Os estudos cromáticos de Cézanne, sob o olhar atento de José Maria Dias da Cruz
- Cruz, José Maria Dias da. O cromatismo Cezanneano. Florianópolis: ed. do autor, 2010.
Cristina Pape
é quem vislumbra alguns dos questionamentos essenciais postos pelo
autor em 'O cromatismo cezanneano': 'Onde se encontra aquilo que não
sabemos explicar mas que podemos sentir e que os pintores sabem
procurar?' e chega à mesma conclusão que outros artistas, mesmo os que
não se debruçam no colorido das telas: 'Existe alguma coisa que vemos
mas não percebemos claramente e que transforma a realidade, sempre'. O
livro mais recente de José Maria Dias da Cruz, como consta da última
página, foi realizado 'pela Premiação do Edital Elisabete Anderle de
Estímulo a Cultura', o que desde já denota a sua grande relevância para o
reduto artístico.
José Maria Dias da Cruz, um pintor
renomado que escolheu a ilha-maravilha para fixar seu ateliê, é um
estudioso da cor, ou, aliás, estuda o que gera a cor, o que existe antes
da cor para que possamos vê-la, a base que está oculta por trás de toda
cor, o miolo, a matriz do que podemos perceber com essa ferramenta
espetacular e única: os olhos. Já publicou 'A cor e o cinza' e 'Interiores de reflexão' e tem quadros espalhados pelos melhores museus e galerias do Brasil.
Em 'O cromatismo cezanneano', sua percepção primeira é a de que, como Paul Cézanne
intuía, a cor existe a partir de algo impalpável e indefinido que lhe é
subjacente, e pode ser reduzida à pura matemática. Intuía, mais, que a
cor varia especificamente com a precisão de cada uma de nossas
ferramentas. De fato. A cor pode variar com a luz (brilho), com a
distância de observação (a atmosfera altera a coloração), com o tempo de
observação, com o grau de defeito da 'ferramenta', bem como com as
demais cores constantes e próximas (contraste), e, óbvio, com a mistura
pigmentar da paleta. Os exercícios de trompe l'oeil sugeridos pelo autor
e as incríveis xilogravuras de Escher (vide site oficial) não mentem.
José Maria, seguindo as pistas de
Cézanne e outros pintores que o estudaram, afirma que 'o cinza
onipresente está em um local indeterminado'. E se põe a pensar sobre
como a pintura e outras artes são feitas de contrastes, de
inter-relacionamentos, rompimentos e escolhas. Se pintar é contrastar,
sendo a pintura uma das Belas Artes, até que ponto escrever também não é
um exercício de contrastar, dialogar, experimentar limites e
influências?
Não só músicas e poemas podem ser
enigmáticos, mas a percepção das cores também. Como a pesquisa de
psicólogos gestálticos e a conclusão de Gauguin mostram, a cor também é
um enigma, eis que é paradoxal, relativa, nunca absoluta e única:
refere-se mais à percepção do indivíduo, do que a si mesma.
Se a cor não é absoluta e se, ainda
mais incrivelmente, pode ser dividida em sub-tons até o infinito - ou
até o cinza sempiterno -, é de se perguntar: você confia no que vê? Com
esses e outros questionamentos, José Maria sai da pintura, atravessa os
limites da tela, e vai buscar o verdadeiro móvel da Arte.
A Arte, além de ser intangível, é
também infinita na medida em que a última pincelada (assim como a última
correção de um poema), na verdade só existe como gesto. Apesar de o
pintor dar a sua 'última pincelada', a tela (o poema) continua mudando,
seja conforme a interpretação de seus espectadores, seja como produto de
um pensamento que pode se relacionar e se atualizar de acordo com novos
paradigmas de reflexão.
Após estudar a estrutura cromática da última obra de Cézanne, 'A cabana do Jordão',
José Maria aprofunda a discussão acerca da confiança exagerada que
depositamos na visão, muito mais do que na intuição e na percepção,
essas duas domínios inequívocos da Arte. É de se levar em conta a
limitação do órgão (o olho), a diferença da cor gerada pela luz e da cor
gerada pela pigmentação, com as pós-imagens e serpenteamentos, com o
espaço, o campo visual, a perspectiva, a impossibilidade de se
reproduzir fielmente um colorido, sob pena de ele distanciar-se da
característica da imagem natural.
O artista tem uma sensibilidade
especial, já diria Cézanne e agora repete José Maria, seu saudoso
discípulo. A pintura, para ser Arte, não é deve ser apenas uma
reprodução fidedigna do instante: para isso já existem as câmeras,
filmadoras e telefones celulares. A pintura, assim como as outras artes,
e para continuar ela mesma uma Arte, deve ser uma provocação: de ânimos
e reflexões, de sentimentos e atitudes. Assim é que José Maria sai da
pintura e vai para a literatura, poesia e filosofia, tentando, através
de outros caminhos, compreender a própria fenomenologia da arte.
Como ele intui, para descobrir a
pintura é preciso procurar o que vem antes, o que precede à pintura, o
que se quer dizer ou mostrar através dela, o que antes eleva o braço do
pintor à tela. É preciso, pois, investigar o místico de unicidade que
cada tela encerra, a criação ímpar do que não há no mundo (pois imitar o
que há é permitir a morte dupla do objeto) e que, sendo criado,
irradiará eternamente em graus, cores e níveis distintos.
Ao fim do livro, José Maria nos presenteia, em papel couché, com suas assemblages (estudos anteriores aos quadros) e as telas de Cézanne, Degas e Chardin, estudadas em sua obra.
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