O Espelho
O texto que se refere ao conto de Guimarães Rosa será dividido em dois, pela sua extensão.
GUIMARÃES ROSA
“A primeira frase do conto de Guimarães Rosa, cujo personagem se dirige diretamente ao leitor é:
- Se quer seguir-me, narro-lhe, não uma aventura, mas experiência a que
me induziram, alternadamente, séries de raciocínios e intuições.
O que o narrador de Rosa nos confidencia é uma experiência
ao mesmo tempo científica e mística. Diz: Reporto-me ao transcendente.
Machado dissera “os fatos explicarão melhor os sentimentos.” Pois, para
ele, “os fatos são tudo”. E Rosa, como se quisesse contestá-lo, afirma
logo no primeiro parágrafo: Tudo, aliás, é a ponta de um mistério.
Inclusive os fatos. Ou, a ausência deles. Duvida? Quando nada acontece,
há um milagre que não estamos vendo.
Passa então a descrever vários
tipos de espelhos e a nossa relação com eles porque preocupa-se em saber
em que medida os espelhos são realmente capazes de nos dar uma imagem
fidedigna, de refletir e revelar além das nossas formas, a nossa
verdadeira expressão, o nosso eu. Mas confessa que, como alguns
primitivos, sempre teve medo dos espelhos. E relembra: Não se costumava
tapar os espelhos ou voltá-los contra a parede, quando morria alguém da
casa?
E ficamos sabendo que o que desencadeou a sua pesquisa foi
também um acaso. Certo dia, num banheiro público, onde havia dois
espelhos, ele se viu num ângulo diferente e não se reconheceu. Não só
não se reconheceu como se achou desagradável, repulsivo até. Pois, foi
essa experiência acidental que o impulsionou a procurar o eu por detrás
de si mesmo à tona dos espelhos, em sua lisa, funda lâmina, em seu lume
frio. Levou meses nessa busca e para tanto usou diversos métodos. Aqui o
ritmo do conto de tal modo se acelera e se enriquece que precisamos dar
a palavra ao próprio narrador: (...) Operava com toda sorte de
astúcias: o rapidíssimo relance, os golpes de esguelha, a longa
obliquidade apurada, as contrassurpresas, a finta de pálpebras, a tocaia
com a luz de repente acesa, os ângulos variados incessantemente.
Sobretudo, uma inembotável paciência. Bem mais adiante explica: Saiba
que eu perseguia uma realidade experimental, não uma hipótese
imaginária. E recorre tanto a exercícios espirituais dos jesuítas
quanto a técnicas da Ioga. E, acima de tudo, procura sistematicamente
despir-se de todas as máscaras, disfarces, expressões, semelhanças com
animais, com parentes ou antepassados, visando sempre ao eu essencial.
Diz: Concluí que, interpenetrando-se no disfarce do rosto externo
diversas componentes, meu problema seria o de submetê-las a um bloqueio
“visual” ou angulamento perceptivo, a suspensão de uma por uma, desde as
mais rudimentares, grosseiras, ou de inferior significado.
Ora,
podemos dizer que o que o personagem de Rosa tenta fazer é uma redução
fenomenológica, ou redução eidética para chegar, à essência, ao eidos do
eu. E, na sua obsessão, ao levar às últimas consequências a suspensão
da consciência, ou suspensão do juízo, como diz Husserl, abandona a
investigação e deixa até mesmo de se olhar. E eis que um belo dia,
quando tenta de novo ver-se num espelho, como o Jacobina de Machado, não
se vê! (...) despojara-me ao termo, até à total desfigura.
E
passam-se anos. Até que: ao fim de uma ocasião de sofrimentos grandes...
volta a enxergar no espelho... o tênue começo de um quanto como uma luz
que se nublava (...) Seu mínimo ondear comovia-me, ou já estaria
contido em minha emoção? (...) Por aí, perdoe-me o detalhe, eu já amava –
já aprendendo, isto seja, a conformidade e a alegria. (...) Sim, vi a
mim mesmo, de novo, meu rosto, um rosto; não este, que o senhor
razoavelmente me atribui. Mas o ainda-nem-rosto – quase delineado,
apenas mal emergindo (...). E era não mais que: rostinho de menino, de
menos que menino, só. Só.”
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