sexta-feira, 6 de junho de 2014

Racheeel Gutierrez, Machado de Assis e Gumarães Rosa

“É possível que Guimarães Rosa tenha conhecido a fenomenologia de Husserl, mas o que é mais provável é que esse rostinho de menino que seu personagem finalmente encontra simbolize a pureza da alma concebida por Plotino (205 – 270 DC), filósofo neoplatônico que o escritor apreciava  e lia muito.  E para Plotino, o filósofo do Uno, do Nous (-  a mente)  e da Alma, a consciência nos capacita a encontrarmos a verdade dentro de nós mesmos. E é a consciência que leva a encontrar a origem de todas as verdades, isto é – Deus. ( Não posso deixar de lembrar que para  Lévinas,  o rosto humano  – le visage! é a prova da existência de Deus).   Em Plotino, a busca da verdade consiste em fazer o caminho de volta ao mais profundo de nós mesmos. E para tanto, devemos nos tornar independentes da exterioridade corporal, purificando-nos com as virtudes da inteligência e da sabedoria, com a contenção dos desejos, com a coragem, com a justiça e com o amor. Então eu já amava, já aprendendo, a conformidade e a alegria.

O Jacobina de Machado narra uma aventura da sua juventude e, no seu caso, sua alma externa daquela época, é a sua farda de alferes que pode lhe devolver o equilíbrio;  já o personagem de Rosa empreende uma investigação que implica justamente no contrário, em despir-se de todas as roupagens,  de todos os  aspectos externos e  superficiais para chegar ao eu mais profundo, à essência pura, à alma ou luz interior. Como o próprio Guimarães Rosa admite a páginas tantas, ele procura por “os bois atrás do carro”. Gostava de inverter os ditados populares.

Machado, num horizonte filosófico ainda kantiano e newtoniano, nos mostra um fato extraordinário, um fenômeno, uma experiência também, mas no sentido da aventura e é bom lembrar que a literatura do século XIX é conhecida como a escrita da aventura, enquanto que a do século XX, seria a aventura da escrita. Portanto, o personagem machadiano é vítima de circunstâncias desfavoráveis  criadas  pela ausência da tia e a  fuga dos  escravos. - Ficou sem o espelho dos outros. Já o personagem de Rosa, moderno, contemporâneo da fenomenologia, descreve a investigação feita por um solitário, experiência essa que ele qualifica de científica e transcendental, e que ele realiza obsessivamente ao longo de meses,  para só depois de passados muitos anos chegar a um resultado tão misterioso e poético. Diz-se dos mineiros que são sistemáticos e é muito difundida entre nós a piada que explica a relação dos mineiros com a loucura: “mineiro não enlouquece, só piora!”  ........ Deixando as piadas de lado, voltemos aos contos.

 Há um pathos extraordinário tanto no Espelho de um quanto do outro escritor. Mas poderíamos dizer metaforicamente que o personagem machadiano é kantiano porque para Kant, o limite do conhecimento, representado pelo fenômeno, é a coisa em si, além da qual a nossa percepção não pode avançar. E podemos observar também que o Tempo, categoria a priori que constitui, com o Espaço, a condição de possibilidade do conhecimento em Kant, não tem a mesma importância para eles: em Machado, o tempo é o de um acontecimento cristalizado num determinado momento  do passado de Jacobina ;  em  Rosa, o objeto da observação do narrador (que é ele mesmo )   está inserido num tempo que passa sem cessar, e por isso  dificulta a pesquisa. Como é que somos no visível, Nos retratos – o que se pode objetar é que o Tempo tudo transforma... e...  Ah! o tempo é o mágico de todas as traições.  Portanto, a experiência do personagem rosiano é mais longa, mais difícil, mais sutil, porque ele pretende praticar uma “psicologia descritiva”, como aquela fundada pela fenomenologia, pela prática da epoché, a suspensão do juízo, a depuração científica que visa o eidos, a essência, ou  uma ascese plotiniana ou purificação mística que busca atingir a alma.

Dirigindo-se ao leitor, Rosa pergunta: Apalpo o evidente? Tresbusco. Será este nosso desengonço e mundo o plano – intersecção de planos – onde se completam de fazer as almas? E seduzindo-nos, aliciando-nos, pouco antes do fim, pergunta ainda  (e a frase está em negrito): Você chegou a existir?”

Para ver as partes anteriores da palestra:

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