farrapinho de sonho que teimava” (REBELO, 2010, p. 158).
Ao final do conto, é possível ver no título uma grande ironia. O epíteto, o Terrível, dado a Onofre, é uma farsa, pois só se sustenta durante o sonho da personagem e enquanto acredita na perfeição de seu plano e no poder que a sua profissão lhe confere. Mortas essas verdades, Onofre não passa de um pobre diabo, obediente às normas que lhe são impostas. A sua desordem revolucionária não passa de fantasia, ou grande pesadelo, incapaz de alterar o estado das coisas. Desse modo, no percrustar o cotidiano do homem simples, ora mais, ora menos desencantado, como nos dois contos abordados, Marques Rebelo encontra um dos caminhos possíveis de legibilidade do urbano, espelhado, com grande força dramática, nas pequenas tragédias e misérias do dia-a-dia. O escritor consegue, assim, como afirma Zamboni, mostrar-se como um “auscultador atento da vida, com agudo senso das contradições humanas” (1994, p.116).
REFERÊNCIAS
ABRANCHES, Augusto dos Santos. Um retrato de Marques Rebelo. Rio de Janeiro: Dep. de Imprensa Nacional, 1958.
ANDRADE, Mário de. O empalhador de passarinho. 4 ed. Belo Horizonte:Itatiaia, 2002.
______. Táxi e crônicas no Diário Nacional. São Paulo:Duas Cidades, 1976.
GOMES, Renato Cordeiro. Todas as cidades, a cidade. Rio de Janeiro:Rocco, 2008.
FRUNGILLO, Mário Luiz. O Rio é o mundo: sobre Marques Rebelo no seu centenário. Revista Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, n. 20-21, jan./dez. 2007.
REBELO, Marques. Contos reunidos. 3 ed. Rio de Janeiro:José Olympio, 2010.
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão. 2 ed. São Paulo:Companhia das Letras, 2003.
ZAMBONI, José Carlos. Madalena & Pinga-Fogo. 1994. Tese (Doutorado em Teoria da Literatura e Literatura Comparada) - Faculdade de Ciências e Letras, UNESP, Assis.

José Maria Dias da Cruz : Cézanne. Sérgio Millit, Espinosa e Poussin




O impasse

Quando Cézanne afirmou que entre o objeto e o pintor se interpõe um plano, a atmosfera deu inicio a uma nova arte. Uma crise que começa em fins do século XIX se instala. Ela resulta no início da industrialização com a consequente luta de classes. Escritores como Victor Hugo e Charles Dickens a denunciam.
A partir de Cézanne, quando o espaço plástico deixou de acontecer lá, além do suporte, como preconizava Alberti, para acontecer aqui, coincidindo com esse no qual nos orientamos. Daí Duchamp ter colocado nele sua obra A fonte. A arte passou a realizar-se nesse espaço imediato.
Como pintor esses são meus pontos de referência. Estudiosos de outras disciplinas poderão se aprofundar nessas questões.
Interessante é relermos o livro de Sérgio Millit, A marginalidade da arte moderna. O que vemos hoje é o agravamento dessa crise, daí me perguntar: a arte e a pintura contemporâneas estão vivendo um impasse? Creio que sim. Praticamente um século de ocupação desse espaço imediato está se esvaziando e por consequência uma coisa nova se faz urgente.
A cor abstrata substantiva e concreta adjetiva, Espinosa e Poussin
Digo que a cor abstrata é uma ideia e que subsiste por si mesma e que a cor concreta é adjetiva, que é um par, contém em si sua oposta, que se rompe por ação dessa oposta, e cuja condição é ser no colorido. Digo mais, que o pintor lida com as duas. Acredito que com esses conceitos pelos quais descartamos a ideia de cor definida em função do espectro e também considerando só a percepção, podemos entender Cézanne quando ele afirma que a luz não existe para o pintor. Com esses conceitos de cor podemos distinguir o que seja um colorido e um desenho colorido. Ou seja, podemos entender o que seja um colorido. Este tem sua lógica própria, e não mais somente diversas cores em uma superfície seguindo um determinado princípio de harmonia.
Certamente esses conceitos podem nos levar hábitos estéticos que somente com o tempo farão algum sentido.
Assim podemos nos aproximar de Espinosa e entender Cézanne quando ele diz que na natureza tudo é colorido e que a arte é uma religião.
Para Espinosa Deus não é mais um criador, mas a própria natureza como causa de si mesma e, por consequência, um produtor. Para Espinosa, Deus (ou a natureza), tem toda a liberdade, nada o constrange. Já o homem não tem toda essa liberdade, pois o que lhe é exterior o constrange.
Considerando a epistemologia de Espinosa podemos de uma forma bem simplificada dizer que primeiro o homem percebe o objeto e em seguida usa de sua razão para a compreensão desse objeto. Mas com isso não ultrapassa o constrangimento, ou seja, não produz nem cria, e por consequência, não consegue ser livre. Para tal Espinosa nos fala de uma terceira etapa. Nesta o homem pode, por uma sabedoria adquirida, criar, e neste ato se aproximar da natureza e entender melhor a liberdade. O filósofo fala de uma criação, ou conhecimento por intuição. Agora podemos fazer uma referência a Poussin, que se refere a uma percepção considerando o simples aspecto do objeto, e um olhar prospectivo que considera o saber do olho que é bem mais que uma simples percepção.






Artista prolífico e diplomata ativo, Rubens viajou bastante, o que também o tornou amicíssimo de muitos governantes europeus – dois dos quais o armaram cavaleiro.
Rubens era igualmente um pintor muito culto, incluindo frequentemente referências clássicas nas suas pinturas alegóricas. Acredita-se que esta tela de 1625 representa os quatro continentes da África, da Ásia, da Europa e da América.
Os vasos caídos são atributos dos antigos deuses que habitavam os rios dos países – os deuses são vistos a descansar debaixo de uma proteção, servidos por mulheres nuas. Uma tigresa representa o rio Tigre enquanto vários putti brincam com um crocodilo, que é o símbolo do rio Nilo.
Obviamente que o elemento-chave desta composição de Rubens são os continentes. Os quatro continentes eram temas populares entre os artistas barrocos, como por exemplo o fresco que Tiepolo pintou no teto, em 1750, intitulado “Apolo e os continentes”.
Os jesuítas também gostavam do tema, pois isso era altamente benéfico para a sua intenção de espalhar a fé católica. Os continentes era muitas vezes personificados como deuses dos rios e podem aparecer como indígenas ou reclinados como animais onde jorra a água - uma cabeça velada, por exemplo, indica que a fonte do rio era desconhecida.
África pode usar coral e aparecer junto de uma esfinge, um leão ou um elefante. As Américas podem vestir-se como caçadores com um elmo emplumado, com moedas que representam os seus ricos recursos naturais. A Ásia pode surgir com um camelo, um rinoceronte, um elefante ou palmeiras exóticas; a Europa pode ser um touro ou um cavalo, pode ter na mão uma cornucópia ou usar a coroa da supremacia ou então pode aparecer rodeada de figuras representando as artes.


domingo, 19 de fevereiro de 2017

O cinza sempiterno e o serpenteamento e Henry Atlan

O cinza sempiterno e o serpenteamento
Amanhece, o sol se esclarece
Armando Freitas Filho
Inicío este texto com duas citações de Paul Klee que se completam: “O pintor torna visível.” “O crepúsculo incerto do centro.”
Ao rompermos um tom sua tonalidade vai mudando em direção a sua oposta, mas o percurso é interrompido. Assim não há como tornar visíveis o cinza sempiterno e o serpenteamento que dele decorre no sentido de animar o espaço plástico antes de se tornarem fenômenos cromáticos porque se situam nessa área de não visibilidade. Tornam-se visíveis, e fenômenos, apenas quando se manifestarem na natureza, mas tanto um quanto outro se nos mostram como um outros níveis de realidade. Como pós ou pré-fenômenos nos são interditados. Isto não nos impede, entretanto, de nosso pensamento construir a lógica que os regem
e de até permitir uma figuração esquemática. Aproximamos, assim, da lógica do terveiro incluído. Seguindo o pensamento de Wittgenstein diremos também q essa lógica não esclarece o enigma.
Podemos agora afirmar que a visibilidade não é permanente, mas um processo de visibilidade e não visibilidade, uma e outra com suas lógicas próprias e interdependentes que criam uma terceira lógica. Esta minha tomada de posição, acredito, confirma o que penso: a teoria antecedendo a experimentação como uma metodologia. E também permitindo outra percepção da arte conceitual. Antes do conceito e a realização, a lógica que rege a obra.
Para uma compreenção do que pretendo mostrar transcrevo aqui uma citação do Biólogo Henry Atlan retirada de seu livro, Entre o Cristal e a Fumaça, Editora Zahar, Rio de Janeiro.
[...] a organização dos seres vivos não é estática, nem tampouco um processo que se oponha a forças e desorganização. Mas antes um processo de desorganização permanente seguida de reorganização, com o aparecimento de propriedades novas, quando a desorganização pode ser suportada e não mata o sistema. Em outras palavras, a morte do sistema faz parte da vida, não apenas por sob a forma de uma potencialidade dialética, mas como uma parte intrínseca de seu funcionamento e sua evolução: sem perturbações ao acaso, sem desorganização, não há reorganização adaptativa ao novo; sem um processo de morte controlada, não há processo de vida.
José Maria Dias da Cruz – Florianópolis – Fevereiro de 2013

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

José Maria Dias da Cruz . Objeto assemblage 2017



Objeto assemblage 


José Maria Dias da Cruz


José Maria Dias da Cruz vórtice



José Maria Dias da Cruz . Coleção Gilberto Chateaubriand

Coleção Gilberto Chateaubriand

José Maria Dias da Cruz


José Maria Dia da Cruz . Maria sem vergonha

Maria sem vergonha

José Maria Dias da Cruz


José Maria Dias da Cruz