Conversa com Milton Machado
Breves anotações
“Fuja de estudar com
aquele que produz uma obra destinada a morrer com ele”
“Triste o discípulo é
aquele que não ultrapassa seu mestre”
Leonardo da Vinci
A crise do século XIX
Com a industrialização várias crises surgiram: a luta de
classes, por exemplo, a neocolonização da África, problemas econômicos,
desemprego, concentração de renda e a consequente desigualdade social, etc. A
arte as percebeu. Surgiram escritores como Charles Dickens e artistas como Coubert,
Daumier, os impressionista, uns mostrando o dia a dia dos menos favorecidos (Daumier,
ver figura 1) e esses últimos, os impressionistas, saindo do atelier para
pintar ao ar livre. Têm aqueles que saíram de Paris; Van Gogh, admirador de
Millet que introduz o espressionismo, Gauguin que se interessa pela arte
primitiva do Taiti que depois vai influenciar Picasso, e Cézanne que cria as bases
da arte moderna. A arte para dar conta dessas crises, teve que pensar em um
espaço plástico aqui, no espaço imediato, e não mais lá. E se lá, como muitos
pintores continuaram a fazê-lo, mas que mostrasse, com novas ideias, as
diversas faces dessas crises.
Fig 1 – Daumier
Alberti, considerando uma visão monocular, pensa no espaço
plástico sendo o suporte a base de uma pirâmide e seu vértice, um ponto para o
qual o olho de dirige além dessa base, portanto, lá. Leonardo ao estudar os
limites dos corpos, passa a considerar uma visão bi ocular na medida em que
esses limites não se definem mais como uma linha com um valor absoluto.
No Tratado da Pintura Leonardo da Vinci diz que “devemos
observar com muito cuidado os limites de qualquer corpo para julgar se suas
voltas participam de curvaturas circulares e concavidades angulares.” (ver
figuras 2, 3, e 4)
Fig 2
fig 3
Fig.4
Apesar dessa visão bi ocular, o espaço plástico vinciano
permaneceu ocorrendo lá, além do plano do suporte.
Na época de Leonardo não havia termos específicos para texto
sobre teoria da pintura. Michel Ângelo referia-se às superfícies de suas obras
como ‘no finitas’. Leonardo da Vinci
se refere aos serpenteamentos circulares e angulares. O termo serpenteamento hoje
poderia ser definido como o deslocamento de um ponto que geraria uma linha potencialmente
ativa e sempiterna. Um objeto quando visto seria circular na medida em que
giraria em torno de seu eixo. Simultaneamente as concavidades angulares
referiam-se a um espaço plástico além do objeto e que dariam a noção de
profundidade. Essa frase de Leonardo da Vinci se relaciona, também, à
construção de um espaço plástico. Curioso é lembrarmo-nos de uma frase de
Cézanne: “Os objetos no espaço são todos convexos, as horizontais dariam a
extensão e as verticais, a profundidade.” Leonardo como Cézanne estudaram uma
perspectiva além da monocular proposta por Alberti.
Caravaggio, que abole a visão bi ocular, dá início a um
espaço que enfatiza o plano do suporte, portando um espaço plástico ali, no
plano do suporte. (Ver figura 5)
Fig, 5 – Caravaggio
Voltemos a Leonardo. Diz ele no
Tratado da pintura que quando o pintor transpõe algo da natureza para o suporte
mata a pintura pela primeira vez e cabe ao pintor evitar uma segunda morte, e
isso ele consegue considerando o serpenteamento que anima o espaço plástico.
Vale então, considerando o que estamos querendo mostrar, vermos o famoso quadro
de Magritte. (Ver figura 6)
Fig. 6 - Magritte
Creio que, considerando o que acima escrevemos, podemos
dizer que Magritte está matando a pintura por uma segunda vez ao recusar um
espaço plástico lá, ali ou aqui. Ou, dialeticamente, nos mostrando a
inutilidade desse espaço plástico lá para uma arte de seu tempo. Poderia ter
escrito. Isto não é um espaço plástico. Mas esse quadro, contudo, é coisa
mental. Podemos também, por esse quadro, aproximar Magrite de Duchamp, na
medida em que recusa ocupar o espaço tradicional da pintura.
Frases de Cézanne
“Somente um cinza
reina na natureza e alcançá-lo é de uma dificuldade espantosa”
“Entre o modelo e o
pintor se interpõe uma plano, a atmosfera.”
Com essa última frase Cézanne, considerando uma visão bi
ocular, introduz um espaço plástico não mais além do suporte, lá, como
preconizava Alberti, além do plano do suporte, ou ali, mas aqui, coincidindo
com esse no qual nos orientamos. Temo aqui uma questão topológica, pois há uma
fronteira entre o espaço plástico e o imediato. A arte ocorrendo em um espaço
aqui tem, então, como conviver com as crises que apontamos no início deste
breve resumo, crises estas que se adensam atualmente.
Talvez, por uma questão de sincronicidade, apontada por
Jung, o inconsciente coletivo, ou de espírito de época, me parece compreensível
que Duchamp tenha colocado nesse espaço à frente do quadro sua obra A Fonte.
Mais tarde Hélio Oiticica afirma que havia um problema na pintura contemporânea,
a cor. Espacializa a pintura e cria o parangolé e os relevos. Nessas obras, o espaço
plástico ocorre aqui, no espaço imediato. E diz mais ainda, que a era da
pintura de cavalete estava definitivamente encerrada. Não o entendo afirmando a
morte da pintura, mas condenando os quadros que insistiam com um espaço
plástico lá ou ali, em minha opinião, uma pintura que cativa uma elite vivendo
em outra realidade.
O Cinza sempiterno, o
rompimento do tom e o serpenteamento vinciano
Hoje já não acreditamos nas coisas com valores absolutos ou
como certezas inquestionáveis. Temos que romper o cerco, descartar o círculo
cromático absoluto. E também redefinir as cores. Daí dizer que há as cores
abstratas substantivas, que são ideias platônicas e subsistem por si mesmas. E
há as concretas adjetivas, cuja condição é ser no colorido, se rompem e se
dirigem para o cinza sempiterno e ocupam um espaço plástico aqui. O pintor lida
com as duas. Ver umas assemblages por mim realizadas, figuras 7,8 e 9.
Fig. 7
Fig. 8
Fig. 9
Cézanne, ao usar o rompimento do tom, nos mostra a
manifestação do cinza sempiterno – uma atmosfera entre o quadro e também
considerando o serpenteamento vinciano – faz com que o espaço plástico coincida
com esse no qual nos orientamos, aqui. Mas vale observar que o mestre afirmou
que pintamos somente uma fração do espaço uma vez que um colorido total nos é interditado.
Antevê, assim, a geometria dos fractais.
Há uma relação entre o cinza sempiterno e o serpenteamento e
Cézanne a percebeu criando as bases de uma nova perspectiva, e não mais a
idealizada como a que foi criada no Renascimento, ou seja, mono ocular e
ocorrendo além do suporte.
Sobre o cinza sempiterno temos que considerar as cores
concretas adjetivas. Elas são um par, contém em si sua oposta, estão sempre se
rompendo por ação de sua oposta, e por contrastes, ora ganhando ou perdendo
cromaticidade. Na passagem entre uma cor e sua oposta temos um ponto, um não
espaço e um não tempo. Como todas as cores se rompem diremos que esse ponto é
um pré ou pós-fenômeno, ou seja, as cores para ele convergem e divergem. Na
assemblage por mim realizada (ver figura 10) mostro a passagem de um vermelho
em direção a sua cor oposta, um
específico verde e sua reação com o serpenteamento vinciano. Assim podemos
afirmar que o espaço da pintura na contemporaneidade ocorre aqui, nela também
podemos observar que se baseia nas novas geometrias, com a topológia e a dos fractais.
Uma arte ocorrendo aqui, no espaço no qual nos orientamos, se expandiu,
incorporando outras manifestações.
Na obra de Milton Machado podemos observar, além de uma
visão obviamente bi ocular, até mesmo em seus quadros, uma relação com a
música, com a poesia, com o olfato, com a filosofia, com o serpenteamento e o
cinza sempiterno, a semiologia, a política, etc.
O cinza sempiterno, o
rompimento do tom e o serpenteamento
Na assemblage abaixo podemos observar que o sexto intervalo
ao lado do quinto e do sétimo, ora é avermelhado, ora esverdeado diante do observador
ou de uma testemunha. Entre estas o serpenteamento que anima o espaço.
Aqui podemos nos referir às lógicas aristotélicas do
terceiro excluído e a da do terceiro incluído. Na lógica aristotélica diz-se que
um vermelho não é um verde. Permanecem, assim, em um único nível de realidade. Na lógica do terceiro incluído consideramos
outro nível de realidade sem ferir a concebida por Aristóteles. Se incluirmos
como um terceiro termo as ideias das cores abstratas e concretas podemos
afirmar que um vermelho abstrato substantivo não é um vermelho concreto adjetivo.
No diagrama mostrado no quadro aqui assinalado como a figura
10 neste texto, podemos considerar como o terceiro termo o rompimento do tom, o
cinza sempiterno ou o serpenteamento vinciano. Diremos, então, que o sexto
intervalo ao lado do quinto é avermelhado, e ao lado do sétimo, esverdeado.
Temos, então, mais um exemplo da lógica do terceiro incluído sem ferir o axioma
de Aristóteles.
Tais considerações vão nos permitir ver as obras de Milton
Machado que abaixo comentamos com maior profundidade.
Fig, 10
O QUE É UM QUADRO
HOJE?
Abaixo uma troca de e-mails entre eu e Milton Machado. Desse
vídeo abaixo citado foram retiradas as fotos que agora comento. Ver figura 11.
Fig. 11 – Milton Machado
“Tem um vídeo que se chama PINTURA. As imagens são de umas câmeras/salas
de pintura com tintas líquidas de peças industriais. Um fundo de uns 3 x 5 m,
com uma densa e profunda camada de graxa preta cheia de sulcos verticais, sobre
a qual escorrem tintas que marcam e colorem essa superfície com imagens
fortuitas muito belas. E, como se não bastasse tanta beleza pictórica, corre
uma cascata de água, lavando a “pintura” o tempo todo, produzindo os sulcos, e
respingos, e brilhos e refexos. Rapaz, é bonito demais, e poucos pintores
seriam capazes de pintar imagens tão belas quanto aquelas, que podem lembrar um
Iberê, mesmo um nosso querido Braque. Estou muito contente com o resultado.
Não sei de nada também. Quem sabe é porque se engana. De cabeça
fria não nasce flor. Ainda mais maria-sem- vergonha.”
Minha resposta:
Caro Milton
Como disse, fiquei impressionadíssimo com as fotos. O
escrito já está pronto na minha cabeça, mas confesso que não será imediatamente
transcrito. Estou muito cansado. Trabalhando muito e, por sorte, você não está
me vendo. Passo horas sentado sem nenhum gesto, salvo aqueles naturais,
respiração, por exemplo. Ou deitado e idem. Às vezes caminhando, além do gesto
da respiração, alguns passos. Mas dentro da cabeça! Acrobacias inimagináveis!
Pintar um quadro, por enquanto, nada. Mas meus olhos ainda são de um pintor.
Por eles escrevo. O fato é que seu trabalho me servirá para as aulas. Estou
discutindo o que é um quadro hoje (ou pintura).
Um pequeno resumo. O seu trabalho não é um quadro. O axioma da
não contradição é respeitado. Um não quadro não é um quadro. Por aí temos um
único nível de percepção e realidade. A lógica aristotélica permanece. Uma
coisa não pode ser verdadeira e falsa simultaneamente. Na minha frente vejo,
entretanto, pelas fotos, a imagem de um quadro. Podemos dizer então que a PINTURA,
a obra de Milton, não é uma pintura. Temos, então, outro nível de percepção e
realidade. Seu trabalho é um quadro ou o pensamento de um, ou da própria
pintura. O axioma da não contradição é respeitado. Um quadro não é um não quadro;
uma pintura não é uma não pintura, etc. Aqui vale citar Poussin que diz que ou
vemos simplesmente, e ver simplesmente é apenas considerar o objeto, e nesse
caso vemos por dentro. E perdemos o que está por fora. Ou então vemos
prospectivamente, e nesse caso três coisas têm que ser consideradas: o saber do
olho, as diversas distâncias e os eixos visuais. Portanto já podemos pensar a
partir da lógica do terceiro incluído, neste caso, através de um terceiro termo
sem ferir o axioma da não contradição. Temos, a partir do olhar prospectivo que
nos propõe Poussin, no mínimo, dois níveis de percepção e realidade. Se
considerarmos esse olhar prospectivo, outros níveis de percepção e realidade
são possíveis, nunca ferindo o princípio da não contradição.
Em meus estudos sobre as cores, o terceiro termo pode ser,
tenho que pensar mais, o cinza sempiterno que permite uma dimensão temporal. Um
olhar que permita uma percepção pelos intervalos e de um espaço fracionado.
Nessa sua obra, olhares que excluem dos objetos seus respectivos valores absolutos
e as classificações estratificadas. Vale dizer, um objeto, sem um valor
absoluto, pode permitir percepções além de seu simples aspecto. E tem mais, sua
condição depende do contexto onde se encontra. Não existe por si só. Aquela
questão que já conversamos: temos que vê-lo por fora para compreendê-lo,
também, por dentro. Dependendo do que está fora o que está dentro se modifica. De
qualquer forma podemos dizer que pintar um quadro é cobrir uma superfície com
uma ou mais cores. E podemos fazê-lo usando pincéis. No seu caso não foram
usados pincéis, mas as pinceladas aparecem. Rastros de pinceladas se fazendo. O
eterno presente?
Nas diversas distâncias, por exemplo, temos o que você
defende, as distâncias em proximidade. Nos eixos visuais, o que Cézanne nos
adverte: as horizontais dão a extensão; as verticais, a profundidade e estas últimas
em seu trabalho jorram em cascatas. Mas a horizontalidade é uma só. Uma
dialógica interessante entre o permanente e o transitório. E assim o espaço
plástico torna-se multidimensional.
Pela citação de Francisco Inácio Peixoto, este grande
contista que participou nos primórdios de nosso modernismo do movimento Verde,
acontecido na pequena cidade mineira, Cataguases: “Sonhava e o sonho,
desdobrando-se em mil facetas coloridas, prejudicava-me o sono e a vida. Vinha
o desvario, vinha a hesitação e, entre hesitações e desvarios, passei dias.” Um
fim, assim como nessa citação, se desenha, e isso se repete em seu trabalho com
mais ênfase. Há o momento no qual a obra deixa de existir. Deixa?
A obra é iluminada por um raio poético, conforme nos
aconselha nosso querido Braque.
Repare, Duchamp também está presente: um objeto encontrado, mesmo
que nos cacos de sua imaginação, que se transforma. E, assim, se transformam
também os cacos imaginados: aqueles emprestados de Beuys, a graxa, por exemplo.
E “entre o sono e a vida...”, etc.
Outra obra de Milton
Machado
Fig 12 - The Wicked One, and Two, Velas, mesa de aço e
vidro, ferro, pavios, fogo. 1990
Desse trabalho comentarei como a segunda vela, acessa nas
duas extremidades, topologicamente, quando a cera derretida cai sobre um pavio,
gera outra vela. Vejo esse trabalho também, poeticamente, como uma metáfora;
vida, morte e ressurreição.
Vale aqui transcrever uma observação do Milton em um livro
sobre minha obra, Interiores de reflexão. “Devemos dizer que o primeiro não é
primeiro se não houver depois dele, um segundo. Consequentemente, o segundo não
é apenas aquilo que vem, como algo que chega com atraso, depois do primeiro,
mas que permite ao primeiro ser o primeiro. Assim o primeiro não tem como ser o
primeiro por sua própria potência, por seus próprios meios: o segundo deve
ajudá-lo com toda força de sua demora. É através do segundo do que o primeiro é
o primeiro. A ‘segunda vez’ tem, portanto, uma prioridade sobre a ‘primeira
vez’, pois está presente, já desde a primeira vez, como condição prévia para a
prioridade da primeira vez (sem que ela que ela seja, evidentemente, uma
‘primeira vez’ mais primitiva): daí que a ‘primeira vez’ é na realidade, a
‘terceira vez.”
( Vincent Descombe, Le même et l’outre: quarentecinq ans de
phiolophie française (1933-1978), Paris, Minuit, 1979, pag. 170).
Volto aqui a falar de Poussin. Considerando só uma primeira
vez veríamos simplesmente, de uma forma abstrata, seu aspecto, e vendo-a só por
dentro. Com a chegada de uma segunda vez veríamos prospectivamente, e por fora
para vermos também por dentro.
O semáfor
Fig. 13 - vidro pintado, lanterna e madeira.
Essa obra Milton Machado nos leva a perceber o cinza
sempiterno e o serpenteamento. Um espaço plástico aqui, portanto, mas
considerando-se vários níveis de realidade. Mostra também uma relação com a
semiologia, metafórica e poeticamente, os momentos de parar, esperar e avançar.
Um poema de Raul de
Leone
Legenda dos dias
O Homem desperta e sai cada alvorada
Para o acaso das cousas... e, à saída,
Leva uma crença vaga, indefinida,
De achar o Ideal nalguma encruzilhada...
As horas morrem sobre as horas... Nada!
E ao poente, o Homem, com a sombra recolhida
Volta, pensando: Se o Ideal da Vida
Não vejo hoje, virá na outra jornada...
Ontem, hoje, amanhã, depois, e, assim,
Mais ele avança, mais distante é o fim,
Mais se afasta o horizonte pela esfera;
E a Vida passa... efêmera e vazia:
Um adiantamento eterno que se espera,
Numa eterna esperança que se adia...
José Maria Dias da Cruz – Florianópolis – maio de 2016
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