sexta-feira, 27 de junho de 2014

Trecho do ensaio “A poesia e o livre mercado” do poeta mexicano Octavio Paz,

Trecho do ensaio “A poesia e o livre mercado” do poeta mexicano Octavio Paz,

Desde a era do romantismo, os leitores de poemas têm sido figuras solitárias e dissidentes, assim como os próprios poetas, aliás. São poetas e leitores burgueses, sim, mas revoltados contra seu passado, sua classe social e a ética do mundo.

Com exceção de meia dúzia aristocratas, todos os poetas modernos pertenceram e pertencem à classe média. Todos eles cursaram faculdade. Alguns foram advogados, jornalistas, médicos, professores e diplomatas, outros foram executivos de publicidade ou relações públicas, banqueiros, empresários, burocratas importantes. Alguns poucos, como Verlaine e Rimbaud, foram parasitas.

Estamos vivendo uma mudança dos tempos: não uma revolução, no sentido mais profundo e duradouro da palavra, uma revolta – uma volta à origem, um retorno ao início. Estamos testemunhando não o fim da história, como afirmou um certo professor universitário nos Estados Unidos, mas um reinício.

Hoje em dia a literatura e as artes estão expostas a um perigo diferente: estão sendo ameaçadas não por uma doutrina ou período político mas por um processo econômico sem rosto, sem alma e sem direção. O mercado é circular, impessoal, inflexível. Alguns me dirão que está certo, que é assim mesmo que deveria ser. Talvez. Mas o mercado, cego e surdo, não aprecia riscos, não sabe como escolher.

Num mundo governado pela lógica do mercado, ou pelo planejamento estatal nos países comunistas, a poesia é uma atividade que não traz retorno algum. Seus produtos são praticamente e quase inteiramente inúteis. Para a mente moderna, embora ela não não admita isto para si própria, a poesia é energia, tempo e talento voltados a objetos supérfluos. No entanto, contrariando toda a lógica, a poesia circula e é lida. Rejeitando o mercado, custando quase nada, ela passa de boca a boca, como o ar e a água. Seu valor e sua utilidade não podem ser medidos; um homem rico em poesia pode ser um mendigo. E os poemas não podem ser economizados para formar uma poupança para firmar uma poupança: eles têm q ser gastos.

quinta-feira, 19 de junho de 2014









CÉZANNE E A SUPERFÍCIE DO QUADRO E O PLANO PICTÓRICO (A ATMOSFERA À SUA FRENTE) 
Frases de Cézanne: “Tratar a natureza através do cone, da esfera e do cilindro, [...].” “Os corpos na natureza são todos convexos.” “Entre o objeto e o pintor se interpõe um plano, a atmos- fera.”“A Natureza é mais em profundidade que em superfície.” “Quero chegar à perspectiva unicamente pelas cores.” 
Frases de Braque: “Não é o bastante fazer ver o que se pinta, é preciso ainda fazer tocar.” “O espaço visual. O espaço tátil. O espaço manual.” Desdobramento Percebemos uma superfície não em duas dimensões, mas em três, sendo que a terceira é dada pela distância entre o observador e essa superfície. Na medida em que se aproxima dessa superfície, mais presente vai se formando a necessidade de tocá-la, ou seja, mais o tátil se manifesta.  Mais próximo ainda chega-se ao espaço manual. Isso nos remete ao que Poussin afirma sobre as diversas distâncias quando nosso olhar é prospectivo. Essas distâncias demonstram que, quanto mais afastado o observador estiver, mais o espaço é visual. Com a aproximação chega ao espaço manual passando pelo espaço tátil.

Fig. 9 - Cézanne

Se compararmos os dois quadros de Cézanne com um de Van Gogh podemos perceber que o espaço plástico cezanneano acontece à frente do quadro, e nesta atmosfera a que ele se referia, enquanto que em Van Gogh o espaço acontece além da superfície do suporte como ilusão. Cézanne rompe com o conceito do espaço plástico proposto por Alberti, uma pirâmide cuja base coincide com a superfície do suporte e o vértice dessa pirâmide ilusoriamente se situa além dessa superfície.   
Fig. 10 - Cézanne

Fig. 11 - Van Gogh
Creio que isso pode nos levar a uma investigação mais profun- da das descobertas cezanneanas, inclusive para entendermos os valores hápticos que são uma das propostas destas observações. O que temos de investigar de início: o que ocorre nesse plano que se interpõe entre o modelo e o pintor? Mas se deve anotar que Cézanne conseguiu chegar a esse olhar pesrpectivo unicamente pelas cores. E a um olhar, nesses últimos quadros, já totalmente desligado de quaisquer resquícios da perspectiva renascentista.  Aqui um parêntesis. Na geometria euclidiana os sólidos geométricos são acromáticos, portanto, abstrações, uma vez que na natureza, segundo Cézanne, tudo está colorido.  E mais ainda. Para ele cor e for- ma são uma só coisa. Daí ter dito que “quanto mais a cor se harmoniza, mais a forma se precisa.” Se observarmos esses dois quadros de Cézanne, realizados em sua maturidade, veremos que o espaço plástico se manifesta como uma superfície com vários acidentes sobre o plano do suporte projetando-o para frente, vindo a coincidir com este no qual nos orientamos.  Como as cores são concretas adjetivas, têm uma dimensão temporal, surgem pequenas superfícies ora cônicas, ora cilíndricas, ora esféricas (uma das formas das pequenas sensações?), pequenas superfícies  em constante transformação.  Como estamos de tal forma condicionados a pensarmos no espaço a partir daqueles sólidos geométricos, temos que fazer um certo esforço para percebermos Para melhor percebermos o que tento mostrar, podemos comparar esses quadros de Cézanne com a paisagem de Van Gogh. No quadro deste, o espaço plástico está ainda além da superfície do suporte,  e nele uma série de acidentes, mas sem uma dimensão temporal.  Tais fenômenos não se dão às explicações racionais e ao discurso ver- bal – pertencem unicamente ao pensamento plástico. Estas anotações, as- sim, ficam por aqui. Que o olho as faça perceptíveis, é o que pretendemos.como Cézanne rompeu com padrões culturalmente internalizados em nossos espíritos. 
 Para melhor percebermos o que tento mostrar, podemos comparar esses quadros de Cézanne com a paisagem de Van Gogh. No quadro deste, o espaço plástico está ainda além da superfície do suporte,  e nele uma série de acidentes, mas sem uma dimensão temporal.  Tais fenômenos não se dão às explicações racionais e ao discurso ver- bal – pertencem unicamente ao pensamento plástico. Estas anotações, as- sim, ficam por aqui. Que o olho as faça perceptíveis, é o que pretendemos.




domingo, 15 de junho de 2014

José Maria Dias da Cruz - o/s/t - 1988


José Maria Dias da Cruz - Vórtice - o/s/t -


José Maria Dias da Cruz - o/s/t - 80 x 100 - 2012


O Polvo - Ivan Junqueira - Assemblaçes de pintura e poesia José Maria Dias da Cruz

O Polvo - Ivan Junqueira

Segue uma carta que estou enviando a todos meus queridos amigos, e são muitos. E você já está entre eles por ter compreendido tão facilmente aquilo que pretendo apontar, o cinza sempiterno. Sabia que muitos não o querem experenciar? Nem experenciar, nem ouvir...

Segue, então, um poema. O polvo é o poeta ou artista que tudo espia, que se agita e que, na sua fome de criar, faz o poema aparecer como uma luz que é carregada à tona por um anjo mensajeiro, talvez o mesmo da anunciação.

As palavras me comovem! Difícil tê-las livre de seu poder, - e você as tem - visto que em todo o poder há uma parte de limitação ou de arrependimento. Daí colar esse poema do Ivan Junqueira, O Polvo.

É um meta poema se o vermos como auto referente, quando se limita só ao seu aparecer como poema. No golfo um polvo hermético... No golfo o poeta... Mas não é só isso.

Deixa mais ainda de ser meta poema se considerarmos a luz que se fez poema. Então, de ela onde veio?

Uma luz-poema, eis o que os artistas procuram sem saber se inutilmente. Pois todas a coisas tem seu tempo. E assim sempre No golfo um polvo hermético se move
entre algas de silêncio e solidão. Quem iluminou o poeta? Só os anjos sabem?

Já me ocupei desse poema em um de meus desenhos, assemblages de pintura e poesia. Ao poema contrapus o cinza sempiterno. Talvez possa refazê-lo, e ele, o desenho, terá então uma história. E que esta seja alegre.

Talvez esse e-mail já seja uma parte do desenho.

Abraços do
José Maria
_________________________

Vou ficar esperando sua resposta.

Com toda a admiração do
José Maria

O POLVO

No golfo um polvo hermético se move
entre algas de silêncio e solidão;
no golfo, um polvo, aquático espião,
agita seus tentáculos, remove,
sem trégua, a lama espessa que recobre
o tácito esqueleto de seu pão.
Mas não sabe a polpa nem o grão
do plasma em chamas que o molusco engole.
Sabe-se apenas que o animal se inclina,
voraz, sobre a nudez da essência pura
e nela enterra a fome de seu dente.
Sabe-se mais: que o mar se transfigura
e à tona envia um anjo incandescente
quando no golfo o polvo se ilumina.

Ivan Junqueir
 

quarta-feira, 11 de junho de 2014

José Maria Dias da Cruz - 2001


Francisco Marcelo Cabral, Milton Machado, Delacroix, Gainsborough ( O menino azul) e Maecel Duchamp

José Marias Dias da Cruz - VISIBILIDADE E INVISIBILIDADE (Henry Atllan)

VISIBILIDADE E INVISIBILIDADE

Ao rompermos um tom, sua tonalidade muda em direção a sua oposta. Mas não há como tornar visíveis o cinza sempiterno e o serpenteamento que dele decorrem no sentido de animar o espaço plástico antes de se tornarem fenômenos cromáticos, porque se situam nessa área de não visibilidade. Tornam-se visíveis, e fenômenos, apenas quando se manifestarem na natureza, mas tanto um quanto outro se nos mostram como outros níveis de realidade.  Como pós ou pré-fenômenos nos são interditados. Isto não nos impede, entretanto, de nosso pensamento construir a lógica que os rege e de até permitir uma figuração esquemática. Aproximamos, assim, da lógica do terceiro incluído. Seguindo o pensamento de Wittgenstein, diremos também que essa lógica não esclarece o enigma. Podemos agora afirmar que a visibilidade não é permanente, mas um processo de visibilidade e não visibilidade, uma e outra com suas lógicas próprias e interdependentes que criam uma terceira lógica. Esta minha tomada de posição, acredito, confirma o que penso: a teoria antecedendo a experimentação como uma metodologia. E também permitindo outra percepção da arte conceitual. Antes do conceito e da realização, a lógica que rege a obra. Para uma compreensão do que pretendo mostrar, transcrevo aqui uma citação do Biólogo Henry Atlan, retirada de seu livro Entre o Cris- tal e a Fumaça, Editora Zahar, Rio de Janeiro. “[...] a organização dos seres vivos não é estática, nem tampouco um processo que se oponha a forças e desorganização. Mas antes um processo de desorganização permanente seguida de reorganização, com o aparecimento de propriedades novas, quando a desorganização pode ser suportada e não mata o sistema. Em outras palavras, a morte do sistema faz parte da vida, não apenas por sob a forma de uma potencialidade dialética, mas como uma parte intrínseca de seu funcionamento e sua evolução: sem perturbações ao acaso, sem desorganização, não há reorganização adaptativa ao novo; sem um processo de morte controlada, não há processo de vida.”

terça-feira, 10 de junho de 2014

Sempiterno - Elisa Lobo

Sempiterno
Sempre
Eterno
No instante
Alucinante
E terno


Elisa Lobo

José Maria Doas da Cruz - Cézanne e uma geometria das cores

Cézanne e uma geometria das cores

As cores são enigmáticas. Cézanne fez referência a um cinza que rei- na em toda a natureza e que pintava uma secção do espaço. O cinza oni- presente, os cinzas sempiternos, sua lógica e os acasos, as várias dimensões das cores, a questão de uma centralidade não absoluta, os rompimentos dos tons, os contrastes considerando-se uma dinâmica cromática, harmo- nias e desarmonias, o serpenteamento, as cores abstratas substantivas e as concretas adjetivas, podem nos levar a algumas reflexões. Consideramos as várias geometrias conhecidas e aquelas que, pelo acaso, hão de vir. Na década de sessenta do século passado, pensei que uma rea- lidade poderia se desdobrar em outras. Surgiram os quadros os quais denominei formulários. As cores eram timidamente pensadas graças às impressões que tive, dez anos antes, quando pela primeira vez vi ao vivo quadros de Poussin, Cézanne e Braque. Dez anos depois, essas ideias se adensaram. Afirmei, então, que pelos diversos desdobramentos de uma realidade chegar-se-ia a um estado de confusão em nossos pensamentos a tal ponto que o acaso seria o limite daqueles. A geometria dos fractais, descoberta na década de sessenta, e a teoria do caos ainda eram desco- nhecidas do grande público. Foram divulgadas para os leigos em 1980. Pintei naturezas mortas considerando aquelas minhas observações. Na década de oitenta, mais próximo daqueles três grandes artistas aos quais me referi, pensei no cinza sempiterno, já inteiramente interessado nos fenômenos cromáticos. Hoje penso em uma geometria das cores. Vejamos, há o cinza onipresente que contém todos os coloridos ou um colorido total, cinza esse que nos é interditado. Restam-nos os cinzas sempiternos, causa e efeito dos coloridos. Um colorido, portanto, é uma fração e dele podemos dizer que, como fração, é maior que o todo, pois que, para nós homens, esse todo é inatingível. Como as cores possuem várias dimensões, diremos que elas estão sempre se auto-organizando dentro de um colorido. Acontecimentos ao acaso participam desse pro- cesso, pois um colorido, pela sua dinâmica própria, pode gerar outros cinzas sempiternos, ou seja, outros fracionamentos em seu interior pela agregação de alguns poucos coloridos. Os acasos seriam, portanto, as novas convivências cromáticas que surgiriam da necessidade dessa au- to-organização e do surgimento de outros cinzas sempiternos: digamos, novas cores que participariam do colorido em outro nível de realidade. Há o fato de que cada cor concreta adjetiva ao conter sua oposta, formando um par, é afirmar que contém, também, um cinza sempiterno. Cada cor poderia ser, neste caso, uma unidade irredutível por trazer em si certa potência? Cézanne afirma que a harmonia geral se dá por si só. Antes de se dar, teríamos uma desarmonia? Há um limite, entretanto, pois uma auto-organização se encami- nharia para o cinza onipresente que, como dissemos, nos é interditado. Dependendo de nós como testemunhas, um colorido se desorganizaria e se autodestruiria caso se mantivesse dentro de certos limites e em um único nível de realidade. Somos levados a escolher algumas poucas cores ou acidentes decorrentes do acaso para mantermos a dinâmica do colo- rido e não nos perdermos evitando um fim prematuro desse colorido ao se tornar estático e quando princípio, fim e perfeição são uma coisa só.
Pinturas, cores e coloridos – 19
Por isso falo do acaso da última pincelada em uma pintura, por exemplo, e cito Cézanne quando ele afirma que a harmonia se dá por si só. Essa seria uma pincelada-limite. Um novo processo de auto-orga- nização se inicia, e assim sucessivamente até onde nossos sentidos são capazes de suportar. A vida de um colorido depende de seu princípio, o cinza onipresente, e de seu fim, nossa própria “morte”, quando cessam os limites de nossos sentidos. Há, contudo, uma existência que nos foi permitida. Volto a citar Braque: “É o acaso que nos revela a existência.” Para nós estes cinzas sempiternos são um princípio e um fim, pois são, um pré ou pós-fenômeno. Princípio este quando intuímos que deles surgem os coloridos. Os pós-fenômenos, os acontecimentos dentro dos coloridos, representam a permanência de uma convivência entre as cores. Um fim quando se auto desorganizam, quando nossos sentidos não mais nos permitem a percepção da manifestação dos rompimentos dos tons e dos cinzas sempiternos. Reorganizar-se-iam em outro nível de realidade, quando a convivência entre as cores se desse pelos movi- mentos concêntricos e excêntricos no sentido de um cinza sempiterno. Compreendemos Baudelaire quando ele se refere ao prazer e ao pecado. Apoiados nessa referência, diremos que as cores são simultaneamente o prazer e o pecado. O fim absoluto dos acasos coincide com o nosso fim: a nossa própria morte. Pelas cores podemos refletir sobre a ética. O nosso esforço para não nos perdermos no colorido tem um sentido ético. O enigma, entre- tanto, continua.

Sem título - o/s/t - 80 x 100 cm 1999


José Maria Dias ds Cruz - o/s/t - 60 x 73 cm


José Maria Dias da Cruz - A Lamparina - o/s/t - 2005 - 60 x 73 cm


JOsé Maria Dias da cruz - o/s/t 1988 -


sexta-feira, 6 de junho de 2014

José Maria Dias da cruz - Vermelho para Alice - o/s/t - 80 x 100 cm - 2014

 Vermelho para Alice - 80 x 100 - o/s/t - 2014

Racheeel Gutierrez, Machado de Assis e Gumarães Rosa

“É possível que Guimarães Rosa tenha conhecido a fenomenologia de Husserl, mas o que é mais provável é que esse rostinho de menino que seu personagem finalmente encontra simbolize a pureza da alma concebida por Plotino (205 – 270 DC), filósofo neoplatônico que o escritor apreciava  e lia muito.  E para Plotino, o filósofo do Uno, do Nous (-  a mente)  e da Alma, a consciência nos capacita a encontrarmos a verdade dentro de nós mesmos. E é a consciência que leva a encontrar a origem de todas as verdades, isto é – Deus. ( Não posso deixar de lembrar que para  Lévinas,  o rosto humano  – le visage! é a prova da existência de Deus).   Em Plotino, a busca da verdade consiste em fazer o caminho de volta ao mais profundo de nós mesmos. E para tanto, devemos nos tornar independentes da exterioridade corporal, purificando-nos com as virtudes da inteligência e da sabedoria, com a contenção dos desejos, com a coragem, com a justiça e com o amor. Então eu já amava, já aprendendo, a conformidade e a alegria.

O Jacobina de Machado narra uma aventura da sua juventude e, no seu caso, sua alma externa daquela época, é a sua farda de alferes que pode lhe devolver o equilíbrio;  já o personagem de Rosa empreende uma investigação que implica justamente no contrário, em despir-se de todas as roupagens,  de todos os  aspectos externos e  superficiais para chegar ao eu mais profundo, à essência pura, à alma ou luz interior. Como o próprio Guimarães Rosa admite a páginas tantas, ele procura por “os bois atrás do carro”. Gostava de inverter os ditados populares.

Machado, num horizonte filosófico ainda kantiano e newtoniano, nos mostra um fato extraordinário, um fenômeno, uma experiência também, mas no sentido da aventura e é bom lembrar que a literatura do século XIX é conhecida como a escrita da aventura, enquanto que a do século XX, seria a aventura da escrita. Portanto, o personagem machadiano é vítima de circunstâncias desfavoráveis  criadas  pela ausência da tia e a  fuga dos  escravos. - Ficou sem o espelho dos outros. Já o personagem de Rosa, moderno, contemporâneo da fenomenologia, descreve a investigação feita por um solitário, experiência essa que ele qualifica de científica e transcendental, e que ele realiza obsessivamente ao longo de meses,  para só depois de passados muitos anos chegar a um resultado tão misterioso e poético. Diz-se dos mineiros que são sistemáticos e é muito difundida entre nós a piada que explica a relação dos mineiros com a loucura: “mineiro não enlouquece, só piora!”  ........ Deixando as piadas de lado, voltemos aos contos.

 Há um pathos extraordinário tanto no Espelho de um quanto do outro escritor. Mas poderíamos dizer metaforicamente que o personagem machadiano é kantiano porque para Kant, o limite do conhecimento, representado pelo fenômeno, é a coisa em si, além da qual a nossa percepção não pode avançar. E podemos observar também que o Tempo, categoria a priori que constitui, com o Espaço, a condição de possibilidade do conhecimento em Kant, não tem a mesma importância para eles: em Machado, o tempo é o de um acontecimento cristalizado num determinado momento  do passado de Jacobina ;  em  Rosa, o objeto da observação do narrador (que é ele mesmo )   está inserido num tempo que passa sem cessar, e por isso  dificulta a pesquisa. Como é que somos no visível, Nos retratos – o que se pode objetar é que o Tempo tudo transforma... e...  Ah! o tempo é o mágico de todas as traições.  Portanto, a experiência do personagem rosiano é mais longa, mais difícil, mais sutil, porque ele pretende praticar uma “psicologia descritiva”, como aquela fundada pela fenomenologia, pela prática da epoché, a suspensão do juízo, a depuração científica que visa o eidos, a essência, ou  uma ascese plotiniana ou purificação mística que busca atingir a alma.

Dirigindo-se ao leitor, Rosa pergunta: Apalpo o evidente? Tresbusco. Será este nosso desengonço e mundo o plano – intersecção de planos – onde se completam de fazer as almas? E seduzindo-nos, aliciando-nos, pouco antes do fim, pergunta ainda  (e a frase está em negrito): Você chegou a existir?”

Para ver as partes anteriores da palestra:

quarta-feira, 4 de junho de 2014

De una conferência de Rachel Gutierrez

O Espelho
O texto que se refere ao conto de Guimarães Rosa será dividido em dois, pela sua extensão.
GUIMARÃES ROSA
“A primeira frase do conto de Guimarães Rosa, cujo personagem se dirige diretamente ao leitor é:
- Se quer seguir-me, narro-lhe, não uma aventura, mas experiência a que me induziram, alternadamente, séries de raciocínios e intuições.
O que o narrador de Rosa nos confidencia é uma experiência ao mesmo tempo científica e mística. Diz: Reporto-me ao transcendente. Machado dissera “os fatos explicarão melhor os sentimentos.” Pois, para ele, “os fatos são tudo”. E Rosa, como se quisesse contestá-lo, afirma logo no primeiro parágrafo: Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive os fatos. Ou, a ausência deles. Duvida? Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo.
Passa então a descrever vários tipos de espelhos e a nossa relação com eles porque preocupa-se em saber em que medida os espelhos são realmente capazes de nos dar uma imagem fidedigna, de refletir e revelar além das nossas formas, a nossa verdadeira expressão, o nosso eu. Mas confessa que, como alguns primitivos, sempre teve medo dos espelhos. E relembra: Não se costumava tapar os espelhos ou voltá-los contra a parede, quando morria alguém da casa?
E ficamos sabendo que o que desencadeou a sua pesquisa foi também um acaso. Certo dia, num banheiro público, onde havia dois espelhos, ele se viu num ângulo diferente e não se reconheceu. Não só não se reconheceu como se achou desagradável, repulsivo até. Pois, foi essa experiência acidental que o impulsionou a procurar o eu por detrás de si mesmo à tona dos espelhos, em sua lisa, funda lâmina, em seu lume frio. Levou meses nessa busca e para tanto usou diversos métodos. Aqui o ritmo do conto de tal modo se acelera e se enriquece que precisamos dar a palavra ao próprio narrador: (...) Operava com toda sorte de astúcias: o rapidíssimo relance, os golpes de esguelha, a longa obliquidade apurada, as contrassurpresas, a finta de pálpebras, a tocaia com a luz de repente acesa, os ângulos variados incessantemente. Sobretudo, uma inembotável paciência. Bem mais adiante explica: Saiba que eu perseguia uma realidade experimental, não uma hipótese imaginária. E recorre tanto a exercícios espirituais dos jesuítas quanto a técnicas da Ioga. E, acima de tudo, procura sistematicamente despir-se de todas as máscaras, disfarces, expressões, semelhanças com animais, com parentes ou antepassados, visando sempre ao eu essencial. Diz: Concluí que, interpenetrando-se no disfarce do rosto externo diversas componentes, meu problema seria o de submetê-las a um bloqueio “visual” ou angulamento perceptivo, a suspensão de uma por uma, desde as mais rudimentares, grosseiras, ou de inferior significado.
Ora, podemos dizer que o que o personagem de Rosa tenta fazer é uma redução fenomenológica, ou redução eidética para chegar, à essência, ao eidos do eu. E, na sua obsessão, ao levar às últimas consequências a suspensão da consciência, ou suspensão do juízo, como diz Husserl, abandona a investigação e deixa até mesmo de se olhar. E eis que um belo dia, quando tenta de novo ver-se num espelho, como o Jacobina de Machado, não se vê! (...) despojara-me ao termo, até à total desfigura.
E passam-se anos. Até que: ao fim de uma ocasião de sofrimentos grandes... volta a enxergar no espelho... o tênue começo de um quanto como uma luz que se nublava (...) Seu mínimo ondear comovia-me, ou já estaria contido em minha emoção? (...) Por aí, perdoe-me o detalhe, eu já amava – já aprendendo, isto seja, a conformidade e a alegria. (...) Sim, vi a mim mesmo, de novo, meu rosto, um rosto; não este, que o senhor razoavelmente me atribui. Mas o ainda-nem-rosto – quase delineado, apenas mal emergindo (...). E era não mais que: rostinho de menino, de menos que menino, só. Só.”