quarta-feira, 4 de junho de 2014

De una conferência de Rachel Gutierrez

O Espelho
O texto que se refere ao conto de Guimarães Rosa será dividido em dois, pela sua extensão.
GUIMARÃES ROSA
“A primeira frase do conto de Guimarães Rosa, cujo personagem se dirige diretamente ao leitor é:
- Se quer seguir-me, narro-lhe, não uma aventura, mas experiência a que me induziram, alternadamente, séries de raciocínios e intuições.
O que o narrador de Rosa nos confidencia é uma experiência ao mesmo tempo científica e mística. Diz: Reporto-me ao transcendente. Machado dissera “os fatos explicarão melhor os sentimentos.” Pois, para ele, “os fatos são tudo”. E Rosa, como se quisesse contestá-lo, afirma logo no primeiro parágrafo: Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive os fatos. Ou, a ausência deles. Duvida? Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo.
Passa então a descrever vários tipos de espelhos e a nossa relação com eles porque preocupa-se em saber em que medida os espelhos são realmente capazes de nos dar uma imagem fidedigna, de refletir e revelar além das nossas formas, a nossa verdadeira expressão, o nosso eu. Mas confessa que, como alguns primitivos, sempre teve medo dos espelhos. E relembra: Não se costumava tapar os espelhos ou voltá-los contra a parede, quando morria alguém da casa?
E ficamos sabendo que o que desencadeou a sua pesquisa foi também um acaso. Certo dia, num banheiro público, onde havia dois espelhos, ele se viu num ângulo diferente e não se reconheceu. Não só não se reconheceu como se achou desagradável, repulsivo até. Pois, foi essa experiência acidental que o impulsionou a procurar o eu por detrás de si mesmo à tona dos espelhos, em sua lisa, funda lâmina, em seu lume frio. Levou meses nessa busca e para tanto usou diversos métodos. Aqui o ritmo do conto de tal modo se acelera e se enriquece que precisamos dar a palavra ao próprio narrador: (...) Operava com toda sorte de astúcias: o rapidíssimo relance, os golpes de esguelha, a longa obliquidade apurada, as contrassurpresas, a finta de pálpebras, a tocaia com a luz de repente acesa, os ângulos variados incessantemente. Sobretudo, uma inembotável paciência. Bem mais adiante explica: Saiba que eu perseguia uma realidade experimental, não uma hipótese imaginária. E recorre tanto a exercícios espirituais dos jesuítas quanto a técnicas da Ioga. E, acima de tudo, procura sistematicamente despir-se de todas as máscaras, disfarces, expressões, semelhanças com animais, com parentes ou antepassados, visando sempre ao eu essencial. Diz: Concluí que, interpenetrando-se no disfarce do rosto externo diversas componentes, meu problema seria o de submetê-las a um bloqueio “visual” ou angulamento perceptivo, a suspensão de uma por uma, desde as mais rudimentares, grosseiras, ou de inferior significado.
Ora, podemos dizer que o que o personagem de Rosa tenta fazer é uma redução fenomenológica, ou redução eidética para chegar, à essência, ao eidos do eu. E, na sua obsessão, ao levar às últimas consequências a suspensão da consciência, ou suspensão do juízo, como diz Husserl, abandona a investigação e deixa até mesmo de se olhar. E eis que um belo dia, quando tenta de novo ver-se num espelho, como o Jacobina de Machado, não se vê! (...) despojara-me ao termo, até à total desfigura.
E passam-se anos. Até que: ao fim de uma ocasião de sofrimentos grandes... volta a enxergar no espelho... o tênue começo de um quanto como uma luz que se nublava (...) Seu mínimo ondear comovia-me, ou já estaria contido em minha emoção? (...) Por aí, perdoe-me o detalhe, eu já amava – já aprendendo, isto seja, a conformidade e a alegria. (...) Sim, vi a mim mesmo, de novo, meu rosto, um rosto; não este, que o senhor razoavelmente me atribui. Mas o ainda-nem-rosto – quase delineado, apenas mal emergindo (...). E era não mais que: rostinho de menino, de menos que menino, só. Só.”

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