Encontro-me
em tal estado de perturbações cerebrais, numa perturbação tão grande,
que temo que num dado momento minha frágil razão venha a romper-se [...]
Conseguirei chegar ao objetivo tão procurado e tão longamente
perseguido? Estudo sempre a partir da natureza e me parece que faço
lentos progressos.
Paul Cézanne
“Dizer a verdade em pintura”,
nada menos que isso era a exigência que Cézanne fazia a si próprio. Daí
que soluções fáceis eram para ele repugnantes; mesmo a grande pintura
praticada por seus colegas de um antigo combate, o combate do
impressionismo, numa certa altura de sua obra já não mais lhe indicava
um caminho possível. O grande olho de Monet era para Cézanne, ao fim e
ao cabo, somente um olho. Olho que em sua radical percepção das coisas
praticamente as alucinava numa pletora de cores contrastantes de
inaudito frescor, de rara beleza e de inédita superficialidade. Ainda
que não fosse uma solução fácil, a radical pintura óptica de Monet não
poderia mesmo indicar um caminho a Cézanne; era preciso, para o mestre
de Provence, recuperar o peso próprio das coisas, reencontrar o objeto
por trás da atmosfera impressionista,
chegar outra vez à profundidade sem, contudo – daí a originalidade de
sua obra –, poder se apoiar nos recursos tradicionais da pintura como o
modelado através do escorço, o contorno definido e definidor do objeto, a
perspectiva linear, entre outros; recursos esses que àquela altura o
melhor impressionismo já havia tornado anacrônicos. Era preciso tudo
isso e muito mais tendo como único apoio o estudo a partir da natureza;
natureza essa que o pintor não compreendia como uma unidade composta
pela soma dos entes dada facilmente aos sentidos e ao entendimento, mas
como o agenciamento de um conjunto de elementos diversos, pulsantes,
vibrantes e brutos, os quais uma única pincelada deveria poder restituir
à tela. Tamanha exigência só poderia mesmo causar fortes dúvidas quanto
aos resultados e, no entanto, a dúvida de Cézanne tornou-se um dos
grandes adventos, senão o maior, da arte moderna; tornou-se a certeza
planar de Picasso e Braque; a certeza da construção pela cor de Matisse;
voltou a tornar-se dúvida e enigma da visão em Giacometti; tornou-se
sutil modulação do espaço pela tonalidade em Morandi; a sua dúvida
tornou-se a certeza do anti antropomorfismo em Beckett; tornou-se anti
subjetivismo e anti psicologismo em Straub. Ora, esse grande advento que
impressionou e não cessa de impressionar os mais variados artistas não
poderia deixar de inspirar também os filósofos.
Coube a Merleau-Ponty a tarefa de pensar radicalmente com essa
pintura radical. E o que se nota ao ler seus textos que direta ou
indiretamente se relacionam com o problema Cézanne é – para além de uma
profunda compreensão das linhas de força da pintura do mestre de
Provence, e da pintura de um modo geral, rara entre filósofos – uma
verdadeira afinidade entre duas formas de pensamento inaugurais, um
filosófico e outro pictórico. Haveria entre o pensamento de
Merleau-Ponty e a pintura de Cézanne não somente uma afinidade, mas um
verdadeiro imbricamento? Um dos pontos desse trabalho pretende esboçar
uma resposta a essa questão. O outro ponto a ser discutido, que de algum
modo se relaciona com o primeiro, diz respeito à radicalização da
pintura de Cézanne nos últimos anos de sua produção, expressa nas
magistrais pinturas da Montanha Santa Vitória; radicalização essa que,
nos parece, escapa à análise de Merleau-Ponty e, no entanto, pode ser
análoga à radicalização do pensamento de Ponty de uma fenomenologia da
percepção ou do corpo a uma ontologia do ser bruto, da carne.
A obra de Cézanne, que já havia merecido alguns comentários na
Fenomenologia da percepção
adquire no ensaio "A dúvida de Cezanne" um verdadeiro peso que, antes
de fornecer uma espécie de instrumento para testar proposições
filosóficas – como é comum em vários autores –, seria a manifestação
concreta de que uma filosofia que põe abaixo as antinomias entre
sensível e inteligível, aparência e essência, verdade e historicidade,
determinação e liberdade; seria, além de possível, a tarefa mesma de um
pensamento que se quisesse moderno. Ora, somente esse deslocamento de
abordagem que recusa pensar a pintura como um objeto garantiria ao
ensaio de Merleau-Ponty uma importância histórica inalienável no
interior do ensaísmo filosófico. Além disso, a abordagem do filósofo
possui ainda o mérito de renovar a interpretação a respeito da obra de
Cézanne que, à altura do ano de 1945, era tida como precursora dos
grandes movimentos modernistas, elogio genérico alimentado pela vulgata
cubista que, ao invés de lançar luz sobre a obra de Cézanne, mais a
ofuscava. Nesse sentido, a abordagem de Ponty vai na contramão da
teleologia modernista e restitui à obra de Cézanne a vibração, a
irradiação, a pulsão do sensível escamoteada pela abordagem racionalista
de um certo cubismo capaz de ver no mestre de Aix somente a
racionalidade planar da construção do quadro. Tanto a primeira
característica apontada – pensar com a pintura e não sobre a pintura –,
quanto a segunda – renovar a leitura da obra analisada –, decorrem de
uma abordagem moderna da obra de arte que a reconhece como fruto de uma
racionalidade intrínseca, irredutível à cultura, que opera naturalmente
em diálogo com a tradição e, sobretudo, que produz sentido no ato mesmo
de produção e através de seus próprios recursos. Desse modo, causa certo
estranhamento quando Merleau-Ponty, ao se recusar a interpretar
ingenuamente o sentido da obra de Cézanne a partir de sua vida,
acrescenta ainda que “não conheceríamos melhor esse sentido pela
história da arte, isto é, reportando-nos às influências, aos
procedimentos de Cézanne, ou ao seu próprio testemunho sobre sua
pintura”.
Porém, o que leremos em seguida é justamente uma interpretação
brilhante das influências, dos procedimentos e dos testemunhos de
Cézanne; interpretação que não deixaria de causar impressão em célebres
historiadores da arte, entre os quais Giulio Argan que, em seu clássico
livro sobre a arte moderna, paga altos tributos à interpretação de
Merleau-Ponty. Destacaria uma passagem significativa em que Ponty
interpreta a obra de Cézanne combinando uma análise da relação do pintor
com o impressionismo, de seus procedimentos e de seus testemunhos. “O
objeto”, diz Merleau-Ponty, “não está mais coberto de reflexos, perdido
em suas relações com o ar e os outros objetos, ele é como que iluminado
secretamente do interior, a luz emana dele, e disso resulta uma
impressão de solidez e materialidade”.
Nessa passagem curta o filósofo explica a especificidade da obra de
Cézanne em relação às obras impressionistas – a impressão de solidez e
materialidade dos objetos – diferença que decorreria em grande medida do
fato de as coisas serem como que iluminadas do interior Essa
interpretação de Merleau-Ponty fundamenta-se também nas palavras de
Cézanne: o pintor considerava, aliás, um de seus maiores trunfos a
descoberta de que a luz é uma abstração.
Aqui está, sem contestação possível — tenho
plena certeza: no nosso órgão visual produz-se uma sensação óptica que
nos faz classificar como luz, meio tom e quarto de tom os planos
representados pelas sensações colorantes. A luz, portanto, não existe
para o pintor... A luz é algo que não se pode reproduzir, mas que se
deve representar por outra coisa, pela cor. Fiquei satisfeito comigo
quando descobri isso. (grifo meu)
A pintura abaixo (fig. 1), que com muito pesar denominaríamos uma
natureza morta, solicita do olhar algo profundamente diferente de um
passeio pelos cheios e vazios criados tradicionalmente pela modelação
dos objetos através da luz.
Fig.1: Jarro e frutas, 1893
Não há cor local nessa pintura, isto que foi sempre o artifício da
pintura naturalista, mas vibrações cromáticas que, além de iluminarem o
objeto desde dentro – como a pera avermelhada, incandescente, que parece
saltar da superfície do quadro –, criam rimas internas, não raro
dissonantes, cujo efeito é enfatizar uma espécie de relação de
necessidade entre as coisas. “É como se cada ponto soubesse de todos os
outros”
– como se a pera à direita prestes a desabar se equilibrasse por um
instante em função de outra à esquerda, de peso e presença inequívocos
em sua pletora de verdes. Todo o arranjo dessa natureza viva, a fruta
inacabada ao fundo, os pés da mesa fundidos pela cor, a sutil distorção
da parte direita da mesa, esta beleza que por falta de melhor palavra
chamamos de fundo, este vaso que ocupa um plano distinto do resto dos
objetos, enfim, tudo concorre para produzir esse estranho efeito das
melhores obras de Cézanne, que consiste em vermos um acontecimento de
fato acontecendo, com o perdão da tautologia:
“Nesse vaivém de
influência mútua e múltipla, o interior do quadro vibra, eleva-se e cai
de volta em si mesmo, sem que nenhuma parte fique parada”. Algo como a temporalização do espaço, descrita magistralmente por Merleau-Ponty:
Cézanne não acreditou ter que escolher entre
a sensação e o pensamento, como entre caos e ordem. Ele não quer
separar as coisas fixas que aparecem ao nosso olhar e sua maneira fugaz
de aparecer, quer pintar a matéria em via de se formar, a ordem nascendo
por uma organização espontânea.
Disso se compreende a peculiar redução empreendida por Cézanne. Todos
os hábitos da pintura tradicional, sobretudo a perspectiva linear –
segunda natureza da visualidade ocidental – são postos entre parênteses
por essa pintura apegada ao sensível. Nesse sentido, a questão da cor em
Cézanne discutida até aqui possui uma relação direta com o problema da
profundidade em pintura. Pois é por meio da cor que Cézanne, iluminando
os objetos de dentro, constrói a profundidade do quadro – como no
célebre quadro dos jogadores de cartas, que embora não seja das mais
radicais pinturas de Cézanne, já anuncia o que está por vir. Ora, a
janela ou porta ao fundo é quase um comentário sobre a passagem de uma
concepção de profundidade que se produz através da perspectiva linear –
cujo corolário seria o quadro como janela para o mundo, na célebre
expressão de Alberti – a uma concepção de profundidade criada por meio
da materialidade mesma da cor – cujo corolário seria o quadro não como
uma janela, mas como um anteparo, na expressão de Alberto Tassinari.
Fig. 2: Os jogadores de carta, 1890
Os múltiplos toques de cor produzem pequenas diferenciações, pequenas
modulações do espaço, irredutíveis a qualquer medida, impossíveis de
serem atribuídos a distâncias mensuráveis. Nas palavras de Robert
Kudielka, que não por acaso se apoiam em Merleau-Ponty:
Os “planos” coloridos projetam-se a partir de uma profundidade incomensurável, de um “não-se-sabe-de-onde” — on ne sait d’où —,
como escreveu Maurice Merleau-Ponty; e as relações de distância e
proximidade, do que está adiante e atrás, transformam-se, embora não o
façam de maneira dramática, pelo movimento do olhar que os articula.
Daí que um recurso tão recorrente quanto tedioso – a hierarquização
estática dos planos, em primeiro, médio, e de fundo – seja abalado pela
pintura de Cézanne em prol de uma espacialidade imanente à construção do
quadro e não prévia. Um recurso comum, que se observa na garrafa dos
jogadores, é “colar” o objeto ao plano do fundo, através de vários
recursos como o contorno interrompido e, sobretudo, por rimas
cromáticas. Como é dito no ensaio
O olho e o espírito, “o que
chamo profundidade é nada ou é minha participação num ser sem restrição,
e primeiramente no Ser do espaço para além de todo ponto de vista ”. Eis por que Cézanne, diz Merleau-Ponty,
acompanhará, numa modulação de cores, a intumescência do objeto e marcará com traços azuis vários
contornos. O olhar remetido de um a outro percebe um contorno que nasce
entre todos eles, como acontece na percepção. Nada menos arbitrário do
que essas célebres deformações - que aliás Cézanne abandonará em seu
último período, a partir de 1890, quando não mais encherá sua tela de
cores e se afastará da fatura cerrada das naturezas mortas.
O procedimento dos múltiplos contornos entre os objetos é o aspecto
formal que garantiria a tradução da percepção em pintura. Daí que esses
procedimentos, não tradicionais e tidos pelos contemporâneos de Cézanne
como arbitrários, sejam como que a constituição pictórica dos fenômenos
da percepção, constituição esta que se tornou possível após algo como
uma redução fenomenológica, uma supressão das atitudes habituais frente
ao mundo. Uma vez que vivemos no mundo da vida, habituamo-nos a pensar
que todo existente é inabalável: “a pintura de Cézanne”, diz
Merleau-Ponty, “suspende esses hábitos e revela o fundo de natureza
inumana sobre o qual o homem se instala”. A obra de Cézanne operaria uma
desautomatização de nossa existência, para utilizar uma categoria cara
aos formalistas russos, e se engajaria num processo ininterrupto de
novas conquistas, necessariamente provisórias. “Para um pintor como
esse”, arremata Merleau-Ponty, “uma única emoção é possível: o
sentimento de estranheza; um único lirismo: o da existência sempre
recomeçada”. A pintura de Cézanne seria - lembrarão os leitores do
prefácio da
Fenomenologia da percepção - assim como a
fenomenologia “laboriosa pelo mesmo gênero de atenção e de admiração,
pela mesma exigência de consciência, pela mesma vontade de apreender o
sentido do mundo ou da história em estado nascente”.
Desse modo, a pintura de Cézanne seria uma espécie de fenomenologia
da percepção em ato. Algo como uma filosofia em pintura; filosofia com
profunda afinidade com a tentativa de Merleau-Ponty de superar as
dicotomias clássicas do pensamento filosófico. Se Husserl já notara que o
artista é aquele que desde sempre empreende a
époche, em
Merleau-Ponty percebemos uma precisão do que seja a constituição da
percepção em pintura, precisão esta obtida pela verdadeira afinidade
entre seu projeto filosófico e a pintura de Cézanne.
Retomo agora uma citação acima em que Merleau-Ponty diz que o olhar
remetido aos vários contornos do objeto produziria algo como a própria
experiência perceptiva. Portanto, essas deformações de Cézanne não
seriam arbitrárias, mas antes expressão sensível da percepção. Gostaria
de destacar, porém, o fim da citação; o filósofo diz que Cézanne
abandonará essas deformações “em seu último período, a partir de 1890,
quando não mais encherá sua tela de cores e se afastará da fatura
cerrada das naturezas mortas”. Talvez seja significativo que em sua
abordagem Merleau-Ponty privilegie obras anteriores a 1890. Será que a
abordagem fenomenológica se sustentaria para o último período da obra de
Cézanne? Sobretudo para as magistrais últimas telas a partir da
Montanha Santa Victória? Ora, para não responder de modo precipitado a
essas questões, se é que elas possuem respostas, deveríamos discutir uma
das consequências principais da abordagem do espaço na obra de Cézanne.
O objetivo de pintar “o instante inteiro do mundo” produziu algo
inteiramente novo, isto é, a ampliação extrema e inumana da visada do
quadro; daí que as obras de Cézanne, embora possuam dimensões reduzidas,
fixam uma imagem de escala enorme.
Fig. 3: Margem do rio, 1904
Isto fica nítido se compararmos a obra acima com os enormes quadros
da série das ninféias de Monet, que possuem, apesar das grandes
dimensões, uma imagem muito mais focada, reduzida.
Fig. 4: Reflexos de árvores, 1914
Essa abertura lateral da pintura de Cézanne demonstra progressiva e
inequivocamente a consciência do plano de projeção; outro aspecto –
notado por Merleau-Ponty, deve-se dizer –é o fato de Cézanne “atacar” o
quadro em seus vários pontos simultaneamente, algo que talvez indique
que entre a percepção e sua restituição na pintura há uma espécie de
barreira, de grade, impossível de ser escamoteada. Outro ponto é a
questão das pinceladas, e aqui devo fazer uma ressalva para que não se
interpretem essas questões a partir, somente, daquilo que Greenberg
entendia como a pureza dos meios, cada vez mais incisiva na pintura
moderna. A partir dessa compreensão, Greenberg interpretava as
pinceladas uniformes e retangulares de Cézanne quase como uma réplica do
retângulo do quadro. Essa interpretação, embora muito interessante,
talvez não se sustente uma vez que se baseia na análise de obras de um
curto período da produção cezanniana. A pincelada de Cézanne, sobretudo
em suas ultimas obras, adquire uma autonomia tão profunda, uma
materialidade tão evidente que, parece-me, colocam em “risco” seu
projeto fenomenológico. Recentemente o historiador da arte T. J. Clark
notou que haveria algo como um deslizamento entre fenomenalidade e
materialidade na obra final de Cézanne, deslizamento que, se não leva a
um verdadeiro curto-circuito desses dois polos, nos indicaria uma
espécie de suspeita do pintor em relação ao sensível.
Fig. 5: Montanha Sainte-Victoire vista do Château Noir, 1904
As pinceladas que insuflam a superfície desse quadro possuem algo de
mecânico, uma espécie de regularidade caótica, como se o pintor, ao
invés de querer restituir a percepção ao quadro por meio da
profundidade, obtivesse essa mesma profundidade por um efeito derivado
das pinceladas; como se a profundidade não se obtivesse mais através do
apego à verdade da percepção, mas antes através da arbitrariedade do
signo. Entretanto, parece que a evidenciação da pincelada – como na
pintura abaixo, que entre outras coisas produz a impressão de uma
harmonia total, ou seja, uma indefinição e promiscuidade crescente entre
figura e fundo – nasce da exigência extrema, talvez inalcançável, de
que ela pudesse fazer justiça à riqueza do sensível. Embora paradoxal,
essa leitura talvez possa reduzir em alguma medida a dificuldade de se
abordar a obra de Cézanne. Como observa T. J. Clark:
o momento no qual um texto ou uma imagem
visual busca apreender do modo mais irresistível uma coisa que é vista
ou sentida também é o momento em que o texto ou a imagem visual mobiliza
os acidentes e as duplicidades da produção de sinais da maneira mais
conspícua e bizarra, tudo isso em nome de indicar com ele, e de certa
forma por meio deles, outro corpo que é seu fiador.
Fig. 6: O monte Saint-Victoria, 1904-1906
Por isso haveria na obra de Cézanne, segundo T. J. Clark, uma
ambivalência em relação à forma, simultaneamente um horror e um júbilo.
Pois é somente através dela que as percepções podem ser restituídas e,
no entanto, é ela também que indica que essa restituição talvez não seja
possível. Daí talvez o peso verdadeiramente existencial que uma única
pincelada adquire na obra de Cézanne, como se, em cada pincelada, a
sustentação do sensível ou sua perda estivessem em jogo. Numa excelente
tese de doutorado acerca do papel do silêncio na obra de Cézanne e de
Mallarmé, Olga Kempinska considera que na obra de Cézanne operaria algo
como uma determinação do indeterminado, ou seja, sua obra criaria um
impasse interpretativo expresso, sobretudo, através das pinceladas
deixadas em branco, que aumentam progressivamente na obra madura do
pintor. “Com efeito”, diz Kempinska,
se as pinceladas em branco têm um papel
construtivo, qual seja, representam a intensidade da luz mediterrânea,
elas fazem parte de um espaço ilusionista e, com isso, situam a
construção espacial do quadro num prolongamento do espaço perspectivo
tradicional. Se, ao contrário, elas significam uma falta de acabamento
do quadro e, com isso, uma ênfase dada na autonomia do meio pictórico,
elas se opõem à concepção tradicional de espaço e marcam uma ruptura
radical com a tradição.
Para a autora, a riqueza da obra de Cézanne estaria na
impossibilidade de se decidir por uma ou outra leitura, daí que sua obra
apresenta uma determinação do indeterminado. Já T. J. Clark acredita
que a obra de Cézanne, embora possua uma ambiguidade, um deslizamento
entre fenomenalidade e materialidade, tenderia em suas pinceladas de
facticidade material cada vez mais intensa a uma crise ou fracasso em
responder às sensações e aos fenômenos. É como se no momento de máxima
intensificação do sensível emergisse também a brutalidade material da
pintura. Como nessa última e extraordinária pintura da montanha Santa
Victória.
Fig. 7: Monte Saint-Victoire visto de Lauves, 1904-1906
A respeito de uma das montanhas Santa Vitória, Argan disse que a tela
seria uma das obras mais especulativas ou ontológicas de Cézanne.
Ponto de chegada de sua pesquisa dirigida à compreensão global do ser e
de sua estrutura vital: mas pode-se negar que esta filosofia pura seja
pura pintura?
A fenomenologia da percepção de Cézanne, radicalizada, o levou em sua
obra madura à carne mesmo da pintura. Ao ser bruto da pintura. Talvez,
nesse sentido, embora Merleau-Ponty possua maior afeição pela “fatura
cerrada” de suas naturezas mortas e, portanto, não tenha fornecido uma
leitura muito interessante desse último período da obra de Cézanne, não
seríamos tão justos ao dizer que a obra madura do pintor “escapou” à
análise do filósofo. Pois em uma passagem interessantíssima nem sempre
destacada pelos comentadores de
O olho e o espírito – ensaio
contemporâneo à radicalização da filosofia merleaupontiana expressa na
passagem de uma fenomenologia da percepção que ainda pagava alguns
tributos ao idealismo husserlianoa uma radical ontologia do ser bruto –,
passagem cujo alvo, embora não seja Cézanne, além de se aplicar muito
precisamente à sua obra madura, joga mais água no moinho da leitura aqui
proposta:
O mundo não está mais diante dele [do
pintor] por representação: é antes o pintor que nasce nas coisas como
por concentração e vinda a si do visível, e o quadro finalmente só se
relaciona com o que quer que seja entre as coisas empíricas sob a
condição de ser primeiramente auto-figurativo; ele só é espetáculo de
alguma coisa sob a condição de ser espetáculo de nada.
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