Poema de um coração rubro
O coração aguentou firme como se tivesse vinte anos, como se fosse o coração daqueles capetas que sassaricaram noventa minutos sem esmorecer um segundo, sem pensar um segundo que poderiam sair derrotados. Também fui correto e cientifico como ele, que os tempos podem não ser muito corretos, são até bastante incorretos e perturbadores, mas são capacitadamente científicos. Assim, meti-o numa concentração prudente e preparatória, paralela da casinha da Rua Gonçalves Crespo, mas em que o Jorge Vieira fosse eu próprio. Enchi-o de tônicos, de antiespasmódicos e de tranquilizadores da mais comprovada ação e do mais astronômico preço, forcei um regime sonoterápico do gênero familiar, entreguei-me a leituras rigorosamente escolhidas, para não me irritar, ainda para não me irritar não tomei conhecimento da intrincada e malcheirosa política guanabarina, subi com o pensamento a alturas altruísticas, me guardando de só falar mal dos colegas depois do dia 18, apenas não fui ver outra vez o “Xique-Xique no Pixoxó”, que é provada receita para relaxar os nervos, e estou abraçando aqui o compadre Oscarito, que, cumprindo uma obrigação profissional, não foi ao Maracanã e, ao ter no palco a notícia do triunfo, cortou as falas de comicidade com as incontidas lágrimas de júbilo, lágrimas que a plateia, imediatamente contagiada, recebeu com palmas e de pé.
O coração aguentou firme. Aguentou a crescente e angustiante expectativa semanal, com boatos de tornozelos inchados, distensões musculares e ameaças de alarmantes desfalques, aguentou a opinião nem sempre muito entendível dos entendidos do esporte, com muita alusão a complexos e inibições, esquecidos da grandeza das tradições, aguentou na noite de sábado a obrigação de uma crônica premeditadamente antecipada para o meu colunismo levemente intermitente, que finalizava com a afirmação de que o América é pequeno ante os pequenos e imenso ante os poderosos. Aguentou a cruel incerteza atmosférica, porquanto num gramado pesado não seria fácil ficarem em pé aqueles lutadores de salário mínimo, que vão ser agora muito cobiçados. Aguentou a entrada em campo dos queridos diabos rubros, como um grupo jovial de ballet, e o foguetório louco com que foram recebidos por cem mil almas aflitas, e os roucos microfones a avermelharem os ares com o hino do Lamartine Babo, e as charangas a entoarem o “Deus Salve o América”. Aguentou a tristeza do minuto de silêncio pela alma de Antônio Avelar com os rapazes americanos de fumo no braço, e lembrou-se de um americano que também não estava presente, o popular ciclista de camisa encarnada, que pedalava pela cidade o seu amor ao América e deve estar pedalando no céu. Aguentou firme a penalidade máxima contra, transformada em ponto, vantagem que descansava mais ainda a suficiência adversária, necessitada apenas de um empate; aguentou o primeiro gol a favor e o estrondo popular que se seguiu; aguentou o segundo gol, o chute da liberação e o delírio dos jogadores, o delírio dos assistentes americanos, vascaínos, botafoguenses, rubro-negros, sancristovenses, de todos enfim, pois era a efusão de uma cidade inteira que ali se representava, cidade que na sua vida maravilhosa, que nenhuma Brasília poderá perturbar, jamais deixou de torcer pelos fracos e pelos humildes.
Aguentou tudo firme este meu coração quase tão velho quanto o América. Mas não suportou os quatorze minutos finais. Não, não suportou. Era como se o apito terminal nunca mais soasse e uma dor fina o tomou, dor de vinte e cinco anos de espera, dor da esperança que ainda podia fugir numa desgraçada fração de tempo, de indecisão ou de infelicidade, esperança que por fim se abria como imensa flor naquele campo verde, campo em que tantas outras vezes o capricho da sorte ou o capricho dos homens ceifou-o cega e impiedosamente. Uma dor fina, que ia tomando o peito e os braços, peito que recebia a garra da opressão, braços que se sacudiram em gestos elétricos de entusiasmo e de incentivo, dor que não despertava nenhum medo, que doía sem doer, como se a paixão fora satisfeita, o destino cumprido, as tristezas redimidas e a morte pudesse ser um sacrifício feliz, o preço de uma ambicionada alegria.
Doendo ficou, ainda dói um pouco, como ferida que se traz duma batalha heroica. E não sei como foram os meus passos depois que a luta se encerrou, com cem mil bandeiras se agitando, bandeiras que não traziam todas as três iniciais do América – eram bandeiras de todos os clubes cariocas, inclusive a do glorioso tricolor, vencido que se irmanava ao vencedor com ternura e respeito, bandeiras que saudavam um velho e leal lutador. Sei que andei por mil lugares, e abracei, fui abraçado e ri, um riso de confiança que parecia haver secado e que renascia para a certeza de outras vitórias, para a segurança de que o América não era uma glória morta, não era o mitológico Campeão do Centenário, era o primeiro Campeão da Guanabara livre, era o mesmo América, pequeno mas eterno, clube que os adeptos das outras agremiações colocam sempre em segundo lugar na simpatia, por sabê-lo dono das mais caras e nobres tradições do nosso esporte. E revi aquela tarde radiosa de 1913, quando pela primeira vez pisei no campo da Rua Campos Sales, e não compreendia bem, e as camisas eram vermelhas, e estufavam-se com o vento nas corridas dos jogadores, e a bola ora subia muito alto no céu azul, ora caía na esmeralda da grama com um barulho surdo que nunca mais esqueci.
Revi as gloriosas jornadas de outros tempos num mágico e sentimental caleidoscópio. Revi os campeões do passado, e não somente os mestres da história americana, um Belfort Duarte, um Ferreira, um Ojeda, um Paulo Barata, um Chiquinho, um Hildegardo, um Osvaldinho, que era “o Príncipe”! Não! Revi todos aqueles modestos jogadores que se tornaram campeões porque o sangue da camisa os empurrava. E revi todos aqueles que, grandes ou pequenos, sem terem sido campeões, emprestaram ao América a sua fibra e o seu amor. Ó ruas do meu bairro natal, ó ruas da zona norte inteira, como vos revi na euforia daquela noite povoada de risos e canções como há vinte e cinco anos não acontecia, noite primeira de uma nova etapa da vida rubra, noite de 18, número cabalístico e venturoso da trajetória americana, dia em que nunca é vencido, dia que se afirma como o do seu renascimento depois de tanta espera e tanta pertinácia! (De Manchete)
(In: REBELO, Marques. Seleta. Org., estudo e notas Ivan Cavalcanti Proença. Rio de janeiro: José Olympio; Brasília: INL, 1974. p. 97-99)
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