DA COR
NA PINTURA: O Ponto de passagem
Introdução por EDGAR LYRA
Da Cor na Pintura é, na realidade, uma
compilação organizada de notas e reflexões. Durante mais ou menos 20 anos
(1975-1995), o conjunto foi crescendo, se revendo e se depurando, não tendo
sido pensado a partir de um plano estrutural, como obra literária ou
filosófica. Suas primeiras formalizações, inclusive, funcionaram muito mais
como mediação de discussões com interlocutores próximos e específicos. Algumas
cópias preliminares foram distribuídas em diferentes ocasiões, com sucessivos
acréscimos e revisões, concomitantes à evolução do pensamento do pintor. Por
ocasião da publicação deste livro, o texto recebeu novas e substanciais
modificações e ganhou também esta introdução. Muito se fez na direção de uma
maior clareza, considerando um público menos específico, mas sua estrutura
estranha, não linear, muito mais afeita ao discurso plástico que ao literário,
tem, como veremos, sua razão de ser e não poderia mesmo ser profundamente
alterada sem que lhe fossem subtraídas
autenticidade e valor
historiográfico. Assim sendo, o presente texto mantém sua densidade e
complexidade características, mas perdeu muito do hermetismo contido nas
compilações anteriores.
Uma leitura integral, que
permita a visualização geral do conteúdo, revelará, certamente, que a referida
complexidade está atrelada a uma espécie de código genético. O texto discute
principalmente a cor e considera, ao mesmo tempo, que um dos maiores obstáculos
impostos à renovação do pensamento cromático provém da incompatibilidade entre
as práticas conceituais e literárias e os fenômenos plásticos. Logo nas
"Notas Preliminares", estão transcritos Redon e Gauguin, colocando a
questão de formas diferentes. O tópico termina com um longo extrato do texto de
Paul Valery, Leonardo e os filósofos,
que contrapõe ao pensamento filosófico uma outra possibilidade de pensamento,
mais próxima dos pintores e mais distante das palavras e dos conceitos. Mais adiante, no item "Uma Questão
Essencialmente Plástica", o autor afirma: "A questão é
esssencialmente plástica, está além da explicação de algum fenômeno e portanto
as palavras são inúteis e soam até mesmo algumas vezes ridículas". Em
momentos distintos, a questão é recolocada, e por fim, está transcrita uma
citação extraída do livro Breve
introdução à fenomenologia das cores, de Mário Guerreiro, que escolhemos
aqui reproduzir: "Sim, pois onde estão as cores puras no mundo percebido?
Na verdade elas pertencem ao mundo nomeado, mas esse mundo nomeado reparte o
mundo percebido e o organiza de acordo com essa coisa enigmática que é o critério
de relevância implícito na língua estruturada. Parece que se abre um abismo
entre os domínios da percepção sensível e da linguagem, entre as qualidades
percebidas e as qualidades nomeadas, mas ficamos na dúvida se deveríamos
concordar com a idéia de que o percebido só se faz passando pelo crivo da
nomeação, como se a linguagem estivesse filtrando a percepção, canalizando-a no
sentido de só poder captar determinados padrões em detrimento de outros. Com
certeza, este é um problema que teria de ser colocado para uma fenomenologia da
percepção das cores, onde uma incursão no domínio da pintura seria, certamente,
bastante esclarecedora".
Não resta dúvida, portanto,
de que o projeto é complexo e, de fato, parece haver uma contradição importante
alojada nos alicerces da obra. O autor utiliza-se de um texto para repensar a
cor, e ao mesmo tempo confessa e considera a inadequação das palavras e mesmo
do "pensamento conceitual" para fazê-lo. Fala em contrapartida, de um
"pensamento plástico", que naturalmente não define, e abrimos as
aspas para também não nos determos aqui em diferenciá-los. Alguns colaboradores
sugeriram que fossem acrescentados diagramas e reproduções coloridas em
quantidade, como forma de contornar os limites da palavra, mas a maioria dos
fenômenos discutidos, considerados sincreticamente como exige o pensamento em
questão, não se deixa captar adequadamente pelas reproduções fotográficas. As
diferenças entre superfícies pintadas e cromos poderiam ser fatais e, em
edições posteriores sobretudo, estariam fora de controle. Restou ao autor
utilizá-las com parcimônia e manter-se preferencialmente nos limites do texto,
utilizando-se de citações, e de transcrições de outros textos e poemas.
Da Cor na Pintura é, em resumo, um livro
escrito por um pintor e tem duas frentes principais interligadas: a discussão
dos pensamentos crítico, plástico e cromático através dos tempos e a revisão
das principais questões da pintura e do desenho, consideradas a partir da
proposição de uma nova forma de pensar a cor. Há evidentemente, enorme esforço
para enunciar essa proposição na sua abrangência, fato concomitante com o que
foi posto até aqui e não é possível adiar a formulação de algumas perguntas
latentes. Pode-se indagar, por exemplo, se essa nova forma de pensar a cor não
se traduz claramente nos quadros do pintor. E também, com todas as dificuldades
consideradas, se o texto é capaz de
representar alguma contribuição real para pintores, connaisseurs, filósofos, críticos de arte e para públicos menos
restritos. Diante disso, é necessário reposicionar a questão, da forma para o
conteúdo, e considerar, independentemente de quão capiciosa possa se tornar a
leitura e de quão brilhantes ou falhas possam ter sido as soluções literárias
do autor, se essa nova forma de pensar a cor, centro geral da discussão, tem
consistência, se propõe realmente alguma renovação. Posto que não se trata de
literatura, a menos que em sua complexidade o texto contenha algo de muito
importante, a despeito da contradição assumida explicitamente pelo pintor, ele
realmente não se justificaria. É preciso pois, lê-lo com atenção. Pessoalmente,
arrisco dizer que o material nele contido é semente para muitíssimos
desdobramentos. A contradição não só não o interdita como, estranhamente,
parece fundar sua razão de ser.
* * *
José Maria tem uma obra
plástica quantitativa e qualitativamente significativa. Tem, além disso, atuado
como professor de pintura, trabalhando mais especificamente com a cor. Por
dentro dessas formas de externação, que incluem o texto em questão, existe
naturalmente um pensamento que se traduz e se constrói em cada uma delas,
segundo suas características e seus limites. Apesar de a relação entre arte e
pensamento estar sendo objeto de constantes discussões na atualidade, afastamos
da palavra pensamento o caráter de pura reflexão teórica com que freqüentemente
se veste e que configura uma redução inadequada, sobretudo aqui, onde se trata do pensamento
de um pintor. Escolhemos enxergar o livro dentro de um contexto mais amplo, que
é a obra do artista. No caso, não se poderia mesmo considerar um texto sobre
pintura, escrito por um pintor, passando completamente à margem de sua
realização plástica.
José Maria Dias da Cruz
nasceu no Rio de Janeiro, em 1935. Seus primeiros quadros abstratos, onde se
cristaliza e radicaliza a imersão na cor, datam de 1982/83. Antes disso, sua
trajetória pode ser melhor visualizada a partir de três fases. Um primeiro
período de desenvolvimento inclui os estudos com Jan Zach e Aldary Toledo, os
contatos com Flávio de Aquino e a freqüência ao atelier de Tomás Santa Rosa e,
ainda, posteriormente, o estudo na
França com Emílio Petorutti. O retorno ao Brasil se dá em 1958. No panorama
internacional, deslocava-se o eixo artístico de Paris para Nova York e no país,
gestava-se a ruptura entre concretos e neo-concretos. José Maria não consegue
expor os trabalhos que trouxe prontos de Paris e há um longo período em que o
artista abandona o projeto pictórico que esboçava e vai trabalhar como
diagramador do jornal Última Hora e
como projetista de formulários na Rede Ferroviária Federal, dedicando-se
bissextamente à realização de retratos. Em 1964, esquece por completo os
pincéis e prossegue trabalhando apenas na RFFSA. A segunda fase, nos anos de
1967-68, caracteriza-se curiosamente pela pintura dos chamados
"formulários", herança transmutada do trabalho burocrático. Essas
pequenas telas, em meio à um cenário de produção de arte com preocupações
político-sociais e de postulação da morte do quadro de cavalete, sintetizado
pela "Nova Objetividade Brasileira", não encontram evidentemente
espaço e sucede nova interrupção. Trabalha então em empregos diversos até 1970,
quando abre uma pequena gráfica, que iria funcionar até 1973. Nesse ano, retoma
o trabalho de forma definitiva, ingressando no período das "naturezas
mortas". Tinha então 38 anos.
Basta olhar para alguns
daqueles quadros, formulários ou naturezas mortas, para perceber que José Maria
se inclinava para o desenvolvimento de um trabalho de absoluta fidelidade à
pintura e principalmente a si mesmo, apesar de naqueles tempos os ventos da
vanguarda soprarem fortemente noutra direção. Pouco a pouco, após sua opção
definitiva e integral pela arte, foi se notabilizando como alguém que
"sabia pintar" e que conhecia profundamente a matéria. Lecionou no
Museu de Arte Moderna nos anos de 1983 a 1986 e, posteriormente, a partir de
1989, na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, onde permanece em atividade.
Os quadros das primeiras fases, apesar das interrupções, discutiram de maneira
abrangente e profunda, num discurso entrelaçado, o espaço, a forma, a
representação e o signo, o suporte e a cor, numa pletora de campos da qual esta
última foi pouco a pouco emergindo e se depurando como linha de articulação de
um pensamento sui-generis. A
proposição de José Maria não poderia, por isso, ocultar em sua gênesis um
desconhecimento da linguagem plástica nas suas vertentes menos afeitas ao colorido. Pelo contrário, além da pintura, o
autor conhece bem as outras manifestações históricas e contemporâneas das
chamadas artes visuais. A evolução do pensamento em questão é, portanto, coisa
orgânica e madura e a opção pelo abstracionismo, tal como o abordou, não foi
mais que a decisão de mergulhar mais fundo num universo que passara a ter,
inequivocamente, a cor como centro. Essa fase, que prossegue até hoje ( embora
haja um esboço de retomada das naturezas mortas, dentro de novas possibilidades
espaciais e cromáticas), dá nitidez a um panorama realmente original. Com
efeito, a obra pictórica de José Maria Dias da Cruz é de profunda
originalidade, e para justificar essa afirmação, será preciso abrir um grande
parêntese.
* * *
Há uma tendência natural em
traçar paralelos entre a fase abstrata do artista e as bases da arte
construtiva, sobretudo o concretismo, estabelecendo-se a aproximação pelo
geometrismo e o distanciamento pelo uso da cor e também pela relação com a
superfície do quadro. Essa tendência não constitui, a priori, nenhum equívoco mas é que permanecendo a vertente como
referência original, bem discutida e compreendida nos seus postulados pela
cultura plástica moderno-contemporânea e não havendo, paralelamente, crença na
validade de mergulho profundo na obra e no pensamento do artista, acaba
restando à José Maria o rótulo inevitável de desbobrador daquelas questões, com
maior ou menor coerência, clareza ou inteligência. Entendemos que apesar de o
artista conhecer muito bem os postulados do concretismo, em sua gênesis seu
trabalho passa bastante longe deles, pelo que não mantivemos aqui a referência.
Em respeito às considerações feitas, não procuramos também quaisquer outras
filiações históricas como ponto de partida para a análise, restando-nos, como
forma de justificar a afirmação de enorme originalidade feita anteriormente, o
risco de perfazer trilha de raciocínio mais primitiva.
Em linhas gerais, como
condição básica para a produção de obras acabadas, com um sentido claro de
unidade, cabe aos artistas plásticos, racional ou intuitivamente,
evidenciando-a ou livrando-se dela, decidir como lidar com a cor. Há muitas
maneiras de fazer isso e, ao longo da história, o problema foi tratado de
diferentes formas. Uma das possibilidades de análise lança mão do
triângulo forma-cor-matéria, proposto
por Herbert Read. Concretamente, os diversos elementos do discurso pictórico
habitam um desses três grandes campos e procura-se aqui situar a cor no
entrelaçamento que a pintura faz deles. Muito, muito freqüentemente,
configura-se a obtenção da unidade plástica pela sujeição da cor à forma,
através do ritmo e da proporção. Também muito comum, sobretudo
contemporaneamente, é a submersão da cor na matéria. Por aí podemos dizer que a
cor serve à realização do quadro como uma necessidade, quer dizer, que
participa, de maneira mais ou menos discreta, da construção de espaços e
discursos onde a forma e a matéria se revezam como protagonistas. Isso seria
regra não fossem os chamados coloristas, que configuram um terceiro primado,
fazendo incidir na cor grande parte da responsabilidade pela unidade do
conjunto plástico, lançando mão das chamadas harmonias cromáticas. Mas basta
passar a vista pelas grandes mostras de arte, nacionais e internacionais, para
constatar que esses coloristas rarearam muito na contemporaneidade. Há no texto
uma reflexão profunda e multifária a respeito da sujeição da cor à um modelo
conceitual que tem sua epítome no consagrado círculo iluminista de cores
primárias e secundárias mas, aqui, nos cabe um enfoque mais econômico. É
interessante notar, no caso, que se fale do colorido desta ou daquela tendência
estilística e, mais ainda, do colorido deste ou daquele pintor. Essa prática
aponta para uma identificação dos coloridos ou, pelo menos, para a
identificação de formas preferenciais de colorir, que se repetem através das
obras. Equivale dizer que há utilização
recorrente de tons ou, pelo menos, que se utilizam modos recorrentes de harmonização cromática. O fato
é que hoje, implicitamente dentro da cultura plástica e sobretudo em algumas
tendências críticas, tem-se que as possibilidades de harmonização que produzem
os coloridos são limitadas e conhecidas. Aceita-se que a cor seja utilizada
como recurso expressivo, simbólico ou como diversidade apropriável para outros
fins, mas colorir propriamente, ou seja, harmonizar pelas cores, tornou-se uma questão de sensibilidade e
técnica, a qual determinados artistas são naturalmente mais afeitos, outros
menos. Mesmo aqueles que colorem intuitivamente (se é que os há em estado
puro), não escapariam do campo coberto pelo atual conhecimento. E se não há invenção
plástica, colorir tornou-se desinteressante dentro da ótica de uma estética
contemporânea, que reifica a originalidade. Assim, o valor estético da obra
deve apoiar-se primordialmente em outras bases onde a invenção ainda seja
possível e, nessa fusão de circunstâncias históricas e estéticas, a cor não
poderia mesmo aflorar com maior força dentro da produção recente de arte. Há
naturalmente problemas com a reificação da originalidade e, sobretudo, com os
mecanismos fortemente conceituais que são usados para identificá-la,
chegando-se mesmo a postular, em alguns momentos, a morte da pintura. Embora
não possamos aqui aprofundar a discussão, isso não traz conseqüências graves
para o objetivo dessa reflexão. Aplicada sobre a obra de José Maria, essa cultura
plástica a transformaria em "coisa menor", ainda que respeitada por
alguns pela requintada artesania e pela
complexidade do bailado que "repisa" o chão conhecido. Mas o que
tentamos sustentar é justamente que a produção do pintor é original, ou seja,
que nela há, de fato, invenção plástica em colorir.
* * *
A fase abstrata do artista
pode ser identificada, evidentemente, pela presença destacada da cor. Embora,
diferentemente de outros artistas voltados para os fenômenos cromáticos (Joseph
Albers por exemplo), José Maria não proceda propriamente uma simplificação da
forma, tratada de forma bastante elaborada, a recorrência de soluções é sem dúvida formal e matérica, desenvolvidas
como base para liberar a representação da cor. Num rápido olhar, é possível
identificar os quadros pela repetição de certos esquemas formais e pelo
tratamento de pinceladas minúsculas e sistemáticas dado à matéria em algumas
áreas, mas é impossível reter os coloridos, realmente muito diferentes entre
si. Para usar a expressão corriqueira,
qual a paleta de José Maria? Dentro das concepções de espaço plástico vigentes,
é mesmo uma grande surpresa verificar como pode dar-se, em quadros tão pequenos, uma convivência
explícita de tons tão diversos, sem que haja rompimento da unidade do conjunto.
A contemplação de dois ou três trabalhos recentes basta para constatar o que se
diz. Os coloridos são realmente inusitados e, olhados com atenção, têm a
capacidade de colocar uma interrogação diante dos limites impostos, na prática
e na teoria, às possibilidades de harmonizar pela cor.
Ainda, pelo fato de que não
há obviamente em pintura a possibilidade de desvincular completamente a cor da
forma e da matéria, decorre que o aumento das possibilidades de articulação
cromática se dá, naturalmente, a partir de uma
renovação nas possibilidades de relação cor-forma e cor-matéria, ou
seja, a partir de uma revisão extensa na sintaxe pictórica. Na trajetória que parte dos
primeiros quadros abstratos, por exemplo, podemos verificar que cada vez mais a forma se afasta da figura
e se aproxima da constituição de secções
de espaços qualitativamente (e não quantitativamente) determinadas. Verifica-se,
portanto, a ocorrência de um trabalho radical, que aponta na direção de uma
forma própria de pensar a cor e, a partir do seu primado, o próprio espaço.
Por último, vale insistir que a obra não trata
a cor em sentido naturalista, expressivo ou simbólico, nem no sentido de uma
apropriação da mesma para a pura proposição de fenômenos ópticos. Como já foi
dito, também não se pode falar de um
construtivismo, no sentido formal do termo.
Podemos dizer, com alguma precisão, que José Maria tem uma atitude
ontológica com relação à cor. Ao conferir-lhe independência em relação ao nome
e rever a essência de suas relações com a forma e a matéria, ele busca a
articulação dos fenômenos cromáticos em monólogos e diálogos sutis, afirmando a
possibilidade de se ter, através da pintura, algumas traduções singulares do
espaço, do tempo, do devir e do ser, da vida e da morte. A representação de
pequenas e regulares pinceladas de tom ligeiramente acinzentado, sobre
determinada área de cor, para dar um exemplo, constitui uma alusão
absolutamente singular ao tempo. A saturação visual da cor, que se daria após
algum tempo de observação, é representada in
loco, segundo pinceladas intermitentes, criando certa espessura visual e
propondo plasticamente uma consciência espaço-temporal irredutível à qualquer
outro discurso. O artista, numa poética
existencialista, joga com o eterno e o temporário, com o ilimitado e o
discreto, usando a cor como ponte visível entre reinos. Vale aqui, transcrever
duas citações centrais contidas no texto:
"O espaço torna-se ilimitado. Mata-se o movimento. Intuímos um
tempo sempiterno. A tudo isso se opõe um tratamento em pinceladas resultantes
de um gesto repetido, um tempo cronológico como o tic-tac de um relógio ou,
para os que hão de vir, como a intermitência e o silêncio de um relógio
digital; a vida balizada entre nosso nascimento e morte e um espaço
limitado" e, "A cor abstrata é substantiva. A cor concreta é
adjetiva. E o pictórico não está num preciso ponto de equilíbrio entre as duas.
Pode estar, também, no sentimento das diversas distâncias entre elas...".
À luz dessas últimas
considerações, ganha inclusive bastante sentido o sub-título do livro -"O
Ponto de Passagem".
* * *
Cézanne, a quem o autor se
refere um número grande de vezes no texto, teria, a partir de suas observações
e reflexões a respeito da natureza, considerado há quase cem anos, uma nova
possibilidade para a cor e morreu
declarando ser um primitivo ante o caminho vislumbrado. Embora se possa
questionar a veracidade ou a exatidão de frases a ele atribuídas e saibamos da
veia poético-filosófica de Gasquet, teimamos em lançar mão do argumento, mesmo
porque uma frase como a que se segue, não poderia ter sido posta na boca de
mais ninguém. Teria ele dito: "...pois às vezes imagino as cores como
grandes entidades numênicas, como idéias vivas, como seres de razão pura, com
quem poderíamos comunicar-nos..."[1]
. Ou ainda, "A cor é o lugar onde o nosso cérebro e o universo se juntam"[2] . Contudo, por razões históricas provavelmente, o
extrato da obra de Cézanne que ainda hoje sobrenada é o formal/matérico, a ponte
para o cubismo, o que muito faz pensar.
Também, o radicalismo dos
quadros abstratos de José Maria, faz lembrar de Frenhofer, personagem de Balzac
em A obra prima ignorada, que comoveu
Cézanne até as lágrimas. "Frenhofer era um pintor que queria exprimir a
própria vida somente pelas cores e manteve oculta sua obra-prima. Quando morre,
seus amigos encontram apenas um caos de cores e linhas indefiníveis, uma
muralha de pintura", resume Merleau-Ponty em A dúvida de Cézanne. Devoto
da pintura como processo de produção de conhecimento, José Maria, através de
uma atitude menos romântica e de um método de trabalho austero, racional e
obstinado, consegue organizar sua obra a ponto de, em todos os sentidos,
sobreviver como pintor.
* * *
Antes de concluir, é preciso
fazer uma ressalva. É que havendo quadros, haverá sempre maneiras de vê-los,
extratos distintos possíveis a este ou aquele observador. Naturalmente, a
verdade deles jamais se resumirá à potência desta ou daquela interpretação, que
deverão sempre cumprir o papel de abrir e não de fechar. Portanto, frisamos que
a abordagem feita nesta introdução, por questões metodológicas, se voltou para
aquele extrato mais adjacente ao conteúdo do texto. Era perseguida, na análise da obra plástica,
a evidência de um pensamento original sobre a cor, na medida do seu interesse
simultâneo como conteúdo do texto. A julgar agora pelo que afirmamos poderem os
quadros atestar, esse pensamento propõe
indubitavelmente séria renovação e possui também admirável consistência. Embora
os trabalhos estejam espalhados por coleções particulares, não deve ser difícil
aos interessados olhá-los ou revê-los, tirando suas próprias conclusões, mesmo
porque o pintor encontra-se em atividade e não são tão raras as exposições.
Por fim, foi dito que Da Cor na Pintura tem duas frentes
principais interligadas: a discussão dos pensamentos crítico, plástico e
cromático através dos tempos e a revisão das principais questões da pintura e
do desenho a partir de uma nova forma de pensar a cor. Por outro lado, pelo
desenvolvimento do argumento geral desta introdução e, sobretudo, pela análise
da obra pictórica do artista, que tocou em muitos dos assuntos discutidos
amiúde no texto que se segue, já deve
ser possível ao leitor uma visão geral da sua forma e conteúdo. Por isso,
embora seja grande a tentação de continuar escrevendo e discutindo diretamente
alguns pontos mais instigantes e polêmicos do texto, tal a motivação que seu
conteúdo suscita, intuímos que, ao fazê-lo, acabaríamos por transformar a
presente introdução numa tese sobre um trabalho ainda não devidamente
apresentado ao público, o que não seria absolutamente pertinente. Pelo mesmo
motivo, optamos quase sempre por enunciar, preferentemente a arrazoar nossos
argumentos. A tarefa desta introdução estará justamente cumprida se lograr
despertar ou renovar no leitor o interesse pelo texto que se segue ou pela obra
do artista em geral. Concluímos, pois, alimentando a esperança de que as
questões tão singularmente levantadas, elaboradas e apresentadas por José Maria
Dias da Cruz, possam ser, para as pessoas interessadas, de grande proveito,
sobretudo nesse momento atual da pintura e do homem.
Teresópolis, maio de 1995.
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