segunda-feira, 29 de abril de 2019

A verdade em pintura - Cézanne, Braque, Duchamp, José Maria Dias da Cruz, Lucina Knabbenn e Kelly Kreis


A verdade em pintura

O tema que aqui tentaremos expor é bastante complexo. Não é nosso objetivo desenvolvê-lo através da linguagem verbal, mas tentar alguma aproximação pelo pensamento plástico.
Mas antes uma observação. Tratamos neste livro de uma teoria da pintura e do desenho também. Quando Cézanne nos mostrou um espaço plástico à frente do suporte o fez coincidir com esse no qual nos orientamos, o espaço imediato. Naturalmente há um limite nesse espeço plástico não muito preciso. Na contemporaneidade há muitas manifestações que estão além desse limite, que não cabem nessa discussão. Os trabalhos de Hélio Oiticica e Regina Vater estão situados nesse limite difuso, mas podemos observá-los também dentro de uma teoria da pintura.
A frase é de Paul Cézanne: “Vou lhes dizer o que é a verdade em pintura”
Não escreveu nada, apenas pintou, e pela pintura nos mostrou.


Cézanne

George Braque escreveu: “Escrever não é descrever, pintar não é representar.” Cézanne não representa, ele apresenta. Rilke em suas cartas sobre Cézanne observou que as maçãs de Cézanne são verdadeiras, mas não são comestíveis.
Cabe aqui citarmos Leonardo da Vinci quando diz em seu Tratado da Pintura que quando um pintor transpõe para o suporte algo vivo da natureza, mata a pintura por uma primeira vez (podemos interpretar essa transposição como uma simples representação) e caberá ao pintor evitar uma segunda morte.
Cézanne evita essa segunda morte da pintura, cria uma pintura viva, portanto nos mostra sua verdade.
Seguem umas citações de Braque. O que estamos tentando discutir já está dito por ele com muita profundidade. Acrescentarei apenas alguns detalhes. 
“A verdade não tem contrário.”
“Em arte não há efeito sem distorção da verdade.”
“A verdade existe. Inventa-se apenas a mentira.” 
“A verdade se protege a si mesma: os antagonistas se cruzam em torno dela com simetria sem atingi-la.”
“As provas exaurem a verdade.”

Segue a imagem de um quadro de Braque.


Braque

Curioso como podemos observar nesse quadro acima de George Braque uma referência a Cézanne. No quadro do mestre de Aix que acima mostramos podemos observar no fundo umas folhas em nada mostradas como representação. Braque as transpõe nesse quadro. Mostra uma verdade em pintura.

Vale aqui transcrevermos umas observação e Duchamp: “Cem anos de retinianismo é bastante. Antes, a pintura era sempre um meio para um fim. Fosse religioso, político, social, decorativo ou romântico. Hoje é um fim em si. Isto é um problema bem mais importante que o de ser arte figurativa ou não.”

Nesse quadro de Braque não importa se é figurativo. Nele há invenção plástica, há uma presença que nos afeta. Há, portanto, uma verdade, Há um enigma que nos eleva espiritualmente.

Sobre o que Duchmp fala sobre se fazer arte como um fim em si me pergunto: o artista que se ocupa não estará criando uma abstração fora da realidade? Cita-se aqui umas frases de artigo do sociólogo Robert Kurz escrito em 1999 e publicado na Folha de São Paulo.

“A prisão de vidro do artista moderno consiste precisamente nessa cisão estrutural do campo estético. A arte perambula de lá para cá dentro dessa jaula, desamparada; ela não é mais a forma artística de um conteúdo social, não é mais reflexão estética do todo, mas "formalidade" cindida, forma sem um conteúdo comum, socialmente definido; ela se torna, em última análise, um fim em si mesmo e, como "l'art pour l'art", nada mais é do que uma caricatura involuntária da economia "desenfreada". No caso de ela ter-se apaixonado perdidamente por si mesma, porém, a arte começa a recalcar seu dilema ao "estetizar" como tal os rebentos da cisão funcionalista”

Vejamos, agora, O grande vidro de Duchamp.

O vidro é transparente e incolor, portanto invisível. Quando Duchmap realizava essa obra um acidente trincou o vidro. O vidro deixou de ser invisível pelos trincados. Tornou-se um suporte não mais passivo, mas ativo E também em uma verdade, mas não somente de ser vido, mas por contraste, de permitir que toda a obra se tornasse uma verdade em pintura.


Duchamp

Na década de cinquenta realizei um retrato e intuitivamente criei um contraste (ver imagem). O cabelo é uma representação que se contrasta com o desenho do rosto da jovem, e assim permitindo sua presença e em sua verdade.


José Maria Dias da Cruz

Para terminar este capítulo vale vermos uma obra de Luciana Knabben. O trabalho dessa artista está na zona do limite incerto do espaço plástico coincidindo com o espaço imediato. Desdobrando os relevos de Oiticica Luciana cria com plásticos transparentes um colorido. A visão é bi-ocular, os tons se rompem o que permite a manifestação do cinza sempiterno e do serpenteamento vinciano. A obra não se apóia em um suporte e sua dimensões são pequenas. Sua condição é ser no espaço. O que vale dizer, o espaço cromático está subordinado ao espaço imediato. Voltamos a Cézanne quando ele diz que na natureza tudo está colorido. E da natureza a Espinoza quando ele diz que ela é causa de si mesma; Essa é a verdade que Luciana nos mostra.


Luciana Knabbenn

Tem-se abaixo um xilogravura de Kelly Kreis. Nela pode-se observar o seguinte:
1- Não é uma representação de uma natureza morta. Essa é apenas um motivo, segundo o que nos propõe Cézanne, e não um tema. Um narrativo acompanha um tema que é mais literário e que pode ou não ficar subordinado ao plástico.
2 - Essa xilogravura não tem como objetivo um fim em si. Ou seja, não é uma arte com um fim em si, como denunciava Duchamp, que defendia uma arte como um meio para um fim e não uma arte pela arte.
3- Percebe-se nessa gravura diversos espaços plásticos: tanto remoto (as figuras, partindo-se das observações de Braque são maleáveis); percebe-se mais ainda: um espaço manual, um espaço tátil, que nos remete aos valores hápticos segundo os conceitos de Deleuze;um espaço visual que permite a constituição de um fato plástico, este ocupando o espaço imediato, uma presença que nos afeta plasticamente.
4- Como não consideramos as coisas com valores absolutos, tem-se as diversas distancias entre as possibilidades de percepções acima descritas.
5 - Como a artista nos informou, domina essa natureza morta uma meia luz. Assim as texturas vêm para um primeiro plano de percepção. O que vale dizer: é uma xilogravura que se mostra em sua verdade, verdade essa que segundo Braque não tem contrario.



Título: Natureza Morta com texturas (versão xilogravura)
Kelly Kreis 201




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