ENTREVISTADORES: FLÁVIA DUZZO e JOCIELE LAMPERT
LOCAL: MASC/ Florianópolis
Flávia Duzzo: Como você relaciona a sua atividade de artista,
escritor e teórico da cor?
José Maria: Tenho que falar um pouco da
minha formação: sou
filho do escritor Marques Rebelo, o fundador desse museu, o MASC. Ele tinha
uma excelente biblioteca, muitos livros sobre pintura, e de outras
disciplinas também, claro. Era um escritor que tinha um enorme prestígio.
Hoje ele está esquecido, mas nomes como Graciliano Ramos, Millôr Fernandes,
Antônio Houaiss, João Cabral de Mello Neto, há provas, consideravam-no melhor
que Machado de Assis. (Vá se entender nosso país)
Estou falando isso
porque para mim era um embate complicado, filho de escritor famoso. Luiz
Fernando Veríssimo é um excelente escritor, mas uma vez ele, em uma
entrevista, falou que nunca escreveu um romance porque tinha o pai que o
constrangia. Estou comentando isso, porque eu acho que, inconscientemente,
claro, fui me apegar à pintura, que era arte que meu pai mais gostava depois
da literatura, para evitar este enfrentamento. Meu pai era incapaz de dar um
traço, era uma negação para as artes visuais. Como disse, tinha uma boa biblioteca.
Então comecei a ler desde cedo o Tratado de Pintura e vários livros de
pintores: Léger, Delacroix, Redon, Van Gogh, Braque, Klee, André Lhote,
Vasari e outros. O que eu quero dizer é o seguinte: comecei com as fontes
primárias e isso foi muito importante para minha formação. Sou um pintor,
quer dizer: não sou escritor. Então comecei fazer muitas anotações, e a
partir delas pude publicar alguns livros. Sobre o primeiro, A cor e o cinza:
estava com tantas anotações que me perguntei o que farei com elas? Resolvi
revisar tudo, simplificar; e daí surgiu o meu primeiro livro que acima citei,
não foi uma vontade de ser escritor, foi uma ideia de arrumar minhas ideias
como pintor. Comecei a ficar mais interessado na questão da cor, quando li,
ainda muito garoto, um livro muito bom, o Tratado da Pintura e o Tratado de
Paisagem do André Lhote.
(Professora Jociele Lampert que estava presente na entrevista, diz que
conhece o livro).
Tem uma passagem que diz porque um pintor deve escolher uma escala
cromática que começa com o laranja, para o claro, passando pelos
avermelhados, violáceos, até o azul, para a sombra, ou então, outra escala,
que começa com o laranja passando pelos amarelados, esverdeados, até o azul
para a sombra. Assim, teríamos duas possibilidades de coloridos.
Pensei então: quer dizer que o artista não pode buscar outros
coloridos? Tem que escolher uma ou outra escala básica? E foi assim que começou
o meu interesse pela cor. Comecei a estudar a questão da cor, devagar, e
fazendo minhas anotações, quer dizer, fui ver o que um pintor estava
pensando, estava escrevendo, isso foi muito bom para mim, consultar as fontes
primárias. Pude, então, criar outra teoria da cor. (Descartei o círculo
cromático que classifica as cores em primárias e secundárias, redefini o
rompimento do tom, pensei no cinza sempiterno como um pré ou pós fenômeno e causa e efeito dos coloridos, classifiquei
as cores em abstratas substantivas e concretas adjetivas, reinterpretei o
serpenteamento vinciano, etc.) Porque acho que dizer que o pintor não pode
fazer isso ou aquilo, como Lhote afirma em relação a um ou outro colorido, é
impedir um estudo de novas ideias. O pintor pode e deve fazer tudo, desde que
tenha uma lógica.
Flávia Duzzo: A sua mudança para Florianópolis influenciou seu
trabalho, em que sentido?
José Maria: A sua pergunta é Interessante. Porque minha vinda para
Florianópolis foi por motivo de saúde, minha filha ficou muito preocupada e
eu estava mal no Rio, me dá até certa emoção ao falar. Aconteceram várias
coisas simultâneas. Primeiro a morte da minha madrasta, Tem uma história. Um
advogado psicopata que se fez amigo da família se apropriou de alguns bens da
quando meu pai e minha madrasta morreram, e depois, por fofoca de outros
artistas, minha situação piorou. Perdi o contrato que tinha com a Galeria
Anita Schwartz, deixei de dar aulas no Parque Lage, fiquei zerado. Entrei num
tal estado de desequilíbrio emocional, eu quase morri.
Jociele Lampert: Sabia mais ou menos, …assim, por cima…
José Maria: Eu quase morri mesmo, não morri por muita sorte, estava em
frente a um hospital, perto da porta, passei mal, entrei, e me acudiram.
A par desses acontecimentos, essas coisas novas que descobri, tinha o
fato de a crítica não me compreender. Durante muito tempo a crítica foi de
uma violência comigo, me queimou mesmo. O Roberto Pontual, por exemplo. Participei
de uma exposição de um panorama da arte brasileira em São Paulo, ele era
crítico de O Globo. Naquela época, década de 80, os jornais abriam espaço
para as manifestações culturais e ele ganhou uma página inteira falando de
todos os artistas, e comecei a ler, fulano: ótimo, espetacular; beltrano: bom;
sicrano: mais ou menos. Meu nome só apareceu na última frase: ”inteiramente
fora de propósito, equivocada e sem sentido é a pintura de José Maria da
Cruz”. Isso me queimou. E tem mais, dava aulas no Parque Lage, a algumas
vezes, quando mudava o diretor, este me retirava do quadro de professores,
tinha que me virar. Viver de pintura é meio complicado, temos que dar aula, ou
fazer outras coisas. Fiquei queimado no mercado. Mas a vinda para
Florianópolis não foi um negócio programado, foi um negócio do destino mesmo,
e aqui eu me senti bem recebido.
Como eu gosto de conhecer o meio artístico, comecei a frequentar
exposições, queria saber do artista que estava expondo, ia conversar com o
expositor, me apresentava e trocava ideias. E fui conhecendo gente. Numa exposição no Museu Histórico, conheci
uns artistas e conheci também um professor de filosofia, o Nestor Habkost. Comecei
a conversar com ele, comecei a expor minhas ideias etc. e ele gostou muito do
que eu estava pensando e iniciamos uma troca de e-mails, e em um me escreveu:
“Está programado um seminário no departamento de filosofia, já está tudo
pronto, mas se você quiser, pode dar uma palestra.” e eu inconsequente falei:
“tudo bem, eu dou a palestra”. Depois fiquei pensando: que maluquice, dar uma
palestra para filósofo no departamento de filosofia. Felizmente me saí bem.
No Rio também fui convidado para umas palestras, mas sempre havia certa
aflição, como me dissessem: “o que você está fazendo aqui?” Um negócio meio
agressivo, mesmo. Mas aqui não, foi um negócio completamente diferente, bem
diferente daquela pressão que tinha lá no Rio. E sei que eu estava
inspirado, sei que a palestra acabou ficando muito boa mesmo. Comecei a me
sentir muito mais à vontade aqui em Florianópolis. Estou morando aqui
faz oito anos - e aqui eu já escrevi três livros, lá no Rio só consegui
escrever um, para se ver como aqui eu fiquei muito mais produtivo. Por
esses motivos, me senti bem, me senti aceito, estou agora com vocês, lá no
Rio não teria acontecido isso nunca, lá é muita politicagem. Em Florianópolis
praticamente não tem mercado.
Jociele: José Maria, antes de passar para a outra pergunta, tem
haver com isto que você está colocando aqui para nós, você viveu no Rio um
período em que aconteceu não só no Rio, mas em todos os lugares do Brasil,
aquele discurso da morte da pintura, ou que, o pintor era quase um marginal.
Viver de pintura era uma coisa inacreditável…você estava em um lugar onde
performance, intervenção…, é… haviam outras linguagens artísticas,
então, você sentiu essa “morte da pintura”? Ou como você sentiu isso, como
você viveu isto?
José Maria: Não senti tanto, sempre achei isso bobagem. Cito até em um
de meus livros o Hélio Oiticica que diz: “existe um problema complexo na
pintura contemporânea: a cor”, ele não está matando a pintura, ele fala
outra coisa: “para mim a pintura de cavalete está definitivamente encerrada”.
Ele está mudando o espaço da pintura, que é aquilo que eu anotei. Um espaço
plástico não mais lá, além do suporte, e nem ali, na superfície do suporte,
mas aqui, coincidindo com esse no qual nos orientamos. Então, não tive
problemas. Meu problema estava com a crítica que não me compreendia. Mas, eu
nunca acreditei neste negócio de morte da pintura.
Jociele Lampert: Que bom!
José Maria: Eu nunca acreditei. Muitos críticos e alguns artistas
afirmaram a morte da pintura, mas outros continuaram pintando, por exemplo,
Volpi, Iberê, e alguns mais, e da minha geração cito a Katie Van Scherpenberg.
Agora a pintura está aí com toda a força novamente.
Jociele: Nós nunca deixamos de pintar por causa deste discurso, mas como
você estava lá em um grande centro, eu imagino que lá a crítica deve ter sido
muito mais feroz…
José Maria: Sim. Foi muito feroz mesmo, foi muito feroz. Lembro-me,
conversei com o Jairo Smith; o Iberê Camargo, por exemplo, vivia muito mal,
ele não vendia, um senhor pintor, entretanto a crítica o colocava de lado,
ele só ganhou o renome que tem hoje, depois de 1980 com o enfraquecimento do discurso sobre a morte
da pintura.
Jociele Lampert: E com o apoio de um grande financiador: a Gerdau.
José Maria: Um grande financiador. Mas a crítica quase o ignorava, não
se tocava em Iberê Camargo, e não se tocavam em outros artistas que estavam
pintando também. A questão do Volpi, por exemplo, não era esse nome
todo que é hoje, ele ficava meio de
lado; Aliás a história do Volpi é muito curiosa, não sei se bem conhecida. Ele
apareceu porque ganhou o prêmio da primeira Bienal de São Paulo na década de
50. Estava tudo armado para o premiado ser Di Cavalcanti, um nome bem
badalado, inclusive um dos organizadores da Semana de 22 junto com Villa Lobos
e Manuel Bandeira. Mas convidaram para membro do juri o Herbert Head e ele afirmou: “aquele ali que é bom”. O que
era para esse crítico o bom era o Volpi, e então ficou todo mundo assim: “Poxa!
o cara olha”. Diziam: “ Tem aqui o Di Cavalvcanti”. “Mas, o
bom é aquele”, retrucava. O Volpi apareceu e começou a ser aquele nome reconhecido,
mas em 60 e 70 o nome dele ficou menos falado, não era muito comentado, agora
está voltando a ser estudado novamente.
Um período meio complicado para quem queria só pintar, muito
complicado, porque era uma pressão, quase toda a crítica e alguns artistas consideravam
que a pintura não tinha mais nada para se pensar. Eu estava estudando a
questão da cor. Dizia: “quanta coisa tem ainda para se pensar em termos de
pintura!” Foi um estudo longo, porque durante muito tempo ainda fiquei preso
àquele círculo cromático de primárias e secundárias, etc, mas estudando
Cézanne ficava intrigado com uma frase na qual ele diz que a luz não existe
para o pintor, tem que ser substituído por outra coisa: a cor. Quer dizer,
aquele círculo cromático tinha uma pretensão de racionalizar a cor e a cor é
enigmática, e também de explicar todos os fenômenos cromáticos da natureza. É
bem um pensamento iluminista, muito racional. Então a cor não tinha lugar
nessa racionalidade, e eu comecei a estudar, estudar, estudar. Só me livrei
daquele círculo em 1986, quando descobri o cinza sempiterno. Cézanne fala
também de um cinza que reina em toda a natureza. Felizmente dava aulas e
assim muitos artistas começaram e me apoiar. Agora alguns críticos, a crítica
mais nova, está começando a ver meu trabalho e finalmente, acho que vou chegar
a algum lugar.
Flávia Duzzo:
Além de Cézanne quais seriam as suas grandes referências artísticas?
José Maria: Quando
terminei o científico começou aquela história lá em casa: o que você vai ser?
Quero ser pintor,
respondia.
Meu pai insistiu:
mas é bom você ter um diploma, porque você não faz arquitetura? É interessante,
inclusive tem certa afinidade com a
pintura. Respondia: Eu não quero ser arquiteto, eu quero ser pintor.
Meu pai,
felizmente, era uma pessoa compreensiva e disse: então tudo bem, te apoio,
vou te arranjar uma bolsa; já que você quer ser pintor, você vai estudar em
Paris. E então, conseguiu uma bolsa do Itamaraty, e outra do governo
francês. Fiquei dois anos na Europa, em Paris estudando com um pintor
argentino: Emílio Pettoruti, que é um senhor artista. Ainda sobre minha
formação e entra aqui, o MASC, que foi o primeiro Museu de Arte Moderna do
Brasil de fato, o de São Paulo foi de direito, foi registrado em
cartório, mas começou a funcionar em 1949 e este já estava funcionando em
1948, precariamente, tudo bem, mas foi oficializado em 1949 e a exposição
deste museu teve artistas franceses, alemães, etc. além de brasileiros,
claro. Eram quadros da coleção de um embaixador que serviu na Europa durante
a Segunda Guerra. Ele comprou muita pintura, tudo que se possa imaginar de
1900 a 1950, tinha mais de 2000 quadros. Logo, terminada a Guerra, ele se
aposentou e trouxe essa coleção para o Brasil; e ela ficou pertinho lá de
casa, em Laranjeiras, onde morava, e eu estudando pintura, frequentava-a
muito. Então aquela coisa que eu estou repetindo muito: a minha formação foi
muito em cima das fontes primárias. Passei a não ver reprodução, eu ia lá ver
os quadros mesmo. Ele tinha quatro Picassos, quatro Braques, Paul Klee,
Kandinsky, Mondrian, Leger. Juan Gris, tudo, qualquer nome que se possa
imaginar. Quando fui a Paris ter aulas com Pettoruti já tinha uma boa
formação. Ele começou a me mostrar Cézanne, e comecei a compreender, eu já
tinha lido bastante os livros do André Lhote, e aquela sua opinião sobre as
escalas cromáticas. Pettoruti me mostrando Cézanne, daí passei direto para o
Poussin. Poussin instiga. Reprodução não dá mesmo para se ver. Como
ousado ele foi. Por exemplo, em um quadro tem uma personagem que está com uma
roupa verde, e a sombra é avermelhada, outra personagem ao lado, roupa azul e
a sombra mais amarelada, é inteiramente abstrato, quer dizer, compreendi
aquela frase do Cézanne: “Eu quero refazer Poussin direto da natureza”. Então
isso foi muito importante para eu entender Poussin, entender Cézanne e me
levou também a entender Braque. Eu já tinha lido os pensamentos de Braque e
aí fui vê-lo de perto e de perto com o Pettoruti, é uma coisa espantosa!
Então foram três artistas que mexeram muito comigo: Poussin, Braque, Cézanne.
Claro, outros, os venezianos, Chardin, Degas, Delacroix, artistas coloristas.
Tem um quadro do
Poussin que eu sei quase de cor. Quais os quadros que você já viu
realmente, posso te perguntar? Já fiz essa pergunta para a Katie Van
Scherpemberg e ela me respondeu, uns três ou quatro. Deve ter uns três ou
quatro quadros que você conhece quase de cor. São quadros que marcam nossa
formação. Daí entendermos Cézanne quando ele diz que o Louvre é um livro, nos
leva à reflexão.
Jociele Lampert: Les Demoiselles d’Avignon.
José Maria: Les
Demoiselles dÁvignon, você sabe de cor.
Jociele Lampert: Durante três meses pelo menos três vezes na semana eu
ia lá e eu olhava o quadro por duas horas…
José Maria: Tem quadros que acabam sendo uma referência muito forte. Tem
um quadro do Poussin, realmente eu vi muito este quadro! Vi muito também outro
que está no Museu D’Orsay, do Cézanne, aquele que tem as várias maçãs. Vi
também outro que agora está no Museu Pompidou, de Braque. Esses quadros eu
sei quase que de cor.
Jociele Lampert: Você
percebe a influência dele nas suas lições que você faz com os seus alunos
hoje?
José Maria: Muita,
muita, muita, mesmo, Pettoruti me passava muitos exercícios. Meus cursos têm
uma parte teórica e muitos exercícios que eu mesmo criei. Um pouco daquilo que
eu falo do Leonardo da Vinci, o discípulo tem que ultrapassar o mestre, não
ser melhor, mas pensar, levar o pensamento do mestre adiante.
Tive uma formação
pesada, porque a tradição da pintura é pesada, não é brincadeira, é um peso,
você não acha? Não é para qualquer um enfrentar a tradição da pintura.
Jociele Lampert: É
que tem os extremos, não basta você só pintar fechadinho no seu atelier, você
tem que pintar, mas você tem que também olhar para o mundo, e olhar para o
mundo quer dizer: viajar, você tem que ir a museus, escolher as fontes, não basta
você só ter acesso aos livros. Você ver um Manet de perto é incomensurável, a
você ver um Manet no livro.
José Maria:
Completamente, não dá mesmo, é muito pobre. E aí entra aquela coisa, você
começa a ver o que nós estávamos conversando no início, que era muito
importante esta questão da percepção, da percepção com o saber do olho, que é
uma coisa que eu fui aprender com o Poussin. A simples percepção é quando ficamos
só no aspecto do objeto, e quando nosso olhar é prospectivo nosso ver se
baseia no saber do olho, nas diversas distância e nos eixos visuais. Por um
olhar prospectivo desenvolvemos nosso pensamento plástico. Um pensamento que
tem uma lógica, como Cézanne diz: “que não tem nada de absurda”. Hoje eu
penso um quadro, eu não tenho uma ideia, vou pintar uma árvore, vou pintar
não sei o que, vou pintar um bosque, um quadro amarelado. Penso na lógica do
colorido. Agora a lógica vai ser esta, mas inteiramente plástica, procuro
criar um fato pictórico. O tema ou o motivo ficam a esse fato subordinados. Eu começo a pintar e sei que vai dar certo,
porque tem uma lógica, tanto é que não dou retoque no quadro, não tem
arrependimentos. Quando eu pinto um quadro é direto, está tudo na minha
cabeça, quer dizer, a lógica, as formas vão surgindo na hora.
Jociele Lampert: Você
faz estudos?
José Maria:
Antigamente eu fazia, agora não, fica na cabeça mesmo. Antigamente, estava
estudando ainda, fazia um diagrama cromático. Tinha uma escala básica, tinha
também uma lógica, mas eu fui crescendo, crescendo, hoje eu não preciso fazer
estudos, quer dizer, hoje a lógica está mais precisa e dá para ficar só na
cabeça.
Jociele Lampert: Quanto
tempo você leva para elaborar a sua paleta para determinado quadro por
exemplo?
José Maria: Muito
tempo. Outro dia eu estava lendo sobre um escritor americano. Ele estava
sentado na cadeira na varanda de sua casa e passou um vizinho.
- Está
descansando?
- Não, estou
trabalhando.
No dia seguinte o escritor
estaca arrumando o jardim, cortando a grama, subindo em árvore, etc. e o
vizinho perguntou.
- Ah! Hoje você
está trabalhando?
- Não hoje eu estou
descansando.
Eu fico lá em casa,
sentado e a cabeça tá pensando à beça. Levo muito tempo para pintar um
quadro, porque é complexo. Não gosto de ficar me repetindo, tem muito
pintor que vemos que tem uma fórmula,
e se repete sempre. Não, eu quero sempre buscar uma coisa nova, ou melhor,
conhecer mais.
Flávia Duzzo: Como você relaciona sua atividade de artista,
escritor e teórico da cor?
Primeiro quero
dizer que nunca me considerei um escritor com preocupações literárias. Sim,
publiquei três livros e tenho um quarto que em breve será editado. Como
disse, são as minhas anotações, ou seja, creio que mostram muito mais como
foi meu processo de conhecimento, tanto que digo que são livros inconclusos.
E quanto mais conhecimento adquiro, mais inconclusos esses livros me parecem.
Assim direi que
esses livros se ocupam de pintura em seus vários aspectos. Claro, me ocupei
nessa caminhada já longa com a questão da cor e dos coloridos, mas eles não
são os objetos únicos de meus estudos.
José Carlos Rocha: Com
a tua mudança do Rio para Florianópolis, você expôs os motivos, mas eu
gostaria de saber da tua arte, da tua produção, esta influência desta pressão
que você teve no Rio sofreu também nos teus trabalhos? Você identifica esta
diferença entre estar no Rio, produzindo no Rio e produzindo aqui em
Florianópolis? Você acha que o lugar te influenciou em novas composições,
novas formatações, um novo pensar do teu trabalho?
José Maria: Ah,
não, aqui ficou muito mais leve. Você deixa de ter grandes preocupações. Vou
falar, vou falar mesmo. Por exemplo, eu dava aula no Museu de Arte Moderna.
Quando terminavam as aulas professores e alunos iam à cantina. Muitas ideias
eram trocadas e conversava muito com certo professor, e naquela ocasião, na
década de 80,eu já estava começando a pensar no cinza sempiterno.
De repente, esse
professor me disse que estava preparando um a exposição, não tinha muito
tempo para conversar comigo. Passaram-se três meses e certo dia leio no
jornal que ele ia expor no Museu de Arte Moderna. Li a entrevista e eu
percebi que ele estava repetindo várias frases minhas. Repetiu na maior
caretice, na maior sacanagem. Fiquei uma arara. Pensei, no dia da abertura
da exposição: vou falar com esse cara.
Mas aconteceu o
seguinte e ele é que deve ter ficado uma arara. Quem estava comprando muito
trabalho meu nessa ocasião era o João Sattamini e ele, no dia da abertura, na
entrada do Museu, estava com um catálogo desse professor na mão mostrando
para todo mundo e falando; “Olhem, este cara está copiando o José Maria!”
Jociele lampert:
Quem falou para ele?
José Maria: Foi uma
iniciativa do próprio Sattamini.
Jociele Lampert:
Que barraco! E era o colecionador falando.
José Maria: Era um
ambiente quente, eu sei que tenho amigos que me defendem, mas sei também que
tem sempre alguém que está atacando, atacando mesmo, então, é desse peso que
eu falo. Aqui em Florianópolis não tem esse peso, é muito mais agradável,
você poder conversar, falar o que pensa. E agora acho que eu tenho que falar essas coisas,
como o meio artístico no Rio é pesado,
como é baixo o nível. Acredito que os verdadeiros artistas não devem
se envolver nessas bobagens. Por isso digo, o artista não é um ego, é um eco.
E a arte é, como dizem muitos filósofos, uma coisa ética e estética
simultaneamente. O que acabei de contar foi a primeira que o um artista me
aprontou. Um galerista quis conhecer o meu trabalho, começou a conversar
comigo para eu fazer um contrato com ele e quando o outro artista, que vendia
muito e praticamente sustentava essa galeria soube, e isto quem me contou foi
um colecionador, e este colecionador perguntou para o galerista: porque você
não faz um contrato com o José Maria? Sabe qual foi a resposta? Porque eu não
posso, se eu fizer um contrato com o Zé Maria, perco um artista com o qual
tenho um contrato. Esse artista me disse que sairia da minha galeria. É ele que
sustenta a minha galeria.
Mas felizmente
tenho os meus amigos. E foi o Gonçalo Ivo que interveio e me apresentou aos
donos da Galeria Saramenha, um deles o Vitor Arruda, e assim consegui um bom
contrato.
Apesar do apoio dos
amigos é difícil viver nesse meio.
Jociele Lampert:
Meio artístico selvagem…selvagem é a palavra certa…
José Maria: O meio artístico é
selvagem, selvagem mesmo.
Jociele Lampert: Mas
você acha que a cor por exemplo, na tua pintura mudou?
José Maria: Mudou
mesmo. Porque aqui tem uma atmosfera diferente. O Rio de Janeiro fica mais
próximo do Equador, lá você não tem pequenos contrastes, tem grandes
contrastes. A luz é muito intensa, então a cor é muito intensa também. Aqui
não, a luz é de outro espectro, então você começa a ver mais sutilezas
cromáticas. Nesse sentido acho que isso me enriqueceu muito. Não que eu
esteja copiando esta atmosfera luminosa de Santa Catarina, mas mudou minha
pintura no sentido de detalhar mais o colorido. Eu usava mais cores chapadas e
próximas do espectro que deu origem ao círculo cromático iluminista que já
descartei. Aqui, creio, estou aprofundando meus estudos. Aqui passei a
explorar mais os rompimentos dos tons e, por consequência, a manifestação em meus
quadros do cinza sempiterno. Aproximei-me mais de Espinosa quando ele diz que
a natureza é causa de si mesma e mais, que Deus é a própria natureza.
Compreendi melhor a frase de Cézanne quando ele diz que na natureza tudo está
colorido. Compreendi também a relação do cinza sempiterno com serpenteamento
vinciano. Intuí também que podemos pensar em uma geometria das cores, que nos
pode permitir a construção de um espaço plástico com mais liberdade, chegar
às formas não mais presos às regras de proporção que herdamos da tradição
greco-romana. Resumindo, uma pintura que enfrente o conflito entre a
percepção sensível e a linguagem verbal, ou que faça da arte e engenho uma
coisa só.
Vale lembramo-nos
de Krajcberg quando chegou aqui no Brasil quando disse que a luz mata a cor.
Aqui em Florianópolis sentimos que há uma luz que faz com que percebamos mais
as sutilezas cromáticas.
Jociele Lampert: Você
está de frente para aquela montanha bonita…
José Maria: Pois é,
aquela montanha bonita, outro dia estava falando com uma amiga minha. Tira
aquelas antenas, tira a RBS, para ficar mais parecida com a montanha de Santa
Vitória. Tira um poste que tem em frente a minha janela, uma placa enorme de
trânsito, que atrapalha, tira tudo isso. Quero ser mais livre para ver essas
riquezas cromáticas!
Jociele Lampert: Zé
Maria, muito grata, obrigada, é sempre um prazer ouvir você, você é um
arcabouço de histórias. Então, poder ficar um pouquinho e ter ouvir, acho que é
um presente. Tenho certeza que a publicação ganha muito com as tuas
respostas, isso enriquece também.
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