domingo, 19 de agosto de 2012

Rilke - Trecho das carta a um poeta

Rilke – um trecho das "Cartas a um jovem poeta"


Por isso, que fique registrado aqui, desde logo, um pedido meu: leia o mínimo possível textos críticos e estéticos – ou são considerações parciais, petrificadas, que se tornaram destituídas de sentido em sua rigidez sem vida, ou são hábeis jogos de palavras, nos quais hoje uma visão sai vitoriosa, amanhã predomina a contrária. Obras de arte são de uma solidão infinita, e nada pode passar tão longe de alcançá-las quanto a crítica. Apenas o amor pode compreendê-las, conservá-las e ser justo em relação a elas. Dê razão sempre a si mesmo e a seu sentimento, diante de qualquer discussão, debate e introdução; se o senhor estiver errado, o crescimento natural de sua vida íntima o levará lentamente, com o tempo, a outros conhecimentos. Permita a suas avaliações seguir o desenvolvimento próprio, tranquilo e sem perturbação, algo que, como todo avanço, precisa vir de dentro e não pode ser forçado nem apressado por nada. Tudo está em deixar amadurecer e então dar à luz. Deixar cada impressão, cada semente de um sentimento germinar por completo dentro de si, na escuridão do indizível e do inconsciente, em um ponto inalcançável para o próprio entendimento, e esperar com profunda humildade e paciência a hora do nascimento de uma nova clareza: só isso se chama viver artisticamente, tanto na compreensão quanto na criação.
Não há nenhuma medida de tempo nesse caso, um ano de nada vale, e mesmo dez anos não são nada. Ser artista significa: não calcular nem contar.

sábado, 18 de agosto de 2012

Políptico - óleo sobre tela - 1994 - 45x55 cada - Museu de Arte Moderna de Canta Catarina


Natureza morta - Óleo sobre tela - 73x60cm - 1994


O Cinza sempiterno


O Cinza sempiterno
Se misturarmos as cores primárias e secundárias segundo a teoria cromática a partir do espectro da luz, com todas em um mesmo valor, obteremos um cinza. Mas Cézanne se refere a um cinza que reina na natureza dificílimo de alcançar. Portanto um cinza não resultante de misturas pigmentares.  Mas podemos partir da experiência acima para didaticamente entendermos o cinza sempiterno.  Assim como esse cinza obtido por misturas pigmentares, o cinza sempiterno contém também todas as cores de um colorido. Daí podermos dizer que as cores são enigmáticas.  Pela experiência do rompimento do tom, considerado agora como a variação dele quando há nele a sobreposição da pós- imagem e assim acinzentando-o, e não por misturas pigmentares como é definido pela teoria cromática tradicional, podemos observar que quanto maior for o tempo de observação, mais um tom se rompe. Assim se observarmos os rompimentos daquelas cores primárias e secundárias veremos que todas se romperem.  Entretanto fisiologicamente não atingimos nunca o cinza sempiterno, daí Rilke ter afirmado que ele não existe.  Mas podemos logicamente afirmar que todas se dirigem para um ponto potencialmente ativo e sem nenhuma dimensão, o cinza sempiterno. Fazemos, então, uma analogia com as misturas pigmentares descrito acima. Se colocarmos ao lado desse cinza um tom avermelhado ele se tornará esverdeado; ao lado de um azulado levemente violáceo, amarelado; ao lado de um violáceo, amarelado levemente esverdeado; e assim em diante. Temos nesse caso também um exemplo de interação cromática, isto é, as cores se modificando segundo o contraste. Vários pintores coloristas afirmam que pintar é contrastar. Se colocarmos ao lado daquele cinza obtido por misturas pigmentares um tom avermelhado ele , o cinza, se tornará esverdeado; ao lado de um azulado levemente violáceo, amarelado; ao lado de um violáceo, amarelado levemente esverdeado; e assim em diante. Temos nesse caso também um exemplo de interação cromática, isto é, as cores se modificando segundo o contraste. Vários pintores coloristas afirmam que pintar é contrastar. Assim poderemos dizer que quando as cores partem do cinza sempiterno ganham cromaticidade e têm um movimento excêntrico em relação ao cinza sempiterno. Como todas as cores se rompem ininterruptamente um movimento neste caso é concêntrico.
Assim o cinza sempiterno manifesta-se na natureza como uma atmosfera que se interpõe entre o pintor e o modelo segundo Cézanne.

quarta-feira, 15 de agosto de 2012


Algumas rápidas considerações sobre as cores e o espaço na obra de Hélio Oticica



A questão da cor tem um papel muito importante no desenvolvimento da obra de Hélio Oiticica. No início de sua carreira ele percebeu e escreveu que havia um problema importante na pintura contemporânea; a cor. Pensou-a como um elemento espaço temporal, em seu núcleo e considerou o quadro de cavalete insuficiente no sentindo de estudá-la a partir dessas observações que anotara. Digo, então, que Hélio espacializou a pintura.

Tentaremos, aqui, abordar essa questão da espacialização da pintura considerando as idéias que ele vinha desenvolvendo sobre as cores.

Há a obra de arte pensada a partir da pintura, e as cores fazem que isso seja possível e enriquecedor. Comecemos com Cézanne quando este afirma que entre o modelo e o pintor se interpões um plano, a atmosfera. Podemos pensar que no espaço no qual nos orientamos pode ser percebido outro que se desdobra em um plano entre o quadro e pintor. Este, mais do que representar, procura transpor para a tela conceitos teóricos e procedimentos que nos permitam novas percepções tanto do espaço imediato quanto o do remoto. Temos que considerar também o espaço natural, o que nos leva a pensar nas diversas distâncias, estas que Poussin se referia quando nos advertia sobre o olhar prospectivo em contraposição com outro o qual levava em conta somente o aspecto do objeto. Essas questões se adensam em face de um verso do poeta Michael Palmer; “As diversas distâncias entre olho e pálpebra.”

Dessa forma podemos pensar na obra criando para ela um espaço exclusivo à margem do espaço natural.

Mas há também a obra se realizando no espaço inclusivo, ou de não interferência no espaço natural. Alguns relevos de Hélio Oiticica podem se percebidos dentro dessa ótica. As cores por ele escolhidas se rompem, tanto por contraste, como por elas próprias, e nos permite a manifestação dos cinzas sempiternos que, como digo, não existe, pois é um pré ou pós-fenômeno e multidimensional. Aqui novamente lembramo-nos de Cézanne quando afirma que somente um cinza reina na natureza e que é dificílimo de alcançar. E também de Rilke na ocasião da ocorrência da primeira retrospectiva do mestre de Aix, retrospectiva que freqüentou diariamente, dando origem ao Livro Cartas sobre Cézanne.  Em uma dessas cartas que escreveu para sua esposa nos diz que o cinza em Cézanne não existia.

Nesse último caso torna-se evidente a geometria topológica. Mas também podemos considerar o conceito vinciano de serpenteamento que anima o espaço plástico. Não é, como alguns filósofos consideram, uma propriedade somente perceptível nos seres vivos como um eixo gerador, mas, como está no Tratado da Pintura, propriedade de todos os corpos e se refere ao contorno dos objetos.

Creio que estas rápidas anotações nos podem levar a outras compreensões e desdobramentos da obra de Hélio Oiticica considerando-se como as cores, sendo enigmáticas, têm um papel importante na evolução de sua obra.

José Maria Dias da Cruz

Algumas anotações sobre as cores


Algumas anotações sobre as cores

                                            A forma de um colorido - acrílica/s/ tela, 50x40 cm - 2011

A cor é dentro do pensamento verbal e dentro das lógicas decorrentes desse pensamento, impossível de ser racionalizada. No século XVIII criou-se um círculo cromático no qual as cores eram classificadas em primárias, secundárias e com valores absolutos, com a pretensão de explicar todos os fenômenos cromáticos da Natureza e, assim, aprisioná-las dentro de uma mentalidade quantitativa na medida em que ficavam subordinadas às formas, estas mais racionais. Com isso, ficou eclipsada a possibilidade de se pensar as cores e o colorido fora do modelo imposto por este círculo. Além do mais, este círculo cromático é regido por uma lógica que criou os conceitos de cores puras, pastéis e neutras e, assim, atrelando as questões cromáticas ao discurso verbal. Dentro do pensamento plástico a cor é enigmática, portanto passível de ser percebida por outra lógica, como diz Cézanne, nada absurda.
             Vale ressaltar que a partir desse círculo classificamos as harmonias em termos absolutos e em conseqüência, igualmente as cores. O mesmo em relação aos contrastes. Todos com valores absolutos e estáticos. Nesse círculo as cores são explicadas pelas misturas pigmentares, as quais foram mais tarde denunciadas por Duchamp. Claro, estudam-se alguns outros fenômenos como os contrastes simultâneos, por exemplo. Mas na base está um pensamento lógico, atualmente questionado, decorrente do discurso verbal. A partir desse círculo cromático classificaram-se as harmonias. Por exemplo, estas seriam consoantes, dissonantes e assonantes. (No pensamento plástico como a cor pode ser assonante ou neutra, vale dizer, uma não-cor?). Essas harmonias consideram uma mentalidade, sobretudo quantitativa, ou seja, explicam-se considerando ritmo como recorrência pressentida, que é racional e a cor ficando subordinada às formas. E assim bem longe do que Cézanne nos adverte: “Na natureza tudo está colorido.” A partir do círculo cromático absoluto ficamos presos à lógica aristotélica. Ou seja, à lógica do terceiro excluído, lógica esta que afirma que uma coisa não pode ser verdadeira e falsa simultaneamente.  Esse círculo excluiu o que hoje nos é familiar, as incertezas.
            Assim, fugindo deste aprisionamento, nos meus estudos descartei o círculo cromático que classifica as cores em primárias e secundárias. Descartando-se o círculo cromático absoluto, como, parece-me, também o fez Cézanne, passamos a considerar um terceiro termo. A dimensão espaço-temporal da cor, pelo rompimento do tom, nos permite entender o cinza sempiterno como um pré ou pós-fenômeno. Vale dizer, um cinza que não existe, como observou Rilke, mas que se manifesta na natureza..
            Escrevi um livro intitulado A Cor e o Cinza. Nele refiro-me ao conflito entre a percepção sensível e a linguagem. Nesse livro, para reforçar a disparidade entre a cor e o nome que lhe damos, cito o filósofo Mário Guerreiro, que diz:
“Sim, pois onde estão as cores puras no mundo percebido? Na verdade, elas pertencem ao mundo nomeável, mas esse mundo nomeado reparte o mundo percebido e o organiza de acordo com essa coisa enigmática que é o critério de relevância implícito na língua estruturada. Parece que se abre um abismo entre a percepção sensível e a linguagem, entre as qualidades percebidas e as qualidades nomeáveis, mas ficamos em dúvida se deveríamos concordar com a idéia de que o percebido só se faz passando pelo crivo na nomeação, como se a linguagem estivesse filtrando a percepção, canalizando-a no sentido de só poder captar certos padrões em detrimento de outros. Com certeza este é um problema que teria de ser colocado para uma fenomenologia, onde uma incursão nos domínios da pintura seria, certamente, bastante esclarecedora.”
            Nesse sentido, podemos fazer com que haja uma convivência entre a percepção sensível e a linguagem verbal. Neste caso, consideramos a cor abstrata substantiva, que subsiste por si mesma na medida em que sua substância não se altera, é nomeável e é uma idéia platônica, e a cor concreta adjetiva, cuja condição é ser no colorido e está sempre se rompendo, possuindo uma dimensão temporal. Podemos, assim, lidar simultaneamente tanto com a percepção sensível e a linguagem verbal.
            Daí procurei me entender pelo pensamento plástico e estudei a obra de Cézanne que afirmou que a luz não existe para o pintor e, conseqüentemente, tem que ser substituída por uma outra coisa, a cor. Portanto o mestre de Aix não se interessou pelo cromatismo impressionista. Disse mais ainda, que somente um cinza reina na natureza dificílimo de alcançar. Não se trata obviamente de um cinza baseado na mistura do branco com o preto, pois esse não oferece nenhuma dificuldade. Digo que Cézanne nos preparou para pensar no cinza sempiterno, como passei a denominá-lo.
             Inclui-se na lógica da cor a questão do serpenteamento vinciano. Leonardo no Tratado da Pintura diz que devemos observar com muito cuidado os limites de qualquer corpo para julgar se suas voltas participam de curvaturas circulares ou concavidades angulares, uma questão bem mais complexa do que afirmar, como se vê nas histórias das artes, que ele introduziu na pintura o esfumato. Este é apenas um procedimento e não uma questão teórica.
            Citemos agora a famosa frase de Cézanne na qual ele reforça que tratar a natureza através do cone, esfera e cilindro não implica em uma geometrização considerando esses sólidos geométricos como os que possibilitam a construção do espaço pictórico tomando-os como formas históricas da construção deste espaço. Afinal Cézanne afirmou que Devemos observar a natureza como ninguém a viu antes. Interessante é que podemos compreender a afirmação de Duchamp na qual diz que o cubismo tem inicio em Cézanne, e passa pelo fauvismo, (em minha opinião, sobretudo por Braque).
            Consideraríamos a geometria dos fractais, e novamente o cinza sempiterno, que estaria presente tanto no todo como nas partes. Assim em uma fração teríamos também um elemento contido no todo, no caso, o cinza sempiterno. Consideraríamos, também, a teoria do caos, e a partir daí pensaríamos no processo contínuo de organização e desorganização quando estados de entropia máxima são observados, o que metaforicamente nos levaria a considerar a questão de vida, morte e ressurreição.
            Tudo isso nos permite realmente pensarmos em uma geometria das cores considerando-se, entre outras, a topologia na qual, além das transformações e deformações contínuas, o cinza sempiterno seria uma fronteira. Ou na geometria dos fractais e novamente aquele cinza lhe dá consistência.
            Podemos imaginar também que essas surdas questões pertinentes ao pensamento plástico e, por extensão, às artes visuais, poderão, talvez, ser mais bem compreendidas pelas geometrias que hão de vir. Como, por exemplo, uma geometria das cores.
                        José Maria Dias da Cruz – Florianópolis, 2012

terça-feira, 14 de agosto de 2012

A cor e o colorido


Algumas considerações sobre as cores e os coloridos.  

Há a questão do surgimento do cinza sempiterno quando ele passa da condição de não existente para a de existente. Na condição de existente o cinza deixa de ser somente bidimensional. Surge como uma atmosfera que se interpõe entre o modelo e o pintor e assim, tornando-se mais dinâmico e permitindo que as demais cores de um colorido transformem-se em concretas adjetivas. Isto não impede que cada cor se manifeste também como abstrata substantiva. No primeiro caso a condição de cada cor é ser no colorido. No segundo as cores se nos apresentam mais como ideias e neste caso, elas, as cores, são nomeáveis. Estas últimas, subsistindo somente em nossos cérebros, não se rompem, isto é, não articulam suas respectivas opostas vão gerar outras tonalidades, fenômeno este que também nos leva a perceber a manifestação do cinza sempiterno. 

As consequências dessas atitudes são as seguintes:

a) como concretas adjetivas as cores são mais qualitativas, independente de nomeação na medida que convivem com as demais cores de um colorido. Não podemos, pois que ilógico, afirmar qual a cor de um colorido. E assim aceitamos a afirmativa de que as cores são enigmáticas e, por extensão, pensar no nosso miserere, isto é, na imperfeição própria dos homens. E assim também aceitamos a ideia de que ética e estética são uma só coisa.
b) Como abstratas substantivas percebemos que as cores, como ideias, subsistem por si só. São nomeáveis e se tornam mais subordinadas às formas. Assim tornam-se mais racionais.

c) A consequência é que podemos perceber que pode haver uma convivência entre as cores concretas adjetivas e abstratas substantivas.

As considerações acima nos levam a algumas indagações sobre as harmonias. Podemos repensá-las não mais como absolutas e estáticas (e presas a uma lógica mais clássica), mas também como dinâmicas e com uma dimensão temporal. Neste caso podemos considerar a harmonia absoluta e estática como uma morte, e, se dinâmica, como uma vida. A passagem entre uma e outra se dá quando há a possibilidade de um estado de entropia máxima, e assim nos possibilita um recomeço. Abre, inclusive, para repensarmos em uma situação na qual não temos mais um espaço somente pictórico, mas também gráfico e este perceptível quando nossa mentalidade é absoluta. Em um espaço mais gráfico predomina a racionalidade das formas, isto é, ele torna-se mais racional. E, assim sendo, as questões de proporcionalidade podem ser mensuráveis racionalmente e independentes de uma  fenomenologia.

José Maria Dias da Cruz                                                                                                            Florianópolis – Maio de 20012


sábado, 4 de agosto de 2012

maria-sem-vergonha - óleo sobre tela - 30x40cm - 2010

Depoimento de José maria Dias da Cruz: Museu de Arte Moderna de Santa Catarina

 José Maria Dias da Cruz - artista plástico
“O caminho se faz dia a dia.”
 George BraqueEm 1948, num pátio de um grupo escolar, nasceu, informalmente, o Museu de Arte Moderna de Santa Catarina, fruto do trabalho obstinado de Marques Rebello. Há 50 anos, dia a dia o MASC se reinaugura. Ele guarda em seu acerco, entre outros, um certo quadro do genial pintor Martinho de Haro - uma obra-prima. E, assim, com grandeza o MASC vive.
Neste texto transcrevo uma carta de Marques Rebello, quando completou 60 anos, remetida a seu amigo Antônio Bulhões.
“Nunca pensei em chegar aos 60 anos! Não é hábito dos Dias da Cruz, mas é uma teimosia dos Rabelo Reis e creio que de tal ramo ancestral é que me bem a insistência sobre a Terra. Dou um balanço: não foi uma caminhada inútil. Fiz o possível para honrar a permanência única. Eu gastei mais ética que política para tanto. E daí não ter sido convocado para realizar muita coisa de que poderia ser capaz. É que o mundo não aprecia os éticos, não tem confiança na independência, estima mais, ou totalmente, aos que se subordinam aos jogos de conveniências. Mas até aqui não me deixou mágoa visível, ou constatável, a marginalização de minhas potencialidades. Em contrapartida vinguei-me pensando muito. E talvez pensar seja o melhor alimento para a longa vida  possivelmente o elixir que os alquimistas procuraram inutilmente. E chego aos 60 sem planos, como se tivesse esgotado o estoque de realizações. Viver já é obrigação bastante. Vivamos pois!”
Viva o MASC!

Marques Rebelo - Poema de um coração rubro

Poema de um coração rubro

por Marques Rebelo

O coração aguentou firme como se tivesse vinte anos, como se fosse o coração daqueles capetas que sassaricaram noventa minutos sem esmorecer um segundo, sem pensar um segundo que poderiam sair derrotados. Também fui correto e cientifico como ele, que os tempos podem não ser muito corretos, são até bastante incorretos e perturbadores, mas são capacitadamente científicos. Assim, meti-o numa concentração prudente e preparatória, paralela da casinha da Rua Gonçalves Crespo, mas em que o Jorge Vieira fosse eu próprio. Enchi-o de tônicos, de antiespasmódicos e de tranquilizadores da mais comprovada ação e do mais astronômico preço, forcei um regime sonoterápico do gênero familiar, entreguei-me a leituras rigorosamente escolhidas, para não me irritar, ainda para não me irritar não tomei conhecimento da intrincada e malcheirosa política guanabarina, subi com o pensamento a alturas altruísticas, me guardando de só falar mal dos colegas depois do dia 18, apenas não fui ver outra vez o “Xique-Xique no Pixoxó”, que é provada receita para relaxar os nervos, e estou abraçando aqui o compadre Oscarito, que, cumprindo uma obrigação profissional, não foi ao Maracanã e, ao ter no palco a notícia do triunfo, cortou as falas de comicidade com as incontidas lágrimas de júbilo, lágrimas que a plateia, imediatamente contagiada, recebeu com palmas e de pé.

O coração aguentou firme. Aguentou a crescente e angustiante expectativa semanal, com boatos de tornozelos inchados, distensões musculares e ameaças de alarmantes desfalques, aguentou a opinião nem sempre muito entendível dos entendidos do esporte, com muita alusão a complexos e inibições, esquecidos da grandeza das tradições, aguentou na noite de sábado a obrigação de uma crônica premeditadamente antecipada para o meu colunismo levemente intermitente, que finalizava com a afirmação de que o América é pequeno ante os pequenos e imenso ante os poderosos. Aguentou a cruel incerteza atmosférica, porquanto num gramado pesado não seria fácil ficarem em pé aqueles lutadores de salário mínimo, que vão ser agora muito cobiçados. Aguentou a entrada em campo dos queridos diabos rubros, como um grupo jovial de ballet, e o foguetório louco com que foram recebidos por cem mil almas aflitas, e os roucos microfones a avermelharem os ares com o hino do Lamartine Babo, e as charangas a entoarem o “Deus Salve o América”. Aguentou a tristeza do minuto de silêncio pela alma de Antônio Avelar com os rapazes americanos de fumo no braço, e lembrou-se de um americano que também não estava presente, o popular ciclista de camisa encarnada, que pedalava pela cidade o seu amor ao América e deve estar pedalando no céu. Aguentou firme a penalidade máxima contra, transformada em ponto, vantagem que descansava mais ainda a suficiência adversária, necessitada apenas de um empate; aguentou o primeiro gol a favor e o estrondo popular que se seguiu; aguentou o segundo gol, o chute da liberação e o delírio dos jogadores, o delírio dos assistentes americanos, vascaínos, botafoguenses, rubro-negros, sancristovenses, de todos enfim, pois era a efusão de uma cidade inteira que ali se representava, cidade que na sua vida maravilhosa, que nenhuma Brasília poderá perturbar, jamais deixou de torcer pelos fracos e pelos humildes.
Aguentou tudo firme este meu coração quase tão velho quanto o América. Mas não suportou os quatorze minutos finais. Não, não suportou. Era como se o apito terminal nunca mais soasse e uma dor fina o tomou, dor de vinte e cinco anos de espera, dor da esperança que ainda podia fugir numa desgraçada fração de tempo, de indecisão ou de infelicidade, esperança que por fim se abria como imensa flor naquele campo verde, campo em que tantas outras vezes o capricho da sorte ou o capricho dos homens ceifou-o cega e impiedosamente. Uma dor fina, que ia tomando o peito e os braços, peito que recebia a garra da opressão, braços que se sacudiram em gestos elétricos de entusiasmo e de incentivo, dor que não despertava nenhum medo, que doía sem doer, como se a paixão fora satisfeita, o destino cumprido, as tristezas redimidas e a morte pudesse ser um sacrifício feliz, o preço de uma ambicionada alegria.
Doendo ficou, ainda dói um pouco, como ferida que se traz duma batalha heroica. E não sei como foram os meus passos depois que a luta se encerrou, com cem mil bandeiras se agitando, bandeiras que não traziam todas as três iniciais do América – eram bandeiras de todos os clubes cariocas, inclusive a do glorioso tricolor, vencido que se irmanava ao vencedor com ternura e respeito, bandeiras que saudavam um velho e leal lutador. Sei que andei por mil lugares, e abracei, fui abraçado e ri, um riso de confiança que parecia haver secado e que renascia para a certeza de outras vitórias, para a segurança de que o América não era uma glória morta, não era o mitológico Campeão do Centenário, era o primeiro Campeão da Guanabara livre, era o mesmo América, pequeno mas eterno, clube que os adeptos das outras agremiações colocam sempre em segundo lugar na simpatia, por sabê-lo dono das mais caras e nobres tradições do nosso esporte. E revi aquela tarde radiosa de 1913, quando pela primeira vez pisei no campo da Rua Campos Sales, e não compreendia bem, e as camisas eram vermelhas, e estufavam-se com o vento nas corridas dos jogadores, e a bola ora subia muito alto no céu azul, ora caía na esmeralda da grama com um barulho surdo que nunca mais esqueci.
Revi as gloriosas jornadas de outros tempos num mágico e sentimental caleidoscópio. Revi os campeões do passado, e não somente os mestres da história americana, um Belfort Duarte, um Ferreira, um Ojeda, um Paulo Barata, um Chiquinho, um Hildegardo, um Osvaldinho, que era “o Príncipe”! Não! Revi todos aqueles modestos jogadores que se tornaram campeões porque o sangue da camisa os empurrava. E revi todos aqueles que, grandes ou pequenos, sem terem sido campeões, emprestaram ao América a sua fibra e o seu amor. Ó ruas do meu bairro natal, ó ruas da zona norte inteira, como vos revi na euforia daquela noite povoada de risos e canções como há vinte e cinco anos não acontecia, noite primeira de uma nova etapa da vida rubra, noite de 18, número cabalístico e venturoso da trajetória americana, dia em que nunca é vencido, dia que se afirma como o do seu renascimento depois de tanta espera e tanta pertinácia! (De Manchete)

(In: REBELO, Marques. Seleta. Org., estudo e notas Ivan Cavalcanti Proença. Rio de janeiro: José Olympio; Brasília: INL, 1974. p. 97-99)

Aforismos - Marques Rebelo

Frases e aforismos retirados do Livro O Trapicheiro – Primeiro volume da trilogia O Espelho Partido de Marques Rebelo escolhidos por seu filho José Maria Dias da Cruz.

Permaneci longo tempo contemplando a paisagem. A minha paisagem. Há quanto tempo não o fazia? Esquecera-me dela como se esquece de das linhas dum rosto familiar e amado. E o mar era meu mar, e a montanha era a minha montanha, e tudo estava calmo e imóvel.

Último pensamento de cada noite, primeiro de cada manhã. Mas no prado da esperança persiste a pequena rosa espúria da náusea.

A grande sabedoria é tudo fazer para nunca se dizer nada. Que magia seria o amor se os homens fossem mudos!

De súbito, no meio do sonho, o império de uma realidade ou de um vício – carnaval.

Seio e umbela.

Tudo é revelação e amor.

O melhor do amor é não esperar.

Uma luz branca e branda... O olhar espremido como se saísse de duas frestas.

E-va vê a a-ve
Vo-vó vê a u-va
O quadro negro e o quadro azul com o dia lá fora.

Enaltecer é difícil, mas sonhar é fácil.

Aborrecimento, quase poesia.

A arte poderia salvar os homens, mas como os artistas são tão mesquinho como os demais homens, salva apenas algumas memórias.