sábado, 16 de março de 2013

Lígia Gasparoni Mangeon



Lígia Gasparoni Mangeon



Nesse quadro da Lígia há um ponto  central forte que enfatiza a estrutura subjacente do suporte com suas diagonais, e as linhas vertical e horizontal.  Ou seja, prevalece assim uma estrutura simétrica e estática. Mas no primeiro plano de percepção temos outra estrutura nada simétrica com seus sutis deslocamentos que enfraquecem aquele ponto central. Nota-se também que em torno desse ponto central os tons se rompem e assim perdem em intensidade. Nossa percepção atém-se para as massas cromáticas em torno desse ponto e, assim, vários outros pontos se manifestam simultaneamente. Como consequência nosso olho fica vagando pelo espaço plástico engendrado pela pintura. Tudo nesse trabalho de Lígia é contraste e o mais perceptível está nas diversas tonalidades de avermelhados e azulados. A incerteza instala-se.
E há poesia. Por isso transcrevo um poema de Michael Palmer:

À febre das línguas
o metron, olho vagando
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Ao zero de ruas e de janelas
um braço na geometria
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Aos circos de redes
no primeiro rasgo
margem de uma imagem
unidades de distância
entre olho e pálpebra

Ao enxame de mensageiros
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À tempestade de poeira fina
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Aos pilares e às trilhas receptoras
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Às estradas ocultas do disco
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Ao casco de um barco falante

segunda-feira, 4 de março de 2013

“Imagens Posteriores” (1) de Patrícia Gouvêa,

Um trilho posterior

by ciadefoto on March 4th, 2013
Este texto foi parte de uma conversa no lançamento do livro “Imagens Posteriores” (1) de Patrícia Gouvêa, no qual uma mesa dividida com o professor Ronaldo Entler e com a própria autora encaminhou uma reflexão livre, rápida, poética, do que propõe Patrícia nesta obra. O texto que segue desta fala é aqui publicado como registro afetivo deste momento. Vale a lembrança, o carinho aos amigos que lá estavam e uma breve homenagem à dedicação desta fotógrafa.

Sento em um trem imaginado que parte da estação que propõe André (2) e olho uma paisagem também em repouso. Estamos próximos de Yotala, na Bolívia, em tal trem que se desloca na velocidade de uma abstração. Entre a gente tem uma janela que cria a condição de por, eu e a paisagem, em movimento. De fato estou em repouso. A paisagem também é parada, montanhas há tempos assentadas. Mas na janela um movimento se concretiza. E, aqui, gostaria de falar sobre Fotografia.
Na estação que André propõe, permito-me romper com os trilhos convencionais, canônicos, da história da fotografia para estabelecer um outro trilho, por assim dizer, “posterior”. Neste paralelo, o embarque começa no Renascimento, pois é de lá que, em larga medida, começa-se o projeto da Fotografia, assim como o da modernidade, do capitalismo, ou seja, da cultura ocidental na qual estamos imergidos. O projeto de luz, científico, de ter em mãos o domínio da natureza é objetivo deste movimento humano que séculos à frente vem a se chamar de Renascimento. Pois bem, a máquina fotográfica herda do Renascimento a sua forma de apreender o mundo. Como percebemos, dentro a câmera é simulacro da perspectiva criada naquela época: uma representação realística da natureza pela via de um ponto de fuga que converge linhas paralelas. Tal tridimensionalidade nos ensinou a conceber um espaço representado que de tão natural nos parece o vivido.
Aqui começo o que seria um trilho canônico da história da fotografia: a invenção da perspectiva. Como disse certa vez o professor Ronaldo Entler , “a perspectiva é justamente a tentativa de dar dignidade à uma representação construída a partir de um ponto de vista humano. É também o desejo de extrair desse olhar a referência que estabiliza e hierarquiza todos os elementos da natureza a serem representados. Portanto, a perspectiva representa uma razão que se manifesta por meio dos sentidos”(3). Pois este trilho ganha extensão e percorre a Europa que inventou os dispositivos técnicos, o vidro translúcido, os aparelhos de observação náutica, os óculos e, com eles, o aumento da nossa autonomia de leitura e a afirmação da subjetividade. Como escreve a filósofa D. Gilda de Mello e Souza, “o emprego do vidro translúcido e a invenção das lentes, acelera a visualização progressiva do mundo; o hábito dos óculos amplia a jornada de trabalho e os anos de leitura, a utilização das lentes impulsionam o desenvolvimento decisivo da ciência moderna” (4).
Tempos, estações adiante, chegamos no século XVIII, o romântico, e aprendemos a nos sobrepor como indivíduos. Figuramos a ideia de gênio, um tal autor que tomaria posse de funções outrora divinas. Ainda neste trilho, partimos ao século XIX, de mãos atadas ao cientificismo, com a civilização européia expandida e iluminista por natureza. Reificamos o mundo. Fizemos dele objeto estático de nossa experiência e conhecimento. Neste meio, junto às máquinas, aos grandes deslocamentos, com trens e barcos reconfigurando uma nova percepção, inventamos, definitivamente, a fotografia. A partir daqui este trilho dará em um terminal que todos conhecemos e vivemos sobre um certo projeto de modernidade que pensou dominar a natureza tornando-a estática.
Como alternativa vamos para Yotala, pois lá André nos liberou da condição de tal passado, de tal trilho canônico. “Por que o passado nas fotos de Patrícia, cito André, é sempre muito mais real, muito mais espesso do que o presente, brasa que se apaga à medida que aquece” (5). Como tal, espesso, merece este trilho proposto como posterior, inaugural na Estação de Yotala. E é por este desvio que, me parece, nos transportam as fotografias de Patrícia.
No mesmo ponto em nossa história em que se começava o projeto Renascentista, Francis Bacon, filósofo inglês nascido em 1562, determinava o homem como ministro da natureza – minos de menos, ministro, aquele que é menor do que aquilo que administra, oposição à magistério, maior do que aquilo que administra, o mestre -, uma crítica à tendência renascentista de que o homem pode mais do que a própria natureza. Bacon pensa em um homem capaz de conhecer e administrar o mundo ao qual ele foi dado, não mais do que isso. Seguindo um raciocínio proposto pela filósofa Marilena Chauí em seu curso “Da técnica à tecnologia” (6), magistrado na Faculdade de Filosofia da USP em 2012, Bacon critica o projeto renascentista, condicionando o conhecimento humano à compreensão de que a natureza tem como essência o movimento.
Entre os quatro primeiros aforismos de Bacon, o primeiro diz: “o homem só pode o que os seus olhos constatarem e o que a sua mente puder pensar. Portanto, o que a experiência lhe ensinar e o que a teoria lhe comprovar”. O quarto aforismo, por sua vez, diz: ”no trabalho com a natureza, o homem não pode mais do que unir e apartar corpos. O restante, realiza-o a própria natureza, em si mesma”. O primeiro e o quarto aforismo, estabelecem limites para o homem, que pode conhecer a natureza ou, agir sobre a natureza. E em tal ação pode apenas unir ou apartar corpos.
Porém entre esses aforismos, o primeiro e o quarto, estão os dois aforismos mais conhecidos deste pensador. O aforismo segundo expressa que “nem a mão nua, nem o intelecto deixados a si mesmo, logram muito. Todos os feitos se cumprem com instrumentos e recursos auxiliares de que dependem em igual medida tanto o intelecto quanto as mãos. Assim como os instrumentos mecânicos regulam e ampliam os movimentos das mãos, os da mente aguçam o intelecto e o precaver”. Este segundo aforismo diz é que o homem encontra uma série de recursos auxiliares pelos quais pode ampliar o poder das mãos e ampliar o poder do intelecto. Considerando que o primeiro aforismo nos disse que o homem só pode o que os seus olhos constatarem e o que a sua mente puder pensar, portanto, o que a experiência lhe ensinar e o que a teoria lhe comprovar, o que o aforismo segundo diz é que esse poder da experiência, o poder das mãos, e esse poder do conhecimento, do intelecto, podem ser ampliados. Assim como os instrumentos ampliam o poder das mãos, podem aumentar o poder da mente ou do olhar.
O aforismo terceiro vai um pouco mais longe e diz: “saber e poder do homem coincidem. Uma vez que sendo a causa ignorada, frustra-se o efeito. Pois a natureza, não se vence senão quando se lhe obedece. E o que a contemplação apresenta-se como causa é a regra na prática”. Este aforismo que é sem dúvida o mais conhecido – que diz saber é poder – introduz a relação de causalidade, a exigência de que o conhecimento seja o conhecimento causal, e que poder sobre a natureza é possível na condição de se começar por obedecê-la.
Esses quatros aforismos nos possiblitam a afirmação que de que na natureza a única coisa que acontece é reunião e a separação de corpos. E isso significa que a natureza é movimento, no sentido que ela possui, por ela mesma, força para criar e mudar as coisas. Ou seja, a natureza cria e modifica as formas secretas que constituem a estrutura das coisas. Esse movimento criador e transformador das formas das coisas vem a significar que a natureza é vida. Natura significa aquilo que nasce ou aquilo que tem o poder de dar nascimento a alguma coisa, a ação de fazer vir a existência. E é por isso que a natureza é vida. Ela é fonte de vida, causa de vida e ela própria no seu conjunto é exercício de vida. Por isso, Bacon vai dizer que a natureza é feminina, isto é, fecunda. Ela age de dentro de si mesma para engendrar todos os seres. E precisa, portanto, segundo Bacon, de um agente que possa controlá-la, orientá-la. Esse agente é o homem através da técnica.
Este é o sentido da definição baconiana do que é técnica: a técnica é o homem acrescentado à natureza. O que vem a significar, de forma inédita, que não há diferença de essência entre as coisas naturais e as coisas artificiais; ou entre as coisas produzidas espontaneamente pela natureza e as coisas produzidas pela natureza sob a orientação e o poder da técnica. Porque a natureza é um movimento de reunir e separar corpos; e a técnica é exatamente isto, como dito no quarto aforismo, “o homem só pode reunir ou separar corpos”. Ou seja, a técnica, o homem, só pode fazer aquilo que a natureza, ela própria, faz.
É a primeira vez no pensamento ocidental que o produto da técnica e o produto da natureza são de mesma essência. Sob a aparência de limitar o poder do homem no quarto aforismo, o que Bacon preparou foi a afirmação para um poder praticamente ilimitado desde que a operação da técnica se iguale à operação da natureza: “reunir e separar corpos”.
Bacon nos libera por este “trilho posterior” e ainda entre os séculos XVI e XVII vem a tona os estudos que começam a perverter a criação da perspectiva, aquela forma de representação do Renascimento. Nestes anos constituem-se, no ocidente, teorias e experimentos nomeados de Anamorfose. Seguindo o texto do professor Arlindo Machado, “basicamente, as técnicas clássicas de anamorfose consistem num deslocamento do ponto de vista a partir do qual a imagem é visualizada, sem eliminar, entretanto, a posição anterior, decorrendo daí um desarranjo das relações perspectivas originais” (7).
Há uma forma de apreensão do mundo que não abre mão do movimento, que resulta de em observador também em movimento, e com isto multiplica-se a inconstância do que chamamos de ponto de vista. Observar é unir-se e apartar-se da natureza, conhecer é ser parte misturada a ela. Pois esta ideia de Anamorfose usava de representações subversivas à perspectiva. Já naquela época, havia o movimento de criar paisagens em movimento. Se iniciava a ideia de que o espaço só é percebido em uma dimensão temporal, ou seja, tudo o que vemos vem de uma estrutura discursiva que percebe o mundo consequentemente, isto é, como uma sucessão de eventos. Representá-lo, em certa medida, pressupõe deixar inscrito um passear do tempo sobre o espaço.
O movimento refaz as pretensões humanas. Não há mais na modernidade como reter as imagens pela representação de seus contornos. Em movimento, o mundo moderno passa a ter um devir na forma. No Impressionismo, por exemplo, é o trem (talvez este que saíra da estação de Yotala) um dos agentes que desmonta o estático das representações pictóricas. A realidade é posta pela arte através de impressões que denunciam uma experiência temporal. A partir dali, não se espera mais a simples cópia de uma paisagem, um testemunho fiel de um alvorecer, mas a impressão que tal cena imprime aos olhos de quem observa.
Inventamos o trem. Olhar paisagens que se formavam em uma janela com movimento foi um desses acontecimentos que de tão grande mudou a nossa percepção do mundo. Há uma relação precisa entre a história do trem e a nossa forma moderna de conceber as paisagens em movimento que determinam as nossas vivências. Em parte, este transporte, esta “mídia” moderna, contribuiu na experiência temporal que definiu a nossa relação com a realidade. Trens que nos deslocaram e reconfiguraram em seus movimentos as imagens que formávamos do mundo. Como dito por Marcel Proust, “as alvoradas são um acompanhamento das longas viagens de trem [...]. Vi no quadro da janela, acima de um bosquezinho negro, nuvens recurvadas cuja suave penugem era de um rósea estabilizado, morto, imutável, como da asa que o assimilou ou o pastel sobre o qual o depôs a fantasia do pintor. Mas sentia pelo contrário que aquela cor não era nem inércia, nem capricho, mas necessidade e vida. Por trás dela em breve se amontoaram reservas de luz. Ela avivou-se, o céu se tornou de um encarnado que eu, colando meus olhos à vidraça, procurava distinguir melhor, pois o sentia em relação com a existência profunda da natureza, mas, tendo a linha férrea mudado de direção, o trem fez uma volta, o cenário matinal foi substituído no quadro da janela por uma aldeia noturna de telhados azuis de luar, com um lavadouro cheio do nácar opalino da noite, sob um céu ainda semeado de todas as suas estrelas, e eu desolava por haver perdido a minha faixa de céu rósea, quando a avistei de novo, mas vermelha desta vez, na janela fronteira, que ela abandonou, a um segundo cotovelo da linha férrea; de modo que eu passava o tempo a correr de uma janela a outra, para aproximar, para enquadrar os fragmentos intermitentes e opostos de minha bela madrugada escarlate e fugidia e ter dela uma vista total e um quadro contínuo” (8).
E aqui chegamos à estação que propõe Patrícia em seu livro Imagens Posteriores. Neste ponto, podemos figurar um certo limite na compreensão histórica em perceber a fotografia como imagem parada. A fotografia funciona ativando temporalidades e este estático aparente é mais uma contração de tempos do que ausência de movimento. Quando olhamos uma fotografia depositamos nela um tempo represado na gente, libertamos dela o que está concreto, abstraímos de si o conjunto de linhas e significados que se condensam nesta técnica, mas não param. Como já nos disse o professor Eduardo Cadava, “uma fotografia vale por mil perguntas”. Por mil possibilidades que transformam este “mil” na imagem numérica de um movimento que não se esgota.
As imagens de Patrícia se organizam na distância constituída entre a vida e a consciência. Como nos diz artista Malu Teodoro: “Essa é a imagem que me persegue. A imagem que aparece todos os dias em mim enquanto durmo, não exatamente pela paisagem que ela mostra mas pela situação. É a janela que mostra, pode ser a janela de uma casa, de um carro, de um trem, de um olho. Estar em uma janela a olhar o que está a fora faz ver-se através de uma janela que olha para dentro. É dizer olhar para fora faz enxergar o que esta aqui dentro. Diante dessa imensidão vejo que sou uma poeira, uma montanha, um fio de eletricidade, uma árvore baixa e distante. Nada menos. Diante desse universo sou um pó e observo o universo que me inclui. E vejo dentro dessa paisagem espaços vazios por todos os lados. E me vejo nele, que me vê, que me vejo nele, que me vê, que me vejo nele. Ver pela janela me faz olhar para dentro. Vejo varias linhas de tempo se cruzando. Lá no infinito as montanhas passam lentamente, no primeiro plano os postes de luz correm desesperadamente. Em segundo plano de vez em quando aparece uma pessoa, um cavalo, uma árvore. Conforme me acerco de um objeto mais rápido ele corre de mim. Essa imagem não tem data, não tem validade. É eterna em seu próprio tempo. E em qualquer lugar que ela esteja me faz sentir coisas. Ela é fraca, ela não fala por si mesmo e essas palavras também são fracas. Posso ver a mesma paisagem muitas vezes e sempre aparecerá algo novo, e todas as paisagens, de todos os lugares, no final podem ser a mesma, pois são imagens que existem mais dentro de mim do que no mundo de verdade. A paisagem respira no ritmo que piscam meus olhos. A imagem respira em si mesma e também dentro de mim” (9).
Estamos falando da janela como imagem técnica. Da paisagem como matéria elástica. O nome fotografia tem uma transparência e é assim cheio da claridade que nos permite imprimir sentidos. Carrega em si um heroísmo sem ênfase, uma ação sem passo dado, um silêncio recalcado de cultura. Janela que transporta o mundo e imprime o desejo por paisagens que dilatem a condição de nossa presença. Diáfana, as coisas ganham uma temporalidade única quando tocam sua superfície, que parece prometer um lugar que existe dentro de nuvens. A fotografia é janela que expõe como refração o eco de um tempo que promete ralentar. Cada frame exposto acumula um mundo que se apresenta como se tudo em nossa volta dependesse de janelas.
O trabalho de Patrícia tem o movimento como condição essencial. A janela é o próprio trajeto, o percurso em uma transparência latente que ganha forma de paisagem quando toca tal janela. Patrícia em repouso, sentada no “trem” que a transportava; a paisagem em repouso na distância que acompanha tal viagem. O movimento existe quando toca a janela pois, o que é paisagem lá se liquefaz, momentaneamente, e ativa o instante em que o encontro entre Patrícia e tal paisagem se realiza. A fotografia que ela faz não é senão desta janela. Todo movimento que Patrícia imprime mora, vive, é condição única, de janelas. Paisagens que escorrem como uma espécie de calda, de lava, quente como o quê, que ainda não virou solo para se pisar. O que faz Patrícia é fotografar um “projeto”, um pedaço da gente que está antes, anterior a forma de se apresentar. No trem em que se “fotografa a saudade” (10), finalizaria provocando-a: talvez suas imagens sejam anteriores.
© Patrícia Gouvêa :: da série Imagens Posteriores
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(1) Patrícia Gouvêa , Imagens Posteriores, Rio de Janeiro, Ed. Réptil, 2012
(2) André Viana, jornalista, escritor do texto Territórios da Saudade, in. Imagens Posteriores de Patrícia Gouvêa, Rio de Janeiro, Ed. Réptil, 2012
(3) Ronaldo Entler, no post Realegoricações da caverna, hyperlink:http://iconica.com.br/blog/?p=4541
(4) D. Gilda de Mello e Souza em Variações Sobre Michelangelo Antonioni, in. O Olhar, (org) Adauto Novaes, São Paulo, Ed. Companhia das Letras, 1988. P.(399)
(5) André Viana em Territórios da Saudade, in. Imagens Posteriores de Patrícia Gouvêa, Rio de Janeiro, Ed. Réptil, 2012
(6) Ementa do curso citado no hyperlink http://www.fflch.usp.br/df/site/graduacao/progs_pdf/2012-2/FLF0479_2_2012_marilena.pdf
(7) Arlindo Machado, Anamorfoses cronotópicas ou a quarta dimensão da imagem, in. Imagem Máquina(org.) André Parente, São Paulo, Ed. 34. P.(100)
(8) Proust, M. Em busca do tempo perdido, à sombra das raparigas em flor, São Paulo : ed. Globo, 2006. Pg. (280 e 281)
(9) Malu Teodoro, citação extraída do vídeo Contigo quero dividir minha solidão, Para Igor. No hyperlink: http://maluteodoro.blogspot.com.br/
(10) André Viana em Territórios da Saudade, in. Imagens Posteriores de Patrícia Gouvêa, Rio de Janeiro, Ed. Réptil, 2012.
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O cromatismo cezanneano

capa do livro 'O cromatismo cezanneano'
Os estudos cromáticos de Cézanne, sob o olhar atento de José Maria Dias da Cruz

- Cruz, José Maria Dias da. O cromatismo Cezanneano. Florianópolis: ed. do autor, 2010.

Cristina Pape é quem vislumbra alguns dos questionamentos essenciais postos pelo autor em 'O cromatismo cezanneano': 'Onde se encontra aquilo que não sabemos explicar mas que podemos sentir e que os pintores sabem procurar?' e chega à mesma conclusão que outros artistas, mesmo os que não se debruçam no colorido das telas: 'Existe alguma coisa que vemos mas não percebemos claramente e que transforma a realidade, sempre'. O livro mais recente de José Maria Dias da Cruz, como consta da última página, foi realizado 'pela Premiação do Edital Elisabete Anderle de Estímulo a Cultura', o que desde já denota a sua grande relevância para o reduto artístico.
José Maria Dias da Cruz, um pintor renomado que escolheu a ilha-maravilha para fixar seu ateliê, é um estudioso da cor, ou, aliás, estuda o que gera a cor, o que existe antes da cor para que possamos vê-la, a base que está oculta por trás de toda cor, o miolo, a matriz do que podemos perceber com essa ferramenta espetacular e única: os olhos. Já publicou 'A cor e o cinza' e 'Interiores de reflexão' e tem quadros espalhados pelos melhores museus e galerias do Brasil.
Em 'O cromatismo cezanneano', sua percepção primeira é a de que, como Paul Cézanne intuía, a cor existe a partir de algo impalpável e indefinido que lhe é subjacente, e pode ser reduzida à pura matemática. Intuía, mais, que a cor varia especificamente com a precisão de cada uma de nossas ferramentas. De fato. A cor pode variar com a luz (brilho), com a distância de observação (a atmosfera altera a coloração), com o tempo de observação, com o grau de defeito da 'ferramenta', bem como com as demais cores constantes e próximas (contraste), e, óbvio, com a mistura pigmentar da paleta. Os exercícios de trompe l'oeil sugeridos pelo autor e as incríveis xilogravuras de Escher (vide site oficial) não mentem.

José Maria, seguindo as pistas de Cézanne e outros pintores que o estudaram, afirma que 'o cinza onipresente está em um local indeterminado'. E se põe a pensar sobre como a pintura e outras artes são feitas de contrastes, de inter-relacionamentos, rompimentos e escolhas. Se pintar é contrastar, sendo a pintura uma das Belas Artes, até que ponto escrever também não é um exercício de contrastar, dialogar, experimentar limites e influências?
Não só músicas e poemas podem ser enigmáticos, mas a percepção das cores também. Como a pesquisa de psicólogos gestálticos e a conclusão de Gauguin mostram, a cor também é um enigma, eis que é paradoxal, relativa, nunca absoluta e única: refere-se mais à percepção do indivíduo, do que a si mesma.
Se a cor não é absoluta e se, ainda mais incrivelmente, pode ser dividida em sub-tons até o infinito - ou até o cinza sempiterno -, é de se perguntar: você confia no que vê? Com esses e outros questionamentos, José Maria sai da pintura, atravessa os limites da tela, e vai buscar o verdadeiro móvel da Arte.
A Arte, além de ser intangível, é também infinita na medida em que a última pincelada (assim como a última correção de um poema), na verdade só existe como gesto. Apesar de o pintor dar a sua 'última pincelada', a tela (o poema) continua mudando, seja conforme a interpretação de seus espectadores, seja como produto de um pensamento que pode se relacionar e se atualizar de acordo com novos paradigmas de reflexão.
Após estudar a estrutura cromática da última obra de Cézanne, 'A cabana do Jordão', José Maria aprofunda a discussão acerca da confiança exagerada que depositamos na visão, muito mais do que na intuição e na percepção, essas duas domínios inequívocos da Arte. É de se levar em conta a limitação do órgão (o olho), a diferença da cor gerada pela luz e da cor gerada pela pigmentação, com as pós-imagens e serpenteamentos, com o espaço, o campo visual, a perspectiva, a impossibilidade de se reproduzir fielmente um colorido, sob pena de ele distanciar-se da característica da imagem natural.
O artista tem uma sensibilidade especial, já diria Cézanne e agora repete José Maria, seu saudoso discípulo. A pintura, para ser Arte, não é deve ser apenas uma reprodução fidedigna do instante: para isso já existem as câmeras, filmadoras e telefones celulares. A pintura, assim como as outras artes, e para continuar ela mesma uma Arte, deve ser uma provocação: de ânimos e reflexões, de sentimentos e atitudes. Assim é que José Maria sai da pintura e vai para a literatura, poesia e filosofia, tentando, através de outros caminhos, compreender a própria fenomenologia da arte.
Como ele intui, para descobrir a pintura é preciso procurar o que vem antes, o que precede à pintura, o que se quer dizer ou mostrar através dela, o que antes eleva o braço do pintor à tela. É preciso, pois, investigar o místico de unicidade que cada tela encerra, a criação ímpar do que não há no mundo (pois imitar o que há é permitir a morte dupla do objeto) e que, sendo criado, irradiará eternamente em graus, cores e níveis distintos.
Ao fim do livro, José Maria nos presenteia, em papel couché, com suas assemblages (estudos anteriores aos quadros) e as telas de Cézanne, Degas e Chardin, estudadas em sua obra.

O abacaxi da cultura

Para antropólogo, governo tem dificuldade em implantar uma política cultural, mas a anticultural é corriqueira


Ivan Marsiglia, de O Estado de S. Paulo
Com a sua peculiar estridência, a assim chamada "nova classe média" ocupa, além de aeroportos e manchetes de economia, o centro da cena cultural brasileira. É o carnaval do Ai se eu te Pego, do tchererê-tche-tchê, da Beyoncé paraense Gaby Amarantos, da redenção do funk carioca e também da tragédia da Gurizada Fandangueira. Nessa explosão de sentidos figurados e literais, que marcas deixarão impressas na cultura nacional os cerca de 40 milhões de "ex-pobres" - na jocosa definição de MC Papo - que ascenderam ao mercado na última década?
Na opinião do antropólogo Hermano Vianna, antes de mais nada vale a pena remeter para a discussão da cultura a crítica feita pelo ex-presidente FHC ao termo nova classe média. "Há de tudo nela: pastores de igrejas evangélicas, DJs de tecnobrega, militantes de coletivos periféricos, donos de lan houses", diz o irmão mais velho do guitarrista Herbert Vianna, dos Paralamas, e um dos mais importantes pesquisadores musicais do País. "O rótulo impreciso tenta dar conta de uma grande transformação da sociedade brasileira ainda não analisada devidamente."
Aos que denunciam um suposto empobrecimento geral das manifestações artísticas no País, o doutor em antropologia social pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) - que também é consultor do programa Esquenta!, de Regina Casé, na Globo -, lança mão de uma metáfora, a do disco voador: trata-se de um olhar que sobrevoa o País sem conexão com o mundo de baixo que agora penetra a fuselagem da nave, incomodando seus finos tripulantes. E reedita, em tom de provocação, a enfática defesa que faz há anos da música mais popular dos morros cariocas. "Encontro no funk muitos elementos que o tornam superior a uma sub-MPB que tentam me empurrar como música de qualidade."
Na última década, o Brasil vive a ascensão de uma nova classe média e a chamada inclusão pelo consumo. De que forma essa transformação se expressa no âmbito da cultura?

Em seu artigo de domingo passado no Estado, Fernando Henrique Cardoso escreveu que "a dissolução do conceito de classes em 'categorias de renda' chamadas classes A, B, C, D, ou nesta 'nova classe média', dificilmente se sustenta teoricamente". Falou mais como sociólogo do que como ex-presidente ou político da oposição. Eu, como antropólogo, orientando de Gilberto Velho - por sua vez orientando de Ruth Cardoso, corajosa o suficiente para, durante a ditadura militar, aceitar que Gilberto fizesse tese sobre o consumo de drogas entre jovens da velha classe média -, posso afirmar que tal dissolução também não se sustenta culturalmente. Quando dizemos "nova classe média" estamos pensando num grupo extremamente heterogêneo em termos de estilos de vida e visões de mundo. Há de tudo nela: pastores de igrejas evangélicas, DJs de tecnobrega, militantes de coletivos periféricos, donos de lan houses, etc. O rótulo impreciso tenta dar conta de uma grande transformação da sociedade brasileira, ainda não analisada devidamente.

Em que termos falta analisá-la?

Ela não é apenas uma transformação econômica. Aconteceu ao mesmo tempo em que outras mudanças profundas se processavam. Na cultura, as consequências da revolução digital foram imediatas. O modelo de negócios da "indústria cultural", que funciona na base do broadcast, poucos-para-muitos, ainda não conseguiu se adaptar ao mundo das redes, muitos-para-muitos. Por exemplo, o mundo das gravadoras de discos, que comandava o mercado mundial de música popular, praticamente desmoronou. Milhares de pequenos estúdios surgiram em todas as periferias. Seus produtos são distribuídos via internet e fazem sucesso sem precisar de rádio, imprensa, TV. Em 2006, quando escrevi o texto para lançamento do programa Central da Periferia, na Globo, deixei claro: somos a mídia de massa correndo atrás da música mais popular nas ruas brasileiras que nunca esteve na TV antes. Descrevi a grande mídia como um disco voador, sobrevoando o País, sem conexão com o mundo "de baixo". De lá para cá, nada mudou tanto assim: apenas o barulho de fora (Ai se eu te Pego), amplificado por milhões de alto-falantes de som automotivo ou de celulares ligados em redes sociais, já penetra a fuselagem da nave, incomodando seus finos tripulantes.

O sr. quer dizer que há um incômodo com a democratização da cultura?

O melhor texto sobre isso é o do Otávio Velho dizendo que não há mais grotões no Brasil. Ele criticava a opinião de que os votos que elegeram Lula vinham de grotões ignorantes e sem conexão com a realidade contemporânea. Quem não viaja pelo interior não deve se dar conta disso. Quando piso em qualquer biboca, longe das capitais, logo encontro grupos articuladíssimos, tocando projetos sociais e culturais muitas vezes com repercussão internacional. E há também uma politização geral nesse interior que não é só de esquerda, e quase sempre não tem lugar definido no espectro ideológico tradicional. Ela é alternativa à vida político-partidária, parte do "disco voador", e produziu importantes organizações como a Cufa (Central Única de Favelas) e o AfroReggae. O pop periférico e a politização cultural periférica - que não mantêm relações harmoniosas entre si - são as principais novidades culturais brasileiras das duas últimas décadas.

E as políticas de cultura do País, estão dando o melhor a essa população ou apenas reforçando estereótipos?

Políticas de cultura não devem "dar" nada para a população. Isso se parece com promessa velha de político acostumado ao ar condicionado no disco voador: "Vou levar cultura para as favelas". A imagem tradicional era a favela como vazio cultural que devia ser iluminada com arte de fora. Os próprios favelados já deram a resposta: "Qual é, mané, o que não falta aqui é cultura". As políticas de cultura, então, precisam trabalhar junto com o que já acontece em cada lugar, possibilitando uma melhor circulação de informações e contribuindo para ampliações de horizontes de maneiras de fazer arte, que foram criadas muitas vezes aos trancos e barrancos (ou dentro de barracos). Outro dia vi um censo cultural realizado com jovens de áreas "ex-pobres" - expressão inventada pelo MC Papo, rei do reggaeton mineiro - do Rio revelando uma maioria absoluta que nunca tinha ido a um show musical. Conheço bem as áreas onde a pesquisa foi aplicada e sei que essa rapaziada frequenta baile funk com muitas apresentações ao vivo. Aquilo não é considerado show musical? Por quem, o pesquisador ou o pesquisado? Show musical é o quê? Só o que acontece no Citibank Hall?

O sr. foi um defensor dos CEUs e dos Telecentros da então prefeita Marta Suplicy. O que achou do Vale Cultura, apresentado pela agora ministra?

O Vale Cultura não foi inventado pelo ministério Marta. Tem longa história de formulação e debate, anterior até à data de 2009, quando foi para o Congresso. Na época, o então ministro Juca Ferreira já precisou atacar a opinião de que o dinheiro "não deveria ser usado em baile funk". Juca seguiu o pensamento de Gilberto Gil, que numa de suas melhores frases como ministro disse: "Cultura ruim também é cultura". É isso, não tenho o que acrescentar porque sei que Gil e Juca sabem que funk não é cultura ruim. Gil até já cantou, em declaração de amor para o Rio, "quero ser teu funk".

Então o sr. concorda com a resposta da ministra aos críticos do Vale Cultura: 'Se quiser comprar revista de quinta categoria, pode' e 'compra porcaria quem quiser'?

É engraçado: quando a política deixa o mercado decidir como o incentivo vai ser usado, é acusada de sustentar cultura de mercado com dinheiro público. Quando quer corrigir "distorções do mercado", como o fato de a região Sudeste acabar com a maior porcentagem do dinheiro da Lei Rouanet, é acusada de dirigismo cultural. Parece que todos preferem o imobilismo - que o ministério não proponha política nenhuma. Não morro de amores pelo Vale Cultura, mas encaro sua implementação como uma experiência. Por que, de antemão, achar que ele vai ser usado só em porcaria? Essa é a imagem que temos do tal "povo", coitadinho, que precisa de nossa orientação para saber o que é bom. E se for assim, por que esses críticos não partem para a porta das fábricas para ensinar ao povo o que é bom, com serviço de van grátis direto para a Sala São Paulo?

A ida de Juca Ferreira, um baiano, para a Secretaria de Cultura paulistana de Fernando Haddad, lhe agradou?

Confesso que fiquei surpreso. Estamos acostumados a pensar a política estadual ou municipal de forma paroquial, como se só os locais pudessem lidar com realidades locais. Então foi surpresa boa: uma pessoa de fora pode descobrir maneiras novas para resolver velhos problemas já naturalizados pelos nativos. Mesmo quando entende as coisas de forma errada. Lembro a descoberta do tropicalismo pelos críticos estrangeiros nos anos 1990: eles falaram muita besteira, não captavam as sutilezas do nosso contexto, terrivelmente complexo para gringos. Mas aquilo me fez entender nosso passado musical com novos olhos, e tudo ficou ainda mais interessante. Espero que o mesmo aconteça com o diálogo entre o baiano Juca e os paulistanos, que sempre souberam acolher bem os baianos, a ponto de ninguém poder dizer com certeza se o tropicalismo é baiano ou paulistano. Mandei até uma sugestão, de que uma das primeiras ações do novo secretário deveria ser um encontro com a grande comunidade do samba paulistano.

E como vai a cultura em sua cidade, o Rio?

No Rio acontecem outras surpresas: uma pessoa de fora, o gaúcho Beltrame, impulsionou o projeto das UPPs. Por anos fui defender o funk e a possibilidade de realização dos bailes na Secretaria de Segurança - já que a Secretaria de Cultura nunca se pronunciava. Hoje, há uma nova era de projetos culturais. Bom sinal para a cidade, que agora, pós-tragédia em Santa Maria, terra do Beltrame, percebe como as coisas estavam descontroladas. Havia a tal da Resolução 013 que era sempre usada por policiais quando queriam fechar um baile. Tudo podia ser motivo: falta de saídas de emergência, banheiros, isolamento acústico, etc. Agora sabemos que mesmo os espaços culturais da prefeitura ou do Estado funcionavam contrariando regras de segurança. Por que só os bailes eram fechados?

E o carnaval? Nessa semana de exaltação e júbilo país afora, temos o que comemorar?

Este carnaval é do sertanejo, do arrocha, do funk paulistano. Ela é Top, do paulistano MC Bola, é a música mais tocada no rádio em Salvador, com versão bem local. Essa é a brincadeira musical preferida atualmente: os sucessos ganham versões em todos os ritmos do momento. E os estilos se misturam. Quem diria que o sertanejo iria virar música de balada? Quem diria que Campo Grande, Mato Grosso do Sul, iria se transformar na capital do pop brasileiro? Eu não entendia muito bem o mundo do sertanejo. Até que fui numa festa de fundo de quintal, bem familiar, em Campo Grande. Uma dupla tocava canções que eu nunca ouvira antes e todo mundo fazia coro, com emoção tão explosiva quanto no momento mais animado do bumbódromo de Parintins. Foi minha rendição: gosto de pop fake, mas também não resisto diante da autenticidade. Naquele momento, gostei por motivos antropológicos, o que me encantava era o amor que aquelas pessoas sentiam por aquela música. Estava claro que algo grande iria acontecer dali. Hoje gosto também por motivos musicais. Mas há outro aspecto interessante nessa brincadeira, que é bem mais que música. Ninguém, nem mesmo o fã mais "inculto", acha que Ai se eu te Pego é um clássico de Tom Jobim. Aquilo é outra coisa: um mote para festa, para animação coletiva. Começou com uma cantoria de meninas paraibanas viajando para a Disney, virou refrão para animar turistas em Porto Seguro e depois forró em Feira de Santana. Michel Teló transformou o resultado em canção pop, que já foi apropriada em vídeos em todo o planeta, como Gangnam Style. O que importa aí é o processo, a diversão agora, o riso solto, e não a obra-prima para ser venerada como fuga de Bach. É preciso julgar as duas coisas com critérios diferentes.

O sr. parece otimista, mas há alguns dias o sambista Zeca Pagodinho criticou o carnaval no Rio, disse que 'tudo foi roubado' e não se vê mais nem enfeites nas ruas de periferia. Sambas-enredo falam de países distantes e cavalos manga-larga por exigência de patrocinadores. E até o elogiado renascimento dos bloquinhos de rua, em contraponto ao megashow mercantilizado do sambódromo, já é promovido por marcas de cerveja. A massificação põe em risco a riqueza da festa?

O carnaval é uma festa moderna, que cresceu mesmo a partir do final do século 19. O primeiro desfile de escola de samba aconteceu em 1929, e o patrocínio dos jornais foi importante para sua popularização e "oficialização". Antes era algo menor no calendário cultural do Rio. A grande festa da cidade era o Divino, que ocupava o Campo de Santana durante várias semanas. Desapareceu. Nem por isso o Rio deixou de ser o Rio. Tudo muda. E muitas novidades importantes têm origem em desrespeito a tradições. O baiano Hilário queria botar seu terno de Reis nas ruas cariocas. Notando que o 6 de janeiro não era dia de folia no Rio, resolveu sair no carnaval. Deu nos ranchos, nas escolas de samba e assim por diante. Se fosse fiel às regras tradicionais, a cultura da cidade hoje seria bem diferente. Eu adorava o carnaval no Centro do Rio no início dos anos 80. Cacique de Ramos e Bafo da Onça desfilavam gigantescos, empolgadíssimos. Aquilo foi minguando, melancolicamente. Houve ano que não escutei nenhum som de blocos na rua. Hoje há cada dia mais blocos, cada vez maiores. A garotada carioca, de todas as classes, voltou a ter no carnaval sua melhor festa. Você não gosta de blocos comerciais? Não se preocupe, há muitos outros que fogem do comércio. Neste ano vai ter até bloco que só canta marchinhas baseadas em tragédias gregas.

Há quem veja, no entanto, um empobrecimento nas manifestações artísticas de hoje, especialmente se lembrarmos do samba de raiz de Cartola e Pixinguinha, por exemplo. Não há em seu discurso uma certa correção política que impede a crítica?

Cito mais uma vez Gil: raiz para mim só de mandioca. Samba é música moderna, criada no início do século 20, inclusive com a invenção de instrumentos novos, como o surdo, criado a partir de tonéis industriais. Tudo muda, o tempo todo. Ficou mais pobre? A partir de que critério? Sei que o relativismo está fora de moda. Nem ligo: sou relativista incorrigível, cada vez mais radical. Constantemente me pego fazendo coro para Hêmon brigando com seu pai Creonte, em Antígona: "Guarda-te, pois, de te apegares a um só modo de pensar, crendo que o que dizes, e por seres tu que o dizes, exclui qualquer outra possibilidade de ver e sentir as coisas". Não tem quem me convença que há um fundamento estético único a partir do qual podemos decretar o empobrecimento ou o enriquecimento das criações humanas. Mas digamos que há: então encontro no funk muitos elementos que o tornam superior a uma sub-MPB que tentam me empurrar como música de qualidade. O tamborzão do funk salvou a música brasileira na virada do século 20 para o 21. É vanguarda mesmo, concretismo eletrônico afro-brasileiro. Mas para quem acha que hip hop não é música, ou que Stockhausen não é música, o que estou falando é delírio. Um consolo é saber que a produção da gravadora Motown um dia foi considerada por todos os críticos como lixo comercial sem futuro.

A que servem iniciativas suas como o programa Esquenta!, com Regina Casé?

Antes de qualquer outra coisa queremos fazer uma boa festa. Nas gravações do programa, os momentos que mais nos agradam são quando a plateia assume o controle e viramos espectadores da farra coletiva. Como em qualquer outra festa boa, para isso acontecer é preciso reunir gente que pensa diferente e não tenha preconceito diante das diferenças. Reunião só com gente que pensa igual não tem graça.

O Brasil deveria apostar num programa de inclusão social pela cultura?

Detesto a palavra inclusão por motivos que já comentei nas respostas anteriores: parece que a salvação do excluído - que não tem nada, é um vazio a ser preenchido por bom conteúdo - está na sua captura por um mundo que não é dele, não sua transformação em Outro. Partindo dessa premissa, a política cultural já seria de grande valor se não atrapalhasse o que já existe. O governo tem enorme dificuldade para criar e implantar política cultural. Mas política anticultural é corriqueira. Como a proibição dos bailes funk quando a música estava nascendo, empurrando-a para dentro de morros controlados pelo tráfico armado. O "funk proibidão" foi produto dessa ação anticultural do poder público.

domingo, 3 de março de 2013

José Maria Dias da Cruz - Sem título - acrilica sobre tela - 40x20cm


Frase de Leonardo da Vinci no Tratado da Pintura.



Frase de Leonardo no Tratado da Pintura.

                De como as figuras que não expressam o pensamento estão duas vezes mortas.

Se as figuras não fazem os gestos vivos que mediante seus braços expressem o conceito de sua mente, tais figuras estão mortas duas vezes, pois mortas estão essencialmente, pois a pintura não é viva, senão expressão sem vida de coisas vivas, e se não se acrescenta a vivacidade do gesto morrem por uma segunda vez.

A flor e a cerca viva



Como pintor tentei no final da década de oitenta e início da de noventa resolver um problema. Observei uma cerca viva e uma flor em um sítio de um amigo. Surgiu uma posição menos contemplativa que i investigativa. Pensei: ou pintamos a flor, e perdemos a cerca viva, ou pintamos esta e perdemos a flor. Uma contradição, portanto. Disse, na ocasião, que o enquadramento, como um espaço limitado, engendraria a questão. Percebi que composição decorrente do enquadramento é m limitante. Devemos pesar em uma secção do espaço e assim composição passa a ter outro sentido. A anulação da contradição resolveu-se pela inclusão do fenômeno do rompimento do tom, que é a manifestação no quadro do cinza sempiterno, que não existe, pois é um pré ou pós-fenômeno.

Hoje posso dizer, com as novas descobertas no campo da ciência, que esse cinza sempiterno potencializa o espaço plástico e comporta-se como o terceiro incluído, anulando o contraste entre a flor e a cerca-viva. Ou como o vazio-cheio da física quântica. Mas estas lógicas não invalidam a do cinza sempiterno, assim como outras que surgirem não apagarão as verdades das que se passaram. A totalidade do quadro ultrapassa essas análises episódicas amparadas em descobertas científicas. Somos levados a citar o Eclesiastes.

Da cor na pintura -



DA COR NA PINTURA: O Ponto de passagem

Introdução por EDGAR LYRA


Da Cor na Pintura é, na realidade, uma compilação organizada de notas e reflexões. Durante mais ou menos 20 anos (1975-1995), o conjunto foi crescendo, se revendo e se depurando, não tendo sido pensado a partir de um plano estrutural, como obra literária ou filosófica. Suas primeiras formalizações, inclusive, funcionaram muito mais como mediação de discussões com interlocutores próximos e específicos. Algumas cópias preliminares foram distribuídas em diferentes ocasiões, com sucessivos acréscimos e revisões, concomitantes à evolução do pensamento do pintor. Por ocasião da publicação deste livro, o texto recebeu novas e substanciais modificações e ganhou também esta introdução. Muito se fez na direção de uma maior clareza, considerando um público menos específico, mas sua estrutura estranha, não linear, muito mais afeita ao discurso plástico que ao literário, tem, como veremos, sua razão de ser e não poderia mesmo ser profundamente alterada sem que lhe fossem subtraídas  autenticidade e  valor historiográfico. Assim sendo, o presente texto mantém sua densidade e complexidade características, mas perdeu muito do hermetismo contido nas compilações anteriores.

Uma leitura integral, que permita a visualização geral do conteúdo, revelará, certamente, que a referida complexidade está atrelada a uma espécie de código genético. O texto discute principalmente a cor e considera, ao mesmo tempo, que um dos maiores obstáculos impostos à renovação do pensamento cromático provém da incompatibilidade entre as práticas conceituais e literárias e os fenômenos plásticos. Logo nas "Notas Preliminares", estão transcritos Redon e Gauguin, colocando a questão de formas diferentes. O tópico termina com um longo extrato do texto de Paul Valery, Leonardo e os filósofos, que contrapõe ao pensamento filosófico uma outra possibilidade de pensamento, mais próxima dos pintores e mais distante das palavras e dos conceitos.  Mais adiante, no item "Uma Questão Essencialmente Plástica", o autor afirma: "A questão é esssencialmente plástica, está além da explicação de algum fenômeno e portanto as palavras são inúteis e soam até mesmo algumas vezes ridículas". Em momentos distintos, a questão é recolocada, e por fim, está transcrita uma citação extraída do livro Breve introdução à fenomenologia das cores, de Mário Guerreiro, que escolhemos aqui reproduzir: "Sim, pois onde estão as cores puras no mundo percebido? Na verdade elas pertencem ao mundo nomeado, mas esse mundo nomeado reparte o mundo percebido e o organiza de acordo com essa coisa enigmática que é o critério de relevância implícito na língua estruturada. Parece que se abre um abismo entre os domínios da percepção sensível e da linguagem, entre as qualidades percebidas e as qualidades nomeadas, mas ficamos na dúvida se deveríamos concordar com a idéia de que o percebido só se faz passando pelo crivo da nomeação, como se a linguagem estivesse filtrando a percepção, canalizando-a no sentido de só poder captar determinados padrões em detrimento de outros. Com certeza, este é um problema que teria de ser colocado para uma fenomenologia da percepção das cores, onde uma incursão no domínio da pintura seria, certamente, bastante esclarecedora".

Não resta dúvida, portanto, de que o projeto é complexo e, de fato, parece haver uma contradição importante alojada nos alicerces da obra. O autor utiliza-se de um texto para repensar a cor, e ao mesmo tempo confessa e considera a inadequação das palavras e mesmo do "pensamento conceitual" para fazê-lo. Fala em contrapartida, de um "pensamento plástico", que naturalmente não define, e abrimos as aspas para também não nos determos aqui em diferenciá-los. Alguns colaboradores sugeriram que fossem acrescentados diagramas e reproduções coloridas em quantidade, como forma de contornar os limites da palavra, mas a maioria dos fenômenos discutidos, considerados sincreticamente como exige o pensamento em questão, não se deixa captar adequadamente pelas reproduções fotográficas. As diferenças entre superfícies pintadas e cromos poderiam ser fatais e, em edições posteriores sobretudo, estariam fora de controle. Restou ao autor utilizá-las com parcimônia e manter-se preferencialmente nos limites do texto, utilizando-se de citações, e de transcrições de outros textos e poemas.
Da Cor na Pintura é, em resumo, um livro escrito por um pintor e tem duas frentes principais interligadas: a discussão dos pensamentos crítico, plástico e cromático através dos tempos e a revisão das principais questões da pintura e do desenho, consideradas a partir da proposição de uma nova forma de pensar a cor. Há evidentemente, enorme esforço para enunciar essa proposição na sua abrangência, fato concomitante com o que foi posto até aqui e não é possível adiar a formulação de algumas perguntas latentes. Pode-se indagar, por exemplo, se essa nova forma de pensar a cor não se traduz claramente nos quadros do pintor. E também, com todas as dificuldades consideradas, se  o texto é capaz de representar alguma contribuição real para pintores, connaisseurs, filósofos, críticos de arte e para públicos menos restritos. Diante disso, é necessário reposicionar a questão, da forma para o conteúdo, e considerar, independentemente de quão capiciosa possa se tornar a leitura e de quão brilhantes ou falhas possam ter sido as soluções literárias do autor, se essa nova forma de pensar a cor, centro geral da discussão, tem consistência, se propõe realmente alguma renovação. Posto que não se trata de literatura, a menos que em sua complexidade o texto contenha algo de muito importante, a despeito da contradição assumida explicitamente pelo pintor, ele realmente não se justificaria. É preciso pois, lê-lo com atenção. Pessoalmente, arrisco dizer que o material nele contido é semente para muitíssimos desdobramentos. A contradição não só não o interdita como, estranhamente, parece fundar sua razão de ser.

* * *


José Maria tem uma obra plástica quantitativa e qualitativamente significativa. Tem, além disso, atuado como professor de pintura, trabalhando mais especificamente com a cor. Por dentro dessas formas de externação, que incluem o texto em questão, existe naturalmente um pensamento que se traduz e se constrói em cada uma delas, segundo suas características e seus limites. Apesar de a relação entre arte e pensamento estar sendo objeto de constantes discussões na atualidade, afastamos da palavra pensamento o caráter de pura reflexão teórica com que freqüentemente se veste e que configura uma redução inadequada,  sobretudo aqui, onde se trata do pensamento de um pintor. Escolhemos enxergar o livro dentro de um contexto mais amplo, que é a obra do artista. No caso, não se poderia mesmo considerar um texto sobre pintura, escrito por um pintor, passando completamente à margem de sua realização plástica.

José Maria Dias da Cruz nasceu no Rio de Janeiro, em 1935. Seus primeiros quadros abstratos, onde se cristaliza e radicaliza a imersão na cor, datam de 1982/83. Antes disso, sua trajetória pode ser melhor visualizada a partir de três fases. Um primeiro período de desenvolvimento inclui os estudos com Jan Zach e Aldary Toledo, os contatos com Flávio de Aquino e a freqüência ao atelier de Tomás Santa Rosa e, ainda,  posteriormente, o estudo na França com Emílio Petorutti. O retorno ao Brasil se dá em 1958. No panorama internacional, deslocava-se o eixo artístico de Paris para Nova York e no país, gestava-se a ruptura entre concretos e neo-concretos. José Maria não consegue expor os trabalhos que trouxe prontos de Paris e há um longo período em que o artista abandona o projeto pictórico que esboçava e vai trabalhar como diagramador do jornal Última Hora e como projetista de formulários na Rede Ferroviária Federal, dedicando-se bissextamente à realização de retratos. Em 1964, esquece por completo os pincéis e prossegue trabalhando apenas na RFFSA. A segunda fase, nos anos de 1967-68, caracteriza-se curiosamente pela pintura dos chamados "formulários", herança transmutada do trabalho burocrático. Essas pequenas telas, em meio à um cenário de produção de arte com preocupações político-sociais e de postulação da morte do quadro de cavalete, sintetizado pela "Nova Objetividade Brasileira", não encontram evidentemente espaço e sucede nova interrupção. Trabalha então em empregos diversos até 1970, quando abre uma pequena gráfica, que iria funcionar até 1973. Nesse ano, retoma o trabalho de forma definitiva, ingressando no período das "naturezas mortas". Tinha então 38 anos.

Basta olhar para alguns daqueles quadros, formulários ou naturezas mortas, para perceber que José Maria se inclinava para o desenvolvimento de um trabalho de absoluta fidelidade à pintura e principalmente a si mesmo, apesar de naqueles tempos os ventos da vanguarda soprarem fortemente noutra direção. Pouco a pouco, após sua opção definitiva e integral pela arte, foi se notabilizando como alguém que "sabia pintar" e que conhecia profundamente a matéria. Lecionou no Museu de Arte Moderna nos anos de 1983 a 1986 e, posteriormente, a partir de 1989, na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, onde permanece em atividade. Os quadros das primeiras fases, apesar das interrupções, discutiram de maneira abrangente e profunda, num discurso entrelaçado, o espaço, a forma, a representação e o signo, o suporte e a cor, numa pletora de campos da qual esta última foi pouco a pouco emergindo e se depurando como linha de articulação de um pensamento sui-generis. A proposição de José Maria não poderia, por isso, ocultar em sua gênesis um desconhecimento da linguagem plástica nas suas vertentes menos afeitas ao  colorido. Pelo contrário, além da pintura, o autor conhece bem as outras manifestações históricas e contemporâneas das chamadas artes visuais. A evolução do pensamento em questão é, portanto, coisa orgânica e madura e a opção pelo abstracionismo, tal como o abordou, não foi mais que a decisão de mergulhar mais fundo num universo que passara a ter, inequivocamente, a cor como centro. Essa fase, que prossegue até hoje ( embora haja um esboço de retomada das naturezas mortas, dentro de novas possibilidades espaciais e cromáticas), dá nitidez a um panorama realmente original. Com efeito, a obra pictórica de José Maria Dias da Cruz é de profunda originalidade, e para justificar essa afirmação, será preciso abrir um grande parêntese.

* * *


Há uma tendência natural em traçar paralelos entre a fase abstrata do artista e as bases da arte construtiva, sobretudo o concretismo, estabelecendo-se a aproximação pelo geometrismo e o distanciamento pelo uso da cor e também pela relação com a superfície do quadro. Essa tendência não constitui, a priori, nenhum equívoco mas é que permanecendo a vertente como referência original, bem discutida e compreendida nos seus postulados pela cultura plástica moderno-contemporânea e não havendo, paralelamente, crença na validade de mergulho profundo na obra e no pensamento do artista, acaba restando à José Maria o rótulo inevitável de desbobrador daquelas questões, com maior ou menor coerência, clareza ou inteligência. Entendemos que apesar de o artista conhecer muito bem os postulados do concretismo, em sua gênesis seu trabalho passa bastante longe deles, pelo que não mantivemos aqui a referência. Em respeito às considerações feitas, não procuramos também quaisquer outras filiações históricas como ponto de partida para a análise, restando-nos, como forma de justificar a afirmação de enorme originalidade feita anteriormente, o risco de perfazer trilha de raciocínio mais primitiva.

Em linhas gerais, como condição básica para a produção de obras acabadas, com um sentido claro de unidade, cabe aos artistas plásticos, racional ou intuitivamente, evidenciando-a ou livrando-se dela, decidir como lidar com a cor. Há muitas maneiras de fazer isso e, ao longo da história, o problema foi tratado de diferentes formas. Uma das possibilidades de análise lança mão do triângulo  forma-cor-matéria, proposto por Herbert Read. Concretamente, os diversos elementos do discurso pictórico habitam um desses três grandes campos e procura-se aqui situar a cor no entrelaçamento que a pintura faz deles. Muito, muito freqüentemente, configura-se a obtenção da unidade plástica pela sujeição da cor à forma, através do ritmo e da proporção. Também muito comum, sobretudo contemporaneamente, é a submersão da cor na matéria. Por aí podemos dizer que a cor serve à realização do quadro como uma necessidade, quer dizer, que participa, de maneira mais ou menos discreta, da construção de espaços e discursos onde a forma e a matéria se revezam como protagonistas. Isso seria regra não fossem os chamados coloristas, que configuram um terceiro primado, fazendo incidir na cor grande parte da responsabilidade pela unidade do conjunto plástico, lançando mão das chamadas harmonias cromáticas. Mas basta passar a vista pelas grandes mostras de arte, nacionais e internacionais, para constatar que esses coloristas rarearam muito na contemporaneidade. Há no texto uma reflexão profunda e multifária a respeito da sujeição da cor à um modelo conceitual que tem sua epítome no consagrado círculo iluminista de cores primárias e secundárias mas, aqui, nos cabe um enfoque mais econômico. É interessante notar, no caso, que se fale do colorido desta ou daquela tendência estilística e, mais ainda, do colorido deste ou daquele pintor. Essa prática aponta para uma identificação dos coloridos ou, pelo menos, para a identificação de formas preferenciais de colorir, que se repetem através das obras. Equivale  dizer que há utilização recorrente de tons ou, pelo menos, que se utilizam modos  recorrentes de harmonização cromática. O fato é que hoje, implicitamente dentro da cultura plástica e sobretudo em algumas tendências críticas, tem-se que as possibilidades de harmonização que produzem os coloridos são limitadas e conhecidas. Aceita-se que a cor seja utilizada como recurso expressivo, simbólico ou como diversidade apropriável para outros fins, mas colorir propriamente, ou seja, harmonizar pelas cores,  tornou-se uma questão de sensibilidade e técnica, a qual determinados artistas são naturalmente mais afeitos, outros menos. Mesmo aqueles que colorem intuitivamente (se é que os há em estado puro), não escapariam do campo coberto pelo atual conhecimento. E se não há invenção plástica, colorir tornou-se desinteressante dentro da ótica de uma estética contemporânea, que reifica a originalidade. Assim, o valor estético da obra deve apoiar-se primordialmente em outras bases onde a invenção ainda seja possível e, nessa fusão de circunstâncias históricas e estéticas, a cor não poderia mesmo aflorar com maior força dentro da produção recente de arte. Há naturalmente problemas com a reificação da originalidade e, sobretudo, com os mecanismos fortemente conceituais que são usados para identificá-la, chegando-se mesmo a postular, em alguns momentos, a morte da pintura. Embora não possamos aqui aprofundar a discussão, isso não traz conseqüências graves para o objetivo dessa reflexão. Aplicada sobre a obra de José Maria, essa cultura plástica a transformaria em "coisa menor", ainda que respeitada por alguns  pela requintada artesania e pela complexidade do bailado que "repisa" o chão conhecido. Mas o que tentamos sustentar é justamente que a produção do pintor é original, ou seja, que nela há, de fato, invenção plástica em colorir.

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A fase abstrata do artista pode ser identificada, evidentemente, pela presença destacada da cor. Embora, diferentemente de outros artistas voltados para os fenômenos cromáticos (Joseph Albers por exemplo), José Maria não proceda propriamente uma simplificação da forma, tratada de forma bastante elaborada, a recorrência de soluções  é sem dúvida formal e matérica, desenvolvidas como base para liberar a representação da cor. Num rápido olhar, é possível identificar os quadros pela repetição de certos esquemas formais e pelo tratamento de pinceladas minúsculas e sistemáticas dado à matéria em algumas áreas, mas é impossível reter os coloridos, realmente muito diferentes entre si.  Para usar a expressão corriqueira, qual a paleta de José Maria? Dentro das concepções de espaço plástico vigentes, é mesmo uma grande surpresa verificar como pode dar-se, em  quadros tão pequenos, uma convivência explícita de tons tão diversos, sem que haja rompimento da unidade do conjunto. A contemplação de dois ou três trabalhos recentes basta para constatar o que se diz. Os coloridos são realmente inusitados e, olhados com atenção, têm a capacidade de colocar uma interrogação diante dos limites impostos, na prática e na teoria, às possibilidades de harmonizar pela cor.

Ainda, pelo fato de que não há obviamente em pintura a possibilidade de desvincular completamente a cor da forma e da matéria, decorre que o aumento das possibilidades de articulação cromática se dá, naturalmente, a partir de uma  renovação nas possibilidades de relação cor-forma e cor-matéria, ou seja, a partir de uma revisão extensa na sintaxe  pictórica. Na trajetória que parte dos primeiros quadros abstratos, por exemplo, podemos verificar  que cada vez mais a forma se afasta da figura e se aproxima da constituição de  secções de espaços qualitativamente (e não quantitativamente) determinadas. Verifica-se, portanto, a ocorrência de um trabalho radical, que aponta na direção de uma forma própria de pensar a cor e, a partir do seu primado, o próprio espaço.

 Por último, vale insistir que a obra não trata a cor em sentido naturalista, expressivo ou simbólico, nem no sentido de uma apropriação da mesma para a pura proposição de fenômenos ópticos. Como já foi dito, também não se pode  falar de um construtivismo, no sentido formal do termo.  Podemos dizer, com alguma precisão, que José Maria tem uma atitude ontológica com relação à cor. Ao conferir-lhe independência em relação ao nome e rever a essência de suas relações com a forma e a matéria, ele busca a articulação dos fenômenos cromáticos em monólogos e diálogos sutis, afirmando a possibilidade de se ter, através da pintura, algumas traduções singulares do espaço, do tempo, do devir e do ser, da vida e da morte. A representação de pequenas e regulares pinceladas de tom ligeiramente acinzentado, sobre determinada área de cor, para dar um exemplo, constitui uma alusão absolutamente singular ao tempo. A saturação visual da cor, que se daria após algum tempo de observação, é representada in loco, segundo pinceladas intermitentes, criando certa espessura visual e propondo plasticamente uma consciência espaço-temporal irredutível à qualquer outro discurso. O artista, numa poética  existencialista, joga com o eterno e o temporário, com o ilimitado e o discreto, usando a cor como ponte visível entre reinos. Vale aqui, transcrever duas citações centrais contidas no texto:   "O espaço torna-se ilimitado. Mata-se o movimento. Intuímos um tempo sempiterno. A tudo isso se opõe um tratamento em pinceladas resultantes de um gesto repetido, um tempo cronológico como o tic-tac de um relógio ou, para os que hão de vir, como a intermitência e o silêncio de um relógio digital; a vida balizada entre nosso nascimento e morte e um espaço limitado" e, "A cor abstrata é substantiva. A cor concreta é adjetiva. E o pictórico não está num preciso ponto de equilíbrio entre as duas. Pode estar, também, no sentimento das diversas distâncias entre elas...".
À luz dessas últimas considerações, ganha inclusive bastante sentido o sub-título do livro -"O Ponto de Passagem".

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Cézanne, a quem o autor se refere um número grande de vezes no texto, teria, a partir de suas observações e reflexões a respeito da natureza, considerado há quase cem anos, uma nova possibilidade para a cor e  morreu declarando ser um primitivo ante o caminho vislumbrado. Embora se possa questionar a veracidade ou a exatidão de frases a ele atribuídas e saibamos da veia poético-filosófica de Gasquet, teimamos em lançar mão do argumento, mesmo porque uma frase como a que se segue, não poderia ter sido posta na boca de mais ninguém. Teria ele dito: "...pois às vezes imagino as cores como grandes entidades numênicas, como idéias vivas, como seres de razão pura, com quem poderíamos comunicar-nos..."[1] . Ou ainda, "A cor é o lugar onde o nosso cérebro e o universo  se juntam"[2] . Contudo, por razões históricas provavelmente, o extrato da obra de Cézanne que ainda hoje sobrenada é o formal/matérico, a ponte para o cubismo, o que muito faz pensar.

Também, o radicalismo dos quadros abstratos de José Maria, faz lembrar de Frenhofer, personagem de Balzac em A obra prima ignorada, que comoveu Cézanne até as lágrimas. "Frenhofer era um pintor que queria exprimir a própria vida somente pelas cores e manteve oculta sua obra-prima. Quando morre, seus amigos encontram apenas um caos de cores e linhas indefiníveis, uma muralha de pintura", resume Merleau-Ponty em A dúvida de Cézanne.  Devoto da pintura como processo de produção de conhecimento, José Maria, através de uma atitude menos romântica e de um método de trabalho austero, racional e obstinado, consegue organizar sua obra a ponto de, em todos os sentidos, sobreviver como pintor.

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Antes de concluir, é preciso fazer uma ressalva. É que havendo quadros, haverá sempre maneiras de vê-los, extratos distintos possíveis a este ou aquele observador. Naturalmente, a verdade deles jamais se resumirá à potência desta ou daquela interpretação, que deverão sempre cumprir o papel de abrir e não de fechar. Portanto, frisamos que a abordagem feita nesta introdução, por questões metodológicas, se voltou para aquele extrato mais adjacente ao conteúdo do texto.  Era perseguida, na análise da obra plástica, a evidência de um pensamento original sobre a cor, na medida do seu interesse simultâneo como conteúdo do texto. A julgar agora pelo que afirmamos poderem os quadros atestar, esse pensamento  propõe indubitavelmente séria renovação e possui também admirável consistência. Embora os trabalhos estejam espalhados por coleções particulares, não deve ser difícil aos interessados olhá-los ou revê-los, tirando suas próprias conclusões, mesmo porque o pintor encontra-se em atividade e não são tão raras as exposições.

Por fim, foi dito que Da Cor na Pintura tem duas frentes principais interligadas: a discussão dos pensamentos crítico, plástico e cromático através dos tempos e a revisão das principais questões da pintura e do desenho a partir de uma nova forma de pensar a cor. Por outro lado, pelo desenvolvimento do argumento geral desta introdução e, sobretudo, pela análise da obra pictórica do artista, que tocou em muitos dos assuntos discutidos amiúde no texto que se segue,  já deve ser possível ao leitor uma visão geral da sua forma e conteúdo. Por isso, embora seja grande a tentação de continuar escrevendo e discutindo diretamente alguns pontos mais instigantes e polêmicos do texto, tal a motivação que seu conteúdo suscita, intuímos que, ao fazê-lo, acabaríamos por transformar a presente introdução numa tese sobre um trabalho ainda não devidamente apresentado ao público, o que não seria absolutamente pertinente. Pelo mesmo motivo, optamos quase sempre por enunciar, preferentemente a arrazoar nossos argumentos. A tarefa desta introdução estará justamente cumprida se lograr despertar ou renovar no leitor o interesse pelo texto que se segue ou pela obra do artista em geral. Concluímos, pois, alimentando a esperança de que as questões tão singularmente levantadas, elaboradas e apresentadas por José Maria Dias da Cruz, possam ser, para as pessoas interessadas, de grande proveito, sobretudo nesse momento atual da pintura e do homem.


                                                           Teresópolis, maio de 1995.





[1]M. Doran (org.), Conversations avec Cézanne , Paris, Editions Macula, 1978, p. 123.
[2]Ibid., p.112.