Algumas anotações sobre as cores
A forma de um colorido - acrílica/s/ tela, 50x40 cm - 2011
A cor é dentro do pensamento verbal e
dentro das lógicas decorrentes desse pensamento, impossível de ser
racionalizada. No século XVIII criou-se um círculo cromático no qual as cores
eram classificadas em primárias, secundárias e com valores absolutos, com a
pretensão de explicar todos os fenômenos cromáticos da Natureza e, assim,
aprisioná-las dentro de uma mentalidade quantitativa na medida em que ficavam
subordinadas às formas, estas mais racionais. Com isso, ficou eclipsada a
possibilidade de se pensar as cores e o colorido fora do modelo imposto por
este círculo. Além do mais, este círculo cromático é regido por uma lógica que
criou os conceitos de cores puras, pastéis e neutras e, assim, atrelando as
questões cromáticas ao discurso verbal. Dentro do pensamento plástico a cor é
enigmática, portanto passível de ser percebida por outra lógica, como diz
Cézanne, nada absurda.
Vale
ressaltar que a partir desse círculo classificamos as harmonias em termos
absolutos e em conseqüência, igualmente as cores. O mesmo em relação aos
contrastes. Todos com valores absolutos e estáticos. Nesse círculo as cores são
explicadas pelas misturas pigmentares, as quais foram mais tarde denunciadas
por Duchamp. Claro, estudam-se alguns outros fenômenos como os contrastes simultâneos,
por exemplo. Mas na base está um pensamento lógico, atualmente questionado,
decorrente do discurso verbal. A partir desse círculo cromático
classificaram-se as harmonias. Por exemplo, estas seriam consoantes,
dissonantes e assonantes. (No pensamento plástico como a cor pode ser assonante
ou neutra, vale dizer, uma não-cor?). Essas harmonias consideram uma
mentalidade, sobretudo quantitativa, ou seja, explicam-se considerando ritmo
como recorrência pressentida, que é racional e a cor ficando subordinada às
formas. E assim bem longe do que Cézanne nos adverte: “Na natureza tudo está
colorido.” A partir do círculo cromático absoluto ficamos presos à lógica
aristotélica. Ou seja, à lógica do terceiro excluído, lógica esta que afirma
que uma coisa não pode ser verdadeira e falsa simultaneamente. Esse
círculo excluiu o que hoje nos é familiar, as incertezas.
Assim,
fugindo deste aprisionamento, nos meus estudos descartei o círculo cromático
que classifica as cores em primárias e secundárias. Descartando-se o círculo
cromático absoluto, como, parece-me, também o fez Cézanne, passamos a
considerar um terceiro termo. A dimensão espaço-temporal da cor, pelo
rompimento do tom, nos permite entender o cinza sempiterno como um pré ou
pós-fenômeno. Vale dizer, um cinza que não existe, como observou Rilke, mas que
se manifesta na natureza..
Escrevi
um livro intitulado A Cor e o Cinza. Nele refiro-me ao conflito entre a
percepção sensível e a linguagem. Nesse livro, para reforçar a disparidade
entre a cor e o nome que lhe damos, cito o filósofo Mário Guerreiro, que diz:
“Sim, pois onde estão as cores puras no mundo
percebido? Na verdade, elas pertencem ao mundo nomeável, mas esse mundo nomeado
reparte o mundo percebido e o organiza de acordo com essa coisa enigmática que
é o critério de relevância implícito na língua estruturada. Parece que se abre
um abismo entre a percepção sensível e a linguagem, entre as qualidades
percebidas e as qualidades nomeáveis, mas ficamos em dúvida se deveríamos
concordar com a idéia de que o percebido só se faz passando pelo crivo na
nomeação, como se a linguagem estivesse filtrando a percepção, canalizando-a no
sentido de só poder captar certos padrões em detrimento de outros. Com certeza
este é um problema que teria de ser colocado para uma fenomenologia, onde uma
incursão nos domínios da pintura seria, certamente, bastante esclarecedora.”
Nesse
sentido, podemos fazer com que haja uma convivência entre a percepção sensível
e a linguagem verbal. Neste caso, consideramos a cor abstrata substantiva, que
subsiste por si mesma na medida em que sua substância não se altera, é nomeável
e é uma idéia platônica, e a cor concreta adjetiva, cuja condição é ser no
colorido e está sempre se rompendo, possuindo uma dimensão temporal. Podemos, assim,
lidar simultaneamente tanto com a percepção sensível e a linguagem verbal.
Daí
procurei me entender pelo pensamento plástico e estudei a obra de Cézanne que
afirmou que a luz não existe para o pintor e, conseqüentemente, tem que ser
substituída por uma outra coisa, a cor. Portanto o mestre de Aix não se
interessou pelo cromatismo impressionista. Disse mais ainda, que somente um
cinza reina na natureza dificílimo de alcançar. Não se trata obviamente de um
cinza baseado na mistura do branco com o preto, pois esse não oferece nenhuma
dificuldade. Digo que Cézanne nos preparou para pensar no cinza sempiterno,
como passei a denominá-lo.
Inclui-se
na lógica da cor a questão do serpenteamento vinciano. Leonardo no Tratado da
Pintura diz que devemos observar com muito cuidado os limites de qualquer corpo
para julgar se suas voltas participam de curvaturas circulares ou concavidades
angulares, uma questão bem mais complexa do que afirmar, como se vê nas
histórias das artes, que ele introduziu na pintura o esfumato. Este é apenas um
procedimento e não uma questão teórica.
Citemos
agora a famosa frase de Cézanne na qual ele reforça que tratar a natureza
através do cone, esfera e cilindro não implica em uma geometrização
considerando esses sólidos geométricos como os que possibilitam a construção do
espaço pictórico tomando-os como formas históricas da construção deste espaço. Afinal
Cézanne afirmou que Devemos observar a natureza como ninguém a viu antes. Interessante
é que podemos compreender a afirmação de Duchamp na qual diz que o cubismo tem
inicio em Cézanne, e passa pelo fauvismo, (em minha opinião, sobretudo por
Braque).
Consideraríamos
a geometria dos fractais, e novamente o cinza sempiterno, que estaria presente
tanto no todo como nas partes. Assim em uma fração teríamos também um elemento
contido no todo, no caso, o cinza sempiterno. Consideraríamos, também, a teoria
do caos, e a partir daí pensaríamos no processo contínuo de organização e
desorganização quando estados de entropia máxima são observados, o que
metaforicamente nos levaria a considerar a questão de vida, morte e
ressurreição.
Tudo
isso nos permite realmente pensarmos em uma geometria das cores considerando-se,
entre outras, a topologia na qual, além das transformações e deformações
contínuas, o cinza sempiterno seria uma fronteira. Ou na geometria dos fractais
e novamente aquele cinza lhe dá consistência.
Podemos
imaginar também que essas surdas questões pertinentes ao pensamento plástico e,
por extensão, às artes visuais, poderão, talvez, ser mais bem compreendidas
pelas geometrias que hão de vir. Como, por exemplo, uma geometria das cores.
José
Maria Dias da Cruz – Florianópolis, 2012