quarta-feira, 16 de julho de 2014

O primeiro museu de arte moderna do Brasil - Marques Rebelo

O primeiro museu de arte moderna do Brasil

Em abril de 1948, Sul transmite a notícia fornecida por um jornal carioca de que o escritor Marques Rebelo virá a Florianópolis com a mostra e conferências sobre arte contemporânea.
Marques Rebelo, apresentado ao Secretário de Justiça de Justiça, Educação e Saúde pelo jornalista Jorge Lacerda, no Rio de Janeiro, mostra-se interessado em incluir a capital catarinense na sua agenda de viagens com a Exposição de Pintura contemporânea. Através de Anibal Nunes Pires fica acertada a visita, sob o patrocínio de da Secretaria de Justiça, Educação e Saúde. A notícia da visita é confirmada em agosto de 1948, comunicando que está para chegar um “divulgador da arte e batalhador pelo elevamento de nosso bem triste nível cultural” Sul 5, p. 10).
A exposição se realiza de 25 de setembro a 6 de outubro de 1948. Setenta e quatros originais de artistas da Alemanha, Argentina, Áustria, Chile, França, Hungria, Inglaterra, Portugal, Rússia, Checoslováquia e Brasil, abrangendo as mais diversas correntes estéticas. Inclui alguns quadros extras, como os de Martinho de Haro, expostas todos no Grupo escolar Dias Velho.
Nos dias 28, 29 e 30 de setembro de 1948 são proferidas três conferências sobre arte contemporânea. “Pintura não é imitação na natureza, mas interpretação da natureza, conceitua Marques Rebelo, para indignação dos conservadores.
Marques Rebelo hospeda-se na casa de Hamilton Valente Ferreira, para onde converge a turma Sul. Conversam sobre música, literatura, pintura, principalmente sobra a falta de um local que ofereça ao público catarinense oportunidade para conviver com as artes plásticas..
O autor de Oscarina sensibiliza as autoridades municipais e consegue instalar um pequeno museu de pintura contemporânea – o pátio Marques Rebelo – que fica sob a direção de Martinho de Haro.
O museu é oficialmente criado por decreto, em 1949.
Lina Sabina Leal, Grupo Sul: O modernismo em Santa Catarina, Florianópolis, FCC, 1981.
-----------------
A exposição de arte contemporânea ainda percorreu as cidades de Porto Alegre, Beloi Horizonte e Salvador. Marque Rebelo foi também co-fundador de museus em Cataguases e Resende. Em 1946 organizou una exposição de arte brasileira que percorreu as cidades de Montevidéu, Buenos Aires e La Plata.
____________


Auto retrato de Marque Rebelo


4


[...] E mais outra lição: trabalhei durante uns dez anos na divulgação das artes plásticas. Modéstia à parte, com inteligência, entusiasmo, devoção, desprendimento - há provas. Um dia viram que era tempo de haver um grande museu. Convocaram 50 pessoas para a sessão fundatória. Compareceram 41, e três delas, que eu conhecia, não tinham em casa um único quadro nas paredes. Estabeleceram 40 lugares de diretoria, comissões, etc., e fez-se imediata eleição. Somente um dos presentes não foi eleito - eu.


O primeiro museu de arte moderna do Brasil

O primeiro museu de arte moderna do Brasil

Em abril de 1948, Sul transmite a notícia fornecida por um jornal carioca de que o escritor Marques Rebelo virá a Florianópolis com a mostra e conferências sobre arte contemporânea.
Marques Rebelo, apresentado ao Secretário de Justiça de Justiça, Educação e Saúde pelo jornalista Jorge Lacerda, no Rio de Janeiro, mostra-se interessado em incluir a capital catarinense na sua agenda de viagens com a Exposição de Pintura contemporânea. Através de Anibal Nunes Pires fica acertada a visita, sob o patrocínio de da Secretaria de Justiça, Educação e Saúde. A notícia da visita é confirmada em agosto de 1948, comunicando que está para chegar um “divulgador da arte e batalhador pelo elevamento de nosso bem triste nível cultural” Sul 5, p. 10).
A exposição se realiza de 25 de setembro a 6 de outubro de 1948. Setenta e quatros originais de artistas da Alemanha, Argentina, Áustria, Chile, França, Hungria, Inglaterra, Portugal, Rússia, Checoslováquia e Brasil, abrangendo as mais diversas correntes estéticas. Inclui alguns quadros extras, como os de Martinho de Haro, expostas todos no Grupo escolar Dias Velho.
Nos dias 28, 29 e 30 de setembro de 1948 são proferidas três conferências sobre arte contemporânea. “Pintura não é imitação na natureza, mas interpretação da natureza, conceitua Marques Rebelo, para indignação dos conservadores.
Marques Rebelo hospeda-se na casa de Hamilton Valente Ferreira, para onde converge a turma Sul. Conversam sobre música, literatura, pintura, principalmente sobra a falta de um local que ofereça ao público catarinense oportunidade para conviver com as artes plásticas..
O autor de Oscarina sensibiliza as autoridades municipais e consegue instalar um pequeno museu de pintura contemporânea – o pátio Marques Rebelo – que fica sob a direção de Martinho de Haro.
O museu é oficialmente criado por decreto, em 1949.
Lina Sabina Leal, Grupo Sul: O modernismo em Santa Catarina, Florianópolis, FCC, 1981.
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A exposição de arte contemporânea ainda percorreu as cidades de Porto Alegre, Beloi Horizonte e Salvador. Marque Rebelo foi também co-fundador de museus em Cataguases e Resende. Em 1946 organizou una exposição de arte brasileira que percorreu as cidades de Montevidéu, Buenos Aires e La Plata.
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Auto retrato de Marque Rebelo
[...] 4

[...] E mais outra lição: trabalhei durante uns dez anos na divulgação das artes plásticas. Modéstia à parte, com inteligência, entusiasmo, devoção, desprendimento - há provas. Um dia viram que era tempo de haver um grande museu. Convocaram 50 pessoas para a sessão fundatória. Compareceram 41, e três delas, que eu conhecia, não tinham em casa um único quadro nas paredes. Estabeleceram 40 lugares de diretoria, comissões, etc., e fez-se imediata eleição. Somente um dos presentes não foi eleito - eu.

domingo, 6 de julho de 2014

Cézanne e uma goemtria das cores

  • Cézanne e uma geometria das cores 
  •  
  • As cores são enigmáticas. Cézanne fez referência a um cinza que rei-na em toda a natureza e que pintava uma secção do espaço.  O cinza oni-presente, os cinzas sempiternos, sua lógica e os acasos, as várias dimensões das cores, a questão de uma centralidade não absoluta, os rompimentos
    dos tons, os contrastes considerando-se uma dinâmica cromática, harmonias e desarmonias, o serpenteamento, as cores abstratas substantivas e as concretas adjetivas, podem nos levar a algumas reflexões. Consideramos as várias geometrias conhecidas e aquelas que, pelo acaso, hão de vir. Na década de sessenta do século passado, pensei que uma realidade poderia se desdobrar em outras. Surgiram os quadros os quais denominei formulários. As cores eram timidamente pensadas graças às impressões que tive, dez anos antes, quando pela primeira vez vi ao vivo quadros de Poussin, Cézanne e Braque. Dez anos depois, essas ideias se adensaram. Afirmei, então, que pelos diversos desdobramentos de uma realidade chegar-se-ia a um estado de confusão em nossos pensamentos a tal ponto que o acaso seria o limite daqueles. A geometria dos fractais, descoberta na década de sessenta, e a teoria do caos ainda eram desconhecidas do grande público. Foram divulgadas para os leigos em 1980. Pintei naturezas mortas considerando aquelas minhas observações. Na década de oitenta, mais próximo daqueles três grandes artistas aos quais me referi, pensei no cinza sempiterno, já inteiramente interessado nos fenômenos cromáticos. Hoje penso em uma geometria das cores. Vejamos, há o cinza onipresente que contém todos os coloridos ou um colorido total, cinza esse que nos é interditado. Restam-nos os cinzas sempiternos, causa e efeito dos coloridos. Um colorido, portanto, é uma fração e dele podemos dizer que, como fração, é maior que o todo, pois que, para nós homens, esse todo é inatingível. Como as cores possuem várias dimensões, diremos que elas estão sempre se auto-organizando dentro de um colorido. Acontecimentos ao acaso participam desse pro- cesso, pois um colorido, pela sua dinâmica própria, pode gerar outros cinzas sempiternos, ou seja, outros fracionamentos em seu interior pela agregação de alguns poucos coloridos. Os acasos seriam, portanto, as novas convivências cromáticas que surgiriam da necessidade dessa au- to-organização e do surgimento de outros cinzas sempiternos: digamos, novas cores que participariam do colorido em outro nível de realidade. Há o fato de que cada cor concreta adjetiva ao conter sua oposta, formando um par, é afirmar que contém, também, um cinza sempiterno. Cada cor poderia ser, neste caso, uma unidade irredutível por trazer em si certa potência? Cézanne afirma que a harmonia geral se dá por si só. Antes de se dar, teríamos uma desarmonia? Há um limite, entretanto, pois uma auto-organização se encami- nharia para o cinza onipresente que, como dissemos, nos é interditado. Dependendo de nós como testemunhas, um colorido se desorganizaria e se autodestruiria caso se mantivesse dentro de certos limites e em um único nível de realidade. Somos levados a escolher algumas poucas cores ou acidentes decorrentes do acaso para mantermos a dinâmica do colo- rido e não nos perdermos evitando um fim prematuro desse colorido ao se tornar estático e quando princípio, fim e perfeição são uma coisa só. Por isso falo do acaso da última pincelada em uma pintura, por exemplo, e cito Cézanne quando ele afirma que a harmonia se dá por si só. Essa seria uma pincelada-limite. Um novo processo de auto-organização se inicia, e assim sucessivamente até onde nossos sentidos são capazes de suportar. A vida de um colorido depende de seu princípio, o cinza onipresente, e de seu fim, nossa própria “morte”, quando cessam os limites de nossos sentidos. Há, contudo, uma existência que nos foi permitida. Volto a citar Braque: “É o acaso que nos revela a existência.” Para nós estes cinzas sempiternos são um princípio e um fim, pois são, um pré ou pós-fenômeno. Princípio este quando intuímos que deles surgem os coloridos. Os pós-fenômenos, os acontecimentos dentro dos coloridos, representam a permanência de uma convivência entre as cores. Um fim quando se auto desorganizam, quando nossos sentidos não mais nos permitem a percepção da manifestação dos rompimentos dos tons e dos cinzas sempiternos. Reorganizar-se-iam em outro nível de realidade, quando a convivência entre as cores se desse pelos movi- mentos concêntricos e excêntricos no sentido de um cinza sempiterno. Compreendemos Baudelaire quando ele se refere ao prazer e ao pecado. Apoiados nessa referência, diremos que as cores são simultaneamente o prazer e o pecado. O fim absoluto dos acasos coincide com o nosso fim: a nossa própria morte. Pelas cores podemos refletir sobre a ética. O nosso esforço para não nos perdermos no colorido tem um sentido ético. O enigma, entre- tanto, continua.

sexta-feira, 4 de julho de 2014

O PENSAMENTO PLÁSTICO


O PENSAMENTO PLÁSTICO

Falamos anteriormente de um pensamento plástico. Pode- mos constatar um conflito entre o discurso verbal e a percepção visual. O filósofo Mário Guerreiro indaga se “devemos concordar com a ideia de que o percebido só se faz passando pelo crivo da nomeação, como se a linguagem estivesse filtrando a percepção, canalizando-a no sentido de só poder captar certos padrões em detrimento de outros.” Digo que o pintor tem que lidar com as duas abordagens das cores. Mas, pensando plasticamente, não faz sentido a nomeação. Por exemplo, um terra de sombra queimada, um vermelho de cádmio claro, um magenta, um castanho, um rosa claro são todos avermelhados. E, assim, plasticamente os diversos azulados, amarelados e esverdeados e os claros e escuros, as cores simples de Leonardo além dos brancos e pretos.  Se observarmos, lado a lado, dois vermelhos e dois verdes, notaremos, tanto nos primeiros como nos segundos, desvios para os amarelados ou azulados. Se repetirmos a experiência com dois amarelos e dois azuis, notaremos que ambos os pares se desviam para os avermelhados ou esverdeados. Dessa forma não mais precisamos nomear as cores a partir de seus específicos matizes. Um magenta será para nós um vermelho-azulado, um terra de sena queimada, um vermelho-amarelado. E o mesmo para os diversos amarelos ou azulados. Nossa percepção ficará, se livre das nome- ações, mais aguçada. Para fins práticos podemos construir um diagrama em quadrantes a partir dessas simples percepções que poderão representar vários coloridos. Abole-se, portanto, um cír- culo cromático absoluto, ficamos mais livres para observarmos as sutilezas cromáticas de Cézanne e notamos sua singularidade face a seus contemporâneos. Há ainda os contrastes simultâneos. Uma mesma cor pode ter inumeráveis tonalidades conforme aquelas de suas vizinhas, a qualidade da luz, os rompimentos contínuos, etc. Assim podereos dizer que, plasticamente, temos os claros, os escuros, os aver- melhados, os esverdeados, os amarelados e os azulados – as cores simples de Leonardo. Claro, um pensamento plástico não elimina para o pintor o pensamento verbal. Ele tem que saber como lidar com os dois. E certamente com outros, como o pré-lógico, o táctil, o auditivo, o mágico, etc.

quinta-feira, 3 de julho de 2014

José Maria Dias da cruz - sem titulo - o/s/t - 80 x 120 - 1995



 Sobre o centro, Degas e Klee

Conheço o diagrama cromático de Klee há anos, mas só agora me apercebi de outros desdobramentos que aumentam sua complexidade. Será sua estrutura topológica? Creio que sim. Há deformações e transformações contínuas tanto como em Cézanne, mas dentro de outra abordagem. No diagrama elaborado por Klee há um eixo vertical para os brancos e pretos, e suas gradações, e em torno dele, uma circularidade cromática baseada nas cores por ele consideradas primárias, o azul ou ciano, vermelho ou magenta e amarelo, onde fim e começo se encontram e se interpenetram por uma circularidade dinâmica, gerando as secundárias laranja, verde e violeta. Não percebia sua dinâmica porque Klee não conseguiu se livrar dos conceitos de cores primárias e do cinza neutro, os quais descartei. E, também, não explorou o fenômeno do rompimento do tom e nem de um certo cinza, como Cézanne. Cito o aforismo de Klee: “O crepúsculo incerto do centro.” Este o coloca entre os grandes pensadores das questões cromáticas. Diderot dizia que em cada dez pintores há somente um colorista. Digo mais, são poucos os pintores que, além de coloristas, são também pensadores. Afinal, a cor é enigmática, e enfrentá-la é uma tarefa das mais complexas. Pelas cores, Klee interroga a centralidade, e esta está também pre- sente em Degas como uma questão, além de cromática, de espa- cialidade. (Ver figura IV). Para irmos mais adiante vale vermos a reprodução de um pastel do Degas. Nele uma mulher está no centro do quadro, mas não está no centro do espaço; está tão dentro de si que talvez esteja fora de tudo. Mas ela está iluminada, dentro da sua juventude, por
uma luz azul que não é a mesma do ambiente noturno. Será que não nota essa outra luz? Será que a luz que lhe espreita não é aquela que procuramos? Uma que ilumine o outro lado de nossas vaidades? Mas há, no fundo, atrás dela, uma sombra vertical que coincide com o eixo do quadro, sombra esta tão misteriosa... Há no pastel, ainda, no lado direito, a mulher sentada, mais velha e mais vivida que a olha de dentro de uma sombra com um chapéu enfeitado por um buquê de flores estranhamente iluminado e, do lado esquerdo, uma outra, alheia a tudo, com um chapéu também com enfeites em cores bem contrastantes. Lá fora, o movimento apressado de passantes, um deles, um homem com um fato preto, meio encoberto por uma coluna, caminhando sempre para o mesmo destino de todas as noites. O que vemos se ficarmos só com as formas perceptuais? Mas se entrarmos nas formas estruturais afirmaremos com certeza que realmente são vários os espaços e os tempos em várias dimensões. Uma linha estrutural horizontal, considerando esses pontos focais periféricos, dá aquilo que Cézanne diz que é a extensão. Diz ainda este mestre que as verticais dão a profundidade, que, no caso do pastel de Degas, aparecem nas colunas e, misteriosamente, no eixo vertical central da estrutura subjacente do suporte, muito forte na construção desse pastel.  Mas voltemos aos adornos femininos. Eles se parecem com esses pontos focais periféricos que dão à mulher de azul uma po- sição como a de um “crepúsculo incerto do centro.” Das formas estruturais passamos, quase sem sentir, para as formas poéticas.

Degas


quarta-feira, 2 de julho de 2014

DA COR NA PINTURA: O Ponto de passagem Introdução por EDGAR LYRA

DA COR NA PINTURA: O Ponto de passagem

Introdução por EDGAR LYRA


Da Cor na Pintura é, na realidade, uma compilação organizada de notas e reflexões. Durante mais ou menos 20 anos (1975-1995), o conjunto foi crescendo, se revendo e se depurando, não tendo sido pensado a partir de um plano estrutural, como obra literária ou filosófica. Suas primeiras formalizações, inclusive, funcionaram muito mais como mediação de discussões com interlocutores próximos e específicos. Algumas cópias preliminares foram distribuídas em diferentes ocasiões, com sucessivos acréscimos e revisões, concomitantes à evolução do pensamento do pintor. Por ocasião da publicação deste livro, o texto recebeu novas e substanciais modificações e ganhou também esta introdução. Muito se fez na direção de uma maior clareza, considerando um público menos específico, mas sua estrutura estranha, não linear, muito mais afeita ao discurso plástico que ao literário, tem, como veremos, sua razão de ser e não poderia mesmo ser profundamente alterada sem que lhe fossem subtraídas  autenticidade e  valor historiográfico. Assim sendo, o presente texto mantém sua densidade e complexidade características, mas perdeu muito do hermetismo contido nas compilações anteriores.

Uma leitura integral, que permita a visualização geral do conteúdo, revelará, certamente, que a referida complexidade está atrelada a uma espécie de código genético. O texto discute principalmente a cor e considera, ao mesmo tempo, que um dos maiores obstáculos impostos à renovação do pensamento cromático provém da incompatibilidade entre as práticas conceituais e literárias e os fenômenos plásticos. Logo nas "Notas Preliminares", estão transcritos Redon e Gauguin, colocando a questão de formas diferentes. O tópico termina com um longo extrato do texto de Paul Valery, Leonardo e os filósofos, que contrapõe ao pensamento filosófico uma outra possibilidade de pensamento, mais próxima dos pintores e mais distante das palavras e dos conceitos.  Mais adiante, no item "Uma Questão Essencialmente Plástica", o autor afirma: "A questão é esssencialmente plástica, está além da explicação de algum fenômeno e portanto as palavras são inúteis e soam até mesmo algumas vezes ridículas". Em momentos distintos, a questão é recolocada, e por fim, está transcrita uma citação extraída do livro Breve introdução à fenomenologia das cores, de Mário Guerreiro, que escolhemos aqui reproduzir: "Sim, pois onde estão as cores puras no mundo percebido? Na verdade elas pertencem ao mundo nomeado, mas esse mundo nomeado reparte o mundo percebido e o organiza de acordo com essa coisa enigmática que é o critério de relevância implícito na língua estruturada. Parece que se abre um abismo entre os domínios da percepção sensível e da linguagem, entre as qualidades percebidas e as qualidades nomeadas, mas ficamos na dúvida se deveríamos concordar com a idéia de que o percebido só se faz passando pelo crivo da nomeação, como se a linguagem estivesse filtrando a percepção, canalizando-a no sentido de só poder captar determinados padrões em detrimento de outros. Com certeza, este é um problema que teria de ser colocado para uma fenomenologia da percepção das cores, onde uma incursão no domínio da pintura seria, certamente, bastante esclarecedora".

Não resta dúvida, portanto, de que o projeto é complexo e, de fato, parece haver uma contradição importante alojada nos alicerces da obra. O autor utiliza-se de um texto para repensar a cor, e ao mesmo tempo confessa e considera a inadequação das palavras e mesmo do "pensamento conceitual" para fazê-lo. Fala em contrapartida, de um "pensamento plástico", que naturalmente não define, e abrimos as aspas para também não nos determos aqui em diferenciá-los. Alguns colaboradores sugeriram que fossem acrescentados diagramas e reproduções coloridas em quantidade, como forma de contornar os limites da palavra, mas a maioria dos fenômenos discutidos, considerados sincreticamente como exige o pensamento em questão, não se deixa captar adequadamente pelas reproduções fotográficas. As diferenças entre superfícies pintadas e cromos poderiam ser fatais e, em edições posteriores sobretudo, estariam fora de controle. Restou ao autor utilizá-las com parcimônia e manter-se preferencialmente nos limites do texto, utilizando-se de citações, e de transcrições de outros textos e poemas.
Da Cor na Pintura é, em resumo, um livro escrito por um pintor e tem duas frentes principais interligadas: a discussão dos pensamentos crítico, plástico e cromático através dos tempos e a revisão das principais questões da pintura e do desenho, consideradas a partir da proposição de uma nova forma de pensar a cor. Há evidentemente, enorme esforço para enunciar essa proposição na sua abrangência, fato concomitante com o que foi posto até aqui e não é possível adiar a formulação de algumas perguntas latentes. Pode-se indagar, por exemplo, se essa nova forma de pensar a cor não se traduz claramente nos quadros do pintor. E também, com todas as dificuldades consideradas, se  o texto é capaz de representar alguma contribuição real para pintores, connaisseurs, filósofos, críticos de arte e para públicos menos restritos. Diante disso, é necessário reposicionar a questão, da forma para o conteúdo, e considerar, independentemente de quão capiciosa possa se tornar a leitura e de quão brilhantes ou falhas possam ter sido as soluções literárias do autor, se essa nova forma de pensar a cor, centro geral da discussão, tem consistência, se propõe realmente alguma renovação. Posto que não se trata de literatura, a menos que em sua complexidade o texto contenha algo de muito importante, a despeito da contradição assumida explicitamente pelo pintor, ele realmente não se justificaria. É preciso pois, lê-lo com atenção. Pessoalmente, arrisco dizer que o material nele contido é semente para muitíssimos desdobramentos. A contradição não só não o interdita como, estranhamente, parece fundar sua razão de ser.

* * *


José Maria tem uma obra plástica quantitativa e qualitativamente significativa. Tem, além disso, atuado como professor de pintura, trabalhando mais especificamente com a cor. Por dentro dessas formas de externação, que incluem o texto em questão, existe naturalmente um pensamento que se traduz e se constrói em cada uma delas, segundo suas características e seus limites. Apesar de a relação entre arte e pensamento estar sendo objeto de constantes discussões na atualidade, afastamos da palavra pensamento o caráter de pura reflexão teórica com que freqüentemente se veste e que configura uma redução inadequada,  sobretudo aqui, onde se trata do pensamento de um pintor. Escolhemos enxergar o livro dentro de um contexto mais amplo, que é a obra do artista. No caso, não se poderia mesmo considerar um texto sobre pintura, escrito por um pintor, passando completamente à margem de sua realização plástica.

José Maria Dias da Cruz nasceu no Rio de Janeiro, em 1935. Seus primeiros quadros abstratos, onde se cristaliza e radicaliza a imersão na cor, datam de 1982/83. Antes disso, sua trajetória pode ser melhor visualizada a partir de três fases. Um primeiro período de desenvolvimento inclui os estudos com Jan Zach e Aldary Toledo, os contatos com Flávio de Aquino e a freqüência ao atelier de Tomás Santa Rosa e, ainda,  posteriormente, o estudo na França com Emílio Petorutti. O retorno ao Brasil se dá em 1958. No panorama internacional, deslocava-se o eixo artístico de Paris para Nova York e no país, gestava-se a ruptura entre concretos e neo-concretos. José Maria não consegue expor os trabalhos que trouxe prontos de Paris e há um longo período em que o artista abandona o projeto pictórico que esboçava e vai trabalhar como diagramador do jornal Última Hora e como projetista de formulários na Rede Ferroviária Federal, dedicando-se bissextamente à realização de retratos. Em 1964, esquece por completo os pincéis e prossegue trabalhando apenas na RFFSA. A segunda fase, nos anos de 1967-68, caracteriza-se curiosamente pela pintura dos chamados "formulários", herança transmutada do trabalho burocrático. Essas pequenas telas, em meio à um cenário de produção de arte com preocupações político-sociais e de postulação da morte do quadro de cavalete, sintetizado pela "Nova Objetividade Brasileira", não encontram evidentemente espaço e sucede nova interrupção. Trabalha então em empregos diversos até 1970, quando abre uma pequena gráfica, que iria funcionar até 1973. Nesse ano, retoma o trabalho de forma definitiva, ingressando no período das "naturezas mortas". Tinha então 38 anos.

Basta olhar para alguns daqueles quadros, formulários ou naturezas mortas, para perceber que José Maria se inclinava para o desenvolvimento de um trabalho de absoluta fidelidade à pintura e principalmente a si mesmo, apesar de naqueles tempos os ventos da vanguarda soprarem fortemente noutra direção. Pouco a pouco, após sua opção definitiva e integral pela arte, foi se notabilizando como alguém que "sabia pintar" e que conhecia profundamente a matéria. Lecionou no Museu de Arte Moderna nos anos de 1983 a 1986 e, posteriormente, a partir de 1989, na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, onde permanece em atividade. Os quadros das primeiras fases, apesar das interrupções, discutiram de maneira abrangente e profunda, num discurso entrelaçado, o espaço, a forma, a representação e o signo, o suporte e a cor, numa pletora de campos da qual esta última foi pouco a pouco emergindo e se depurando como linha de articulação de um pensamento sui-generis. A proposição de José Maria não poderia, por isso, ocultar em sua gênesis um desconhecimento da linguagem plástica nas suas vertentes menos afeitas ao  colorido. Pelo contrário, além da pintura, o autor conhece bem as outras manifestações históricas e contemporâneas das chamadas artes visuais. A evolução do pensamento em questão é, portanto, coisa orgânica e madura e a opção pelo abstracionismo, tal como o abordou, não foi mais que a decisão de mergulhar mais fundo num universo que passara a ter, inequivocamente, a cor como centro. Essa fase, que prossegue até hoje ( embora haja um esboço de retomada das naturezas mortas, dentro de novas possibilidades espaciais e cromáticas), dá nitidez a um panorama realmente original. Com efeito, a obra pictórica de José Maria Dias da Cruz é de profunda originalidade, e para justificar essa afirmação, será preciso abrir um grande parêntese.

* * *


Há uma tendência natural em traçar paralelos entre a fase abstrata do artista e as bases da arte construtiva, sobretudo o concretismo, estabelecendo-se a aproximação pelo geometrismo e o distanciamento pelo uso da cor e também pela relação com a superfície do quadro. Essa tendência não constitui, a priori, nenhum equívoco mas é que permanecendo a vertente como referência original, bem discutida e compreendida nos seus postulados pela cultura plástica moderno-contemporânea e não havendo, paralelamente, crença na validade de mergulho profundo na obra e no pensamento do artista, acaba restando à José Maria o rótulo inevitável de desbobrador daquelas questões, com maior ou menor coerência, clareza ou inteligência. Entendemos que apesar de o artista conhecer muito bem os postulados do concretismo, em sua gênesis seu trabalho passa bastante longe deles, pelo que não mantivemos aqui a referência. Em respeito às considerações feitas, não procuramos também quaisquer outras filiações históricas como ponto de partida para a análise, restando-nos, como forma de justificar a afirmação de enorme originalidade feita anteriormente, o risco de perfazer trilha de raciocínio mais primitiva.

Em linhas gerais, como condição básica para a produção de obras acabadas, com um sentido claro de unidade, cabe aos artistas plásticos, racional ou intuitivamente, evidenciando-a ou livrando-se dela, decidir como lidar com a cor. Há muitas maneiras de fazer isso e, ao longo da história, o problema foi tratado de diferentes formas. Uma das possibilidades de análise lança mão do triângulo  forma-cor-matéria, proposto por Herbert Read. Concretamente, os diversos elementos do discurso pictórico habitam um desses três grandes campos e procura-se aqui situar a cor no entrelaçamento que a pintura faz deles. Muito, muito freqüentemente, configura-se a obtenção da unidade plástica pela sujeição da cor à forma, através do ritmo e da proporção. Também muito comum, sobretudo contemporaneamente, é a submersão da cor na matéria. Por aí podemos dizer que a cor serve à realização do quadro como uma necessidade, quer dizer, que participa, de maneira mais ou menos discreta, da construção de espaços e discursos onde a forma e a matéria se revezam como protagonistas. Isso seria regra não fossem os chamados coloristas, que configuram um terceiro primado, fazendo incidir na cor grande parte da responsabilidade pela unidade do conjunto plástico, lançando mão das chamadas harmonias cromáticas. Mas basta passar a vista pelas grandes mostras de arte, nacionais e internacionais, para constatar que esses coloristas rarearam muito na contemporaneidade. Há no texto uma reflexão profunda e multifária a respeito da sujeição da cor à um modelo conceitual que tem sua epítome no consagrado círculo iluminista de cores primárias e secundárias mas, aqui, nos cabe um enfoque mais econômico. É interessante notar, no caso, que se fale do colorido desta ou daquela tendência estilística e, mais ainda, do colorido deste ou daquele pintor. Essa prática aponta para uma identificação dos coloridos ou, pelo menos, para a identificação de formas preferenciais de colorir, que se repetem através das obras. Equivale  dizer que há utilização recorrente de tons ou, pelo menos, que se utilizam modos  recorrentes de harmonização cromática. O fato é que hoje, implicitamente dentro da cultura plástica e sobretudo em algumas tendências críticas, tem-se que as possibilidades de harmonização que produzem os coloridos são limitadas e conhecidas. Aceita-se que a cor seja utilizada como recurso expressivo, simbólico ou como diversidade apropriável para outros fins, mas colorir propriamente, ou seja, harmonizar pelas cores,  tornou-se uma questão de sensibilidade e técnica, a qual determinados artistas são naturalmente mais afeitos, outros menos. Mesmo aqueles que colorem intuitivamente (se é que os há em estado puro), não escapariam do campo coberto pelo atual conhecimento. E se não há invenção plástica, colorir tornou-se desinteressante dentro da ótica de uma estética contemporânea, que reifica a originalidade. Assim, o valor estético da obra deve apoiar-se primordialmente em outras bases onde a invenção ainda seja possível e, nessa fusão de circunstâncias históricas e estéticas, a cor não poderia mesmo aflorar com maior força dentro da produção recente de arte. Há naturalmente problemas com a reificação da originalidade e, sobretudo, com os mecanismos fortemente conceituais que são usados para identificá-la, chegando-se mesmo a postular, em alguns momentos, a morte da pintura. Embora não possamos aqui aprofundar a discussão, isso não traz conseqüências graves para o objetivo dessa reflexão. Aplicada sobre a obra de José Maria, essa cultura plástica a transformaria em "coisa menor", ainda que respeitada por alguns  pela requintada artesania e pela complexidade do bailado que "repisa" o chão conhecido. Mas o que tentamos sustentar é justamente que a produção do pintor é original, ou seja, que nela há, de fato, invenção plástica em colorir.

* * *


A fase abstrata do artista pode ser identificada, evidentemente, pela presença destacada da cor. Embora, diferentemente de outros artistas voltados para os fenômenos cromáticos (Joseph Albers por exemplo), José Maria não proceda propriamente uma simplificação da forma, tratada de forma bastante elaborada, a recorrência de soluções  é sem dúvida formal e matérica, desenvolvidas como base para liberar a representação da cor. Num rápido olhar, é possível identificar os quadros pela repetição de certos esquemas formais e pelo tratamento de pinceladas minúsculas e sistemáticas dado à matéria em algumas áreas, mas é impossível reter os coloridos, realmente muito diferentes entre si.  Para usar a expressão corriqueira, qual a paleta de José Maria? Dentro das concepções de espaço plástico vigentes, é mesmo uma grande surpresa verificar como pode dar-se, em  quadros tão pequenos, uma convivência explícita de tons tão diversos, sem que haja rompimento da unidade do conjunto. A contemplação de dois ou três trabalhos recentes basta para constatar o que se diz. Os coloridos são realmente inusitados e, olhados com atenção, têm a capacidade de colocar uma interrogação diante dos limites impostos, na prática e na teoria, às possibilidades de harmonizar pela cor.

Ainda, pelo fato de que não há obviamente em pintura a possibilidade de desvincular completamente a cor da forma e da matéria, decorre que o aumento das possibilidades de articulação cromática se dá, naturalmente, a partir de uma  renovação nas possibilidades de relação cor-forma e cor-matéria, ou seja, a partir de uma revisão extensa na sintaxe  pictórica. Na trajetória que parte dos primeiros quadros abstratos, por exemplo, podemos verificar  que cada vez mais a forma se afasta da figura e se aproxima da constituição de  secções de espaços qualitativamente (e não quantitativamente) determinadas. Verifica-se, portanto, a ocorrência de um trabalho radical, que aponta na direção de uma forma própria de pensar a cor e, a partir do seu primado, o próprio espaço.

 Por último, vale insistir que a obra não trata a cor em sentido naturalista, expressivo ou simbólico, nem no sentido de uma apropriação da mesma para a pura proposição de fenômenos ópticos. Como já foi dito, também não se pode  falar de um construtivismo, no sentido formal do termo.  Podemos dizer, com alguma precisão, que José Maria tem uma atitude ontológica com relação à cor. Ao conferir-lhe independência em relação ao nome e rever a essência de suas relações com a forma e a matéria, ele busca a articulação dos fenômenos cromáticos em monólogos e diálogos sutis, afirmando a possibilidade de se ter, através da pintura, algumas traduções singulares do espaço, do tempo, do devir e do ser, da vida e da morte. A representação de pequenas e regulares pinceladas de tom ligeiramente acinzentado, sobre determinada área de cor, para dar um exemplo, constitui uma alusão absolutamente singular ao tempo. A saturação visual da cor, que se daria após algum tempo de observação, é representada in loco, segundo pinceladas intermitentes, criando certa espessura visual e propondo plasticamente uma consciência espaço-temporal irredutível à qualquer outro discurso. O artista, numa poética  existencialista, joga com o eterno e o temporário, com o ilimitado e o discreto, usando a cor como ponte visível entre reinos. Vale aqui, transcrever duas citações centrais contidas no texto:   "O espaço torna-se ilimitado. Mata-se o movimento. Intuímos um tempo sempiterno. A tudo isso se opõe um tratamento em pinceladas resultantes de um gesto repetido, um tempo cronológico como o tic-tac de um relógio ou, para os que hão de vir, como a intermitência e o silêncio de um relógio digital; a vida balizada entre nosso nascimento e morte e um espaço limitado" e, "A cor abstrata é substantiva. A cor concreta é adjetiva. E o pictórico não está num preciso ponto de equilíbrio entre as duas. Pode estar, também, no sentimento das diversas distâncias entre elas...".
À luz dessas últimas considerações, ganha inclusive bastante sentido o sub-título do livro -"O Ponto de Passagem".

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Cézanne, a quem o autor se refere um número grande de vezes no texto, teria, a partir de suas observações e reflexões a respeito da natureza, considerado há quase cem anos, uma nova possibilidade para a cor e  morreu declarando ser um primitivo ante o caminho vislumbrado. Embora se possa questionar a veracidade ou a exatidão de frases a ele atribuídas e saibamos da veia poético-filosófica de Gasquet, teimamos em lançar mão do argumento, mesmo porque uma frase como a que se segue, não poderia ter sido posta na boca de mais ninguém. Teria ele dito: "...pois às vezes imagino as cores como grandes entidades numênicas, como idéias vivas, como seres de razão pura, com quem poderíamos comunicar-nos..." . Ou ainda, "A cor é o lugar onde o nosso cérebro e o universo  se juntam" . Contudo, por razões históricas provavelmente, o extrato da obra de Cézanne que ainda hoje sobrenada é o formal/matérico, a ponte para o cubismo, o que muito faz pensar.

Também, o radicalismo dos quadros abstratos de José Maria, faz lembrar de Frenhofer, personagem de Balzac em A obra prima ignorada, que comoveu Cézanne até as lágrimas. "Frenhofer era um pintor que queria exprimir a própria vida somente pelas cores e manteve oculta sua obra-prima. Quando morre, seus amigos encontram apenas um caos de cores e linhas indefiníveis, uma muralha de pintura", resume Merleau-Ponty em A dúvida de Cézanne.  Devoto da pintura como processo de produção de conhecimento, José Maria, através de uma atitude menos romântica e de um método de trabalho austero, racional e obstinado, consegue organizar sua obra a ponto de, em todos os sentidos, sobreviver como pintor.

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Antes de concluir, é preciso fazer uma ressalva. É que havendo quadros, haverá sempre maneiras de vê-los, extratos distintos possíveis a este ou aquele observador. Naturalmente, a verdade deles jamais se resumirá à potência desta ou daquela interpretação, que deverão sempre cumprir o papel de abrir e não de fechar. Portanto, frisamos que a abordagem feita nesta introdução, por questões metodológicas, se voltou para aquele extrato mais adjacente ao conteúdo do texto.  Era perseguida, na análise da obra plástica, a evidência de um pensamento original sobre a cor, na medida do seu interesse simultâneo como conteúdo do texto. A julgar agora pelo que afirmamos poderem os quadros atestar, esse pensamento  propõe indubitavelmente séria renovação e possui também admirável consistência. Embora os trabalhos estejam espalhados por coleções particulares, não deve ser difícil aos interessados olhá-los ou revê-los, tirando suas próprias conclusões, mesmo porque o pintor encontra-se em atividade e não são tão raras as exposições.

Por fim, foi dito que Da Cor na Pintura tem duas frentes principais interligadas: a discussão dos pensamentos crítico, plástico e cromático através dos tempos e a revisão das principais questões da pintura e do desenho a partir de uma nova forma de pensar a cor. Por outro lado, pelo desenvolvimento do argumento geral desta introdução e, sobretudo, pela análise da obra pictórica do artista, que tocou em muitos dos assuntos discutidos amiúde no texto que se segue,  já deve ser possível ao leitor uma visão geral da sua forma e conteúdo. Por isso, embora seja grande a tentação de continuar escrevendo e discutindo diretamente alguns pontos mais instigantes e polêmicos do texto, tal a motivação que seu conteúdo suscita, intuímos que, ao fazê-lo, acabaríamos por transformar a presente introdução numa tese sobre um trabalho ainda não devidamente apresentado ao público, o que não seria absolutamente pertinente. Pelo mesmo motivo, optamos quase sempre por enunciar, preferentemente a arrazoar nossos argumentos. A tarefa desta introdução estará justamente cumprida se lograr despertar ou renovar no leitor o interesse pelo texto que se segue ou pela obra do artista em geral. Concluímos, pois, alimentando a esperança de que as questões tão singularmente levantadas, elaboradas e apresentadas por José Maria Dias da Cruz, possam ser, para as pessoas interessadas, de grande proveito, sobretudo nesse momento atual da pintura e do homem.


                                                           Teresópolis, maio de 1995.

José Maria Dias da Cruz - Mesa Redonda - 100 x 83 cm


O fim, o nascimento de uma quase flor, ou o cinza sempiterno (Rembrendt e caravaggio)


O fim, o nascimento de uma quase flor, ou o cinza sempiterno

Uma explicação bem resumida do quadro “O fim e o nascimento de quase uma flor, ou o cinza sempiterno. No canto inferior direito, duas cores opostas, um azulado e um amarelado, mas rompidas que sobem em vertical mais rompidas ainda, o que dá margem à manifestação do cinza, sempiterno. Há uma ordem também. O cinza sempiterno vai dar origem às cores do lado esquerdo, mas em uma situação caótica, e obedecendo uma lógica. Algumas cores escuras se rompem até o centro em direção ao cinza sempiterno e perdem cromaticidade. Outras que estão estão também rompidas se encaminham para o centro ganhando cromaticidade, ou seja, com um movimento concêntrico: por exemplo, os azulados e violáceos rompidos em direção ao cinza sempiterno. Há os avermelhados, esverdeados, cores opostas, e os amarelados que se opõem aos azulados e que têm um movimento excêntrico em relação ao cinza sempiterno. Esses movimentos em direção ao centro criam uma luminosidade porque os escuros ao se romperem não se tornam claros, mas luminosos (este é um dos segredo da estrutura cromática em Rembrandt. Há uma modulação de escuros que se rompem em direção à luz, às forma se subordinam ao cromatismo e este permite o serpenteamento e uma certa consciência do espaço plástico e não uma modelação de claros e escuros de um mesmo matiz como vemos em Caravaggio, onde as cores se subordinam às formas). Penso que esses movimentos no quadro que realizei chegam a um estado de entropia máxima que e retornam à ordem e essa ordem dá origem a algo quase como uma flor iluminada. O espaço se constrói como uma lógica. Ou uma geometria das cores?

Frase de Leonardo no Tratado da Pintura.

Obsevando uma maria-sem-vergonha ou vpários caminhos para o infinito - o/s/t - 60 x 73 1996


Frase de Leonardo no Tratado da Pintura.
    De como as figuras que não expressam o pensamento estão duas vezes mortas.

Se as figuras não fazem os gestos vivos que mediante seus braços expressem o conceito de sua mente, tais figuras estão mortas duas vezes, pois mortas estão essencialmente, pois a pintura não é viva, senão expressão sem vida de coisas vivas, e se não se acrescenta a vivacidade do gesto morrem por uma segunda vez.

A flor e a cerca viva

Como pintor tentei no final da década de oitenta e início da de noventa resolver um problema. Observei uma cerca viva e uma flor em um sítio de um amigo. Surgiu uma posição menos contemplativa que i investigativa. Pensei: ou pintamos a flor, e perdemos a cerca viva, ou pintamos esta e perdemos a flor. Uma contradição, portanto. Disse, na ocasião, que o enquadramento, como um espaço limitado, engendraria a questão. Percebi que composição decorrente do enquadramento é m limitante. Devemos pesar em uma secção do espaço e assim composição passa a ter outro sentido. A anulação da contradição resolveu-se pela inclusão do fenômeno do rompimento do tom, que é a manifestação no quadro do cinza sempiterno, que não existe, pois é um pré ou pós-fenômeno.

Hoje posso dizer, com as novas descobertas no campo da ciência, que esse cinza sempiterno potencializa o espaço plástico e comporta-se como o terceiro incluído, anulando o contraste entre a flor e a cerca-viva. Ou como o vazio-cheio da física quântica. Mas estas lógicas não invalidam a do cinza sempiterno, assim como outras que surgirem não apagarão as verdades das que se passaram. A totalidade do quadro ultrapassa essas análises episódicas amparadas em descobertas científicas. Somos levados a citar o Eclesiastes.

E sobre a frase de Leonardo? O cinza sempiterno anima o espaço.

Todas as coisas são difíceis; o homem não as pode explicar por palavras. O olho não se farta de ver, nem o ouvido se cansa de ouvir. O que é que foi? É o mesmo que há de ser. Que é o que se fez? O mesmo que se há de fazer. Não há nada de novo debaixo do sol, e ninguém pode dizer: Eis aqui uma coisa nova, porque ela já existiu nos séculos que passaram antes de nós. Não há memória das coisas antigas, mas também não há memória das coisas que hão de suceder depois de nós entre aqueles que viverão mais tarde.”

Mas, no quadro referido, a flor foi pintada em uma intensidade (verde e rosa) em desarmonia com o restante da intensidade geral do quadro onde também podemos constatar a extensão da cerca-viva. Considero desarmonia como uma não convivência entre a “flor” e a “cerca-viva” e uma situação estática. Considerando-se os coloridos dinâmicos, uma desarmonia em um determinado nível de percepção e realidade pode se transformar, em outro nível, em uma harmonia.

Uma Passante - Charles Baudelaire - Tradução: Ivan Junqueira

Uma Passante

A rua em torno era um frenético alarido.
Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa
Uma mulher passou, com sua mão suntuosa
Erguendo e sacudindo a barra do vestido.

Pernas de estátua, era-lhe a imagem nobre a fina.
Qual bizarro basbaque, afoito eu lhe bebia
No olhar, céu lívido onde aflora a ventania,
A doçura que envolve o o prazer quer assassina.

Que luz... a noite após! - Efêmera beldade
Cujos olhos me fazem nascer outra vez,
Não mais hei de te ver senão na eternidade?

Longe daqui! Tarde demais! Nunca talvez!
Pois de ti já me fui, de mim já fugiste,
Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste.

Charles Baudelaire
Tradução: Ivan Junqueira

O escaravelho - o/s/t - 38 x 55 cm - i981 - José Maria Dias da Cruz


José Maria Dias da Cruz - O fim e o nascimento de quase uma flor ou o cinza sempitenrno, óleo sobre tela, 70 x 60 cm, 2014

 José Maria Dias da Cruz - O fim e o nascimento de quase uma flor ou o cinza sempitenrno, óleo sobre tela, 70 x 60 cm, 2014

Raul de Leoni - Legenda dos dias


  Legenda dos dias

O Homem desperta e sai cada alvorada
Para o acaso das cousa... e, à saída. Da Vida N
Leva uma crença vaga, indefinida,
De achar o Ideal nalguma encruzilhada...

As horas morrem sobre as horas... Nada!
E ao Poente, o Homem, com sua sombra escolhida
Volta, pensando: “Se o Ideal, da vida
Não veio hoje, virá na outra jornada...”

Ontem, hoje, amanhã, depois, e, assim,
mais ele avança. Mais distante é o fim,
mais se afasta o horizonte pela esfera;

E a Vida passa... efêmera e vazia:
Um adiamento eterno que se espera.
Numa eterna esperança que se adia...


Raul de Leoni