domingo, 15 de dezembro de 2013

Entrevisata com Danka Mais

ENTREVISTA JOSÉ MARIA DIAS
Meu amigo sinta-se a vontade para escrever, acrescentar ou retirar algo que não lhe agradar
1-Não posso fugir do trivial meu amigo, que estilo de pintura mais aprecia?
Não é nem uma questão de apreciação, mas de tomada de posição mesmo. Defendo os pintores verdadeiramente coloristas. E na contemporaneidade são muito poucos.
Aqui tenho que me alongar para me posicionar face à questão da cor na modernidade e contemporaneidade.
Helio Oiticica escreveu na década de sessenta que havia um problema na pintura, a cor. Declarou então que a pintura era da pintura de cavalete estava definitivamente encerrada.

Creio q esse problema da cor na pintura pode estudado a partir dos artistas pós impressionistas do final do século XIX.

Van Gogh e Odilon Redon, aos se referirem ao rompimento do tom, afirmaram que se misturássemos um laranja e um azul puros em quantidade iguas obteríamos um cinza absolutamente incolor. Apoiavam-se no círculo cromático iluminista que pretendia racionalmente explicar todos os fenômenos cromáticos da natureza. Já Guaguin afirmou quer a cor era enigmática. E se perguntou se deveríamos pintar uma sombra azulada ou o mais azul possível. Instalam-se suas dúvidas. Sendo a cor enigmática, como racionalizá-la? Deveria usar a cor adjetivada ou pura? Já Cézanne afirma que a luz não existe para o pintor, tem que se substituída por uma outra coisa, a cor. No final de sua vida diz que não realizou e nem realizará nada que pretendia e que fora um primitivo pelas coisas novas que descobrira. Já Seurat, baseado no livro de Chevreul, pretendeu realizar uma obra ancorada em princípios científicos. Estudou a divisão do tom baseado no círculo cromático iluminista. Seurat foi seguido por Paul Signac e esse método foi classificado pela crítica como pontilhismo, que é apenas um procedimento e não uma questão teórica.

No início do século XX duas retrospectivas importantes são realizadas em Paris entre 1902 e 1904, a de Van Gogh e Gauguin. Matisse, então, inicia o movimento fauvista. Afirma que as cores devem ser puras e obedecer à emoção. Diz ainda que não quer pintar com Signac, que escolhe uma cor ou outra baseado em princípios teóricos. É seguido por Braque, Vlaminck, Derain e muitos outros pintores. Sem uma base teórica forte o fauvismo dura apenas dois anos, de 1905 a 1907. Em 1906 é realizada a retrospectiva de Cézanne. Braque dá início aos primeiros quadros cubistas e começa e usar o rompimento do tom. É seguido logo por Picasso. A crítica não percebendo toda a riqueza dos rompimentos de tons dinamizando o clorido com uma dimwensão temporal, afirmam que os cubistas resumiram suas paletas aos ocres, cinzas e pretos.

Continuemos. Em meados do século XX tivemos alguns estudiosos das cores, Kandinsky, Klee, Albres e Itten, mas todos ainda considerando o círculo cromático iluminista. Alguns cololoristas surgiram depois, poucos, certamente pelo fato de os pintores considerarem um olhar não pelo simples aspecto, mas um prospectivo que implica em um saber do olho, como nos adverte Poussin.

Mas me parece que essa crise na pintura que eclodiu a partir da década de sessenta e os discursos sobre a morte da pintura recalcaram ainda mais a questão da cor. Claro, isso não impediu que grandes artistas com novas ideias surgissem.

De minha parte continuei fiel à cor, e nos meus estudos descartei o círculo cromático iluminista.
2- sobre a sua pesquisa  sobre Cézanne, se  considera um especialista nesse assunto? Independente da resposta, como avalia essa pesquisa.
Não há uma pesquisa. Houve no inicio, era ainda adolescente, um interesse pela pintura. Tive a sorte de desde o início consultar as fontes primárias. Dúvidas iam surgindo, e uma delas sobre as cores, muito recalcadas em nossa cultura. Daí chegar a Cézanne. O que percebi é que as cores eram um problema na pintura contemporânea e que Cézanne era muito mal estudado. Em diversos livros sobre cor ele é muito mal citado, e e em alguns nem é lembrado. Estou tentando entendê-lo e graças a ele descobri muitas coisas, como o   cinza sempiterno, causa e efeito dos coloridos e isso me permitiu descartar o círculo cromático iluminista. Esse descarte me permitiu ainda redefini o rompimento do tom não mais como misturas pigmentares. Hoje digo que a cor é para ser pensada e os pigmentos para serem usados. Descobri muitas outras coisas, como a definição da cor abstrata subsatantiva e a concreta adjetiva, uma interpretação para o serpenteamento vinciano que fala dos limites dos corpos. Nas  histórias das artes diz-se que Leonardo introduziu o sfumato na pintura. Isso é mais um procedimento e não uma questão teórica, ou se você quiser, um pensamento.
3-Como são as cores no trabalho e na sua  vida, por que escolhe algumas em especial? Qual seria o critério? Intuição?
Aqui vale antes uma observação. Cheguei à conclusão que temos as cores abstratas substantivas, que são ideias platônicas e as cores concretas adjetivas, cuja condição é ser no colorido. E esse colorido tem uma lógica. Portanto a escolha é bem mais o encontro da cor exata dentro de um colorido que afirme essa lógica.  E creio que nesse critério há uma intuição, mas espinosamente, isso é, com conhecimento.
4-Que relação você vê entre poesia e pintura?
Essa pergunta já foi bem respondida por Leonardo da Vinci. "A pintura é uma poesia muda." Uma poesia que se dá pelo pensamento plástico. Na modernidade e contemporaneidade, com a questão do espaço expandido, a fronteira entre pintura e poesia diminuiu muito.
5-Como consegue dar a sensação de luz nas pinturas a ponto de parecer poético, ou não há essa intenção, o resultado vem e também o surpreende?
Entendi a estrutura cromáticas de Rembrandt, que pelo rompimento do tom chegava à luz, e não a um claro. Há no meu trabalho uma intenção de chegar à luz. Se você quiser veja isso como uma metáfora. O que me surpreende é ver que uma vez realizado um quadro que tenho ainda muito o que estudar tais as dúvidas que surgem.
6-Qual o maior artista plástico na sua concepção e por quê?
A sua pergunta me permite responder que os maores artistas plásticos são aqueles que se matém fieis às suas questões, e não a modismos, jogos de conveniências, etc.
7-Que influência as palavras do pai tiveram sobre sua  obra.(Dias não citei sobre seu pai porque queria saber se é de sua vontade ou não, caso não seja,basta não responder a pergunta e eu entenderei sua posição.)
Uma questão complexa essa. Creio ter escolhido a pintura para não enfrentá-lo em um campo no qual ele tem  domínio quase perfeito.
8-Uma vez em nossas conversas, falei sobre as dificuldades na vida literária e você também comentou que por duas vezes pensou em parar com a pintura. Como foi esse momento? E como aconteceu a retomada?
A crítica não compreendeu o que vinha estudando e por vezes isso me desanimou. Cheguei mesmo a para algumas vezes mas felizmente consegui me superar.
9- Lendo sobre sua vida, acompanhando e me preparando para essa conversa tão especial,li o seguinte: "O artista não é um ego, mas um eco." Por quê ?
O atrista tem hoje que compreender que a ética é bem mais importante que seu próprio ego.
10-Como foi ser considerado pelo Jornal do Brasil na década de 90 como um dos 70 melhores artistas brasileiros do século XX?

Claro, gostei da notícia. Pensei que poderia alavancar minhas vendas, mas isso não aconteceu. As coisas se complicaram, em 20o5 fui morar em Florianópolis muito desanimado. Mas lá continuei trabalhando, escrevi dois livros, O cromatismo cezanneano e Pintura, cores e coloridos, este que será agora lançado no Rio. Aliás agora estou de volta, divulgando minhas ideias e isso tem valido muito mais que aquela consideração. E minha volta se deve muito ao empemho de uma grande amiga, Jandira Teske.
11-O que mais tentava passar para seus alunos quando foi professor no MAM Rio e na Escola de Artes Visuais do Parque Lage?
Tentei mostrar como a cor tem que ser reestudada, que como disse, está muito recaldada na contemporaneidade.
12-Qual seria a perfeita harmonia artística na sua concepção?
Primeiro, não acredito em harmonia em termos absolutos. Como disse acredito que os verdadeiros artistas levantam mais dúvidas que conclusões. Certamente por nem mais pensamentos utópicos podemos ter. Vivemos um momento crítico e procurar entendê-lo já é uma tarefa enorme.
13-Teve influências de artistas brasileiros como Di Cavalcanti, Iberê Camargo, Pancetti, Milton Da costa, Tarsila do Amaral, Santa Rosa e outros?
Nenhum me influenciou. Mas de alguns recebi bons conselhos. Me fizeram, pensar e isso é muito importante.
14-O que seria a geometria das cores?Em seus livros, o que mais valorizou?
A geometria sempre esteve presente na pintura, mas pelo lado gráfico, isto é, pelas  formas que são mais racionais. Por isso na Renascença Vasari afirmou que o desenho era o pai das três artes, a arquitetura, a escultura e a pintura. Deu-se o primado da forma ou do gráfico sobre a cor. Isso se entende porque as formas são racionais e as cores enigmáticas. Nos meus estudos das cores e dos coloridos percebi, pelo pensamento plástico, que os coloridos têm uma lógica nada absurda, como diz Cézanne. Por essa lógica nos é possivel construir espaços cromáticos. Entendo a construção lógica desses espaços como geométricos, apesar das  cores e coloridos serem enigmáticos. Temos assim as formas subordinada às cores.
No meu livro tento mostrar essa lógica e nesse sentido creio que estou muito mais fundando um novo olhar e uma outra mentalidade.
15-As vésperas de mais uma exposição, sei que ainda há o frio na barriga, aquela sensação do que vai acontecer e vai ser um sucesso tenho certeza, o que podemos esperar de você, do seu trabalho?
Creio que sentirei que vai aumentar minha responsabilidade.
16-Qual a mensagem deixa para nossos leitores.
Que duvidem sempre

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

A cor na arte moderna e contemporânea

A cor, a arte moderna e contemporânea, umas breves anotações

Helio Oiticica escreveu na década de sessenta que havia um problema na pintura, a cor. Declarou então que a pintura era da pintura de cavalete estava definitivamente encerrada.

Creio q esse problema da cor na pintura pode estudado a partir dos artistas pós impressionistas, no final do século XIX.

Van Gogh e Odilon Redon, aos se referirem ao rompimento do tom, afirmara que se misturássemos um laranja e um azul puros em quantidade iguas obteríamos um cinza absolutamente incolor, Apoiavam-se no círculo cromático iluminista que pretendia racionalmente explicar todos os fenômenos cromáticos da natureza. Já Guaguin afirmou quer a cor era enigmática. E se perguntou se deveríamos pintar uma sombra azulada ou o mais azul possível. Instalam-se suas dúvidas. Sendo a cor enigmática, como racionalizá-la? Deveria usar a coa adjetivada ou pura? Já Cézanne afirma que a luz não existe para o pintor, tem que se substituída por uma outra coisa, a cor. No final de sua vida diz que não realizou e nem realizará nada que pretendia e que fora um primitivo pelas coisas novas que descobrira. Já Seurat, baseado no livro de Chevreul, pretendeu realizar uma obra ancorada em princípios científicos. Estudou a divisão do tom baseado no círculo cromático iluminista. Seurat foi seguido por Paul Signac e esse método foi classificado pela crítica como pontilhismo, que é apenas um procedimento e não uma questão teórica.

No início do século XX duas retrospectivas imprtantes são realizadas em Paris entre 1902 1904, a de Van Gogh e Gauguin. Matisse, então, inicia o movimento fauvista. Afirma que as cores devem ser puras e obedecer à emoção. Diz ainda que não quer pintar com Signac, que escolhe uma cor ou outra baseado em princípios teóricos. É seguido por Braque, Vlaminck, Derain e muitos outros pintores. Sem uma base teórica forte o fauvismo dura apenas dois anos, de 1905 a 1907. Em 1906 é realizada a retrospectiva de Cézanne. Braque dá início aos primeiros quadros cubistas e começa e usar o rompimento do tom. É seguido logo por Picasso. A crítica não percebendo toda a riqueza dos rompimentos de tons afirmam que os cubistas resumiram suas paletas aos ocres, cinzas e pretos.

Citemos então Guaguin: “Esforcei-me para provar que os pintores, em nenhum caso, precisam dos apoio e instruções dos homens de letras. Esforcei-me lutando contra todas essas resoluções que se transformas em dogmas de que desorientam não somente os pintores mas o público. Afinal, quando compreenderemos o sentido da palavra liberdade.” De minha parte creio q devemos hoje procurar fazer um discurso de dentro da pintura e não fora dela.

Continuemos, em meados do século XX tivemos alguns estudiosos das cores, Kandinsky, Klee, Albres e Itten, mas todos ainda considerando o círculo cromático iluminista. Alguns cololoristas surgiram depois, poucos, certamente pelo fato de os pintores considerarem um olhar não pelo simples aspecto, mas um prospectivo que implica em um saber do olho, como nos adverte Poussin.

Mas me parece que essa crise na pintura que eclodiu a partir da década de sessenta e os discursos sobre a morte da pintura recalcaram ainda mais a questão da cor. Claro, isso não impediu que grandes artistas com novas ideias surgissem.
De minha parte continuei fiel à cor, e nos meus estudos descartei o círculo cromático iluminista, o que me permitiu descobri o cinza sempiterno como um pré ou pós fenômeno. Redefini o rompimento do tom não mais como misturas pigmentares, mas como sobreposição no tom de sua pós imagem o que deu à cor uma dimensão temporal. Pensei nas cores abstratas substantivas, ideias platônicas nas quais a cor subsiste por si só. Pensei nas cores concretas adjetivas como um par que contém em si sua oposta e cuja condição é ser no colorido. Reinterpretei o serpenteamento vinciano. Estou imaginando a possibilidade de se pensar em uma geometria das cores. Mas assim como Cézanne, me sinto como um primitivo pelas coisas novas que descobri. Muitas ainda são as dúvidas.

José Maria Dias da Cruz, Rio, dezembro de 2013






sábado, 7 de dezembro de 2013

As zonas da arte

Rafael Vogt Maia Rosa entrevista o crítico de arte, curador e professor de Yale Robert Storr

Na sala de Robert Storr na Escola de Artes de Yale, da qual é o diretor, mal cabem duas pessoas. Uma vez sentado em uma poltrona baixa, só é possível ver o crítico e artista plástico através das colunas de livros e catálogos empilhados por todo lado. “Eu não leio isso”, ele diz, enquanto procuramos um espaço vago com boa luz para foto. De fato, apesar da bibliografia ostensiva, não é difícil perceber que Storr é o contrário do estereótipo do intelectual sisudo e muito menos do crítico infeliz por não ser artista. Apesar de poder ser bastante contundente em seus textos – como na crítica que publicou em 2012 à nova direção do Museu de Arte Contemporânea de Los Angeles[1] -, é alguém que estabelece o elogio às diferenças e o bom humor como terreno comum para se começar a falar de arte.
Curador do departamento de pintura e escultura do Museu de Arte Moderna de Nova York, de 1990 a 2002, e responsável pela 52ª edição da Bienal de Veneza, para qual propôs o tema “Pensar com os sentidos”, Storr é uma das mais respeitadas e solicitadas figuras no cenário artístico norte-americano atual. Nesta entrevista, concedida em setembro de 2013, ele fala sobre uma concepção não consensual a respeito do modernismo, da relação das artes plásticas com a crítica e outras artes, bem como sobre aspectos pontuais da questão da teatralidade no contexto contemporâneo das artes plásticas.
 * 
Em uma entrevista recente, você mencionou dois pintores contemporâneos, Raoul De Keyser e Tom Nozkowski, que fizeram sucesso tardiamente. Isso, por si, poderia ser visto como um sintoma de um processo artístico menos programático, mas a obra deles, especialmente de De Keyser, me pareceu de algum modo distante de um ideário modernista, dado seu humor e variedade estilística. Quero dizer, não exatamente “moderno a despeito do modernismo”[2], mas simplesmente “outra coisa”. O que acha dessa impressão e quais você diria que são as aspirações da pintura hoje?
Robert Storr – A primeira questão é que eu não acredito que nós necessariamente concordemos a respeito do que seja o modernismo. Eu não tenho certeza exatamente do que você pensa, mas eu não creio que o modernismo jamais tenha sido uma coisa. Eu não creio que ele tenha sido sempre necessariamente sério, não acredito que exista uma característica particular que você possa dizer que é a essência do modernismo e, assim, eu vejo todas as razões para pensar em Raoul De Keyser como um artista modernista. Há uma longa tradição na arte moderna, que se aplica também a Nozkowski, de uma inventividade divertida, de um tipo de evocação do mundo natural, e assim por diante… Mesmo no Brasil. Você pode ver o trabalho de artistas brasileiros concretos e neoconcretos e vai encontrar muitos temperamentos diferentes, muitas características diversas. Portanto, eu simplesmente vejo De Keyser como sendo um modernista de sua geração, e eu o vejo como uma instância de uma sensibilidade europeia altamente cosmopolita, na qual ele trabalha por uma série de fases – abstrata, pop e assim por diante --, até chegar a sua síntese própria. Quanto ao que pode ser feito no futuro… Existem diversas coisas a serem feitas. E não creio que exista uma missão para o modernismo, mas muitas. Como sempre digo, a substância do modernismo são as controvérsias a respeito do que o modernismo deve ser; e as respostas são tão numerosas quanto o são os bons artistas.
Em palestra dada aqui, em 2010, na Escola de Arte Dramática, David Hare afirmou que as atividades da crítica e da criação artística são virtualmente opostas. Ele disse também que a peculiaridade da profissão do artista seria a de ser capaz de lidar com o destino de ser julgado, sempre, enquanto a do crítico, consequentemente, seria a de julgar. Presumindo que você é ambos, artista e crítico…
Storr – Sim, eu sou.
…pois então, como você vê esse aparente antagonismo?
Storr – Eu discordo. E penso que o desacordo possa ter a ver com diferentes experiências de vida. As pessoas do meio teatral recebem avaliações críticas o tempo todo e frequentemente recebem avaliações negativas e isso as faz supersensíveis, as faz desgostar de críticos. Por outro lado, ninguém menos que Oscar Wilde escreveu um longo diálogo em que essencialmente dissolve as distinções entre arte e crítica e, obviamente, nas artes visuais, muitos de nossos melhores escritores são ou foram artistas. Pode-se pensar em Delacroix, Van Gogh, Donald Judd, pode-se pensar em Sol Lewitt, Robert Morris e a lista segue… Quero dizer, no caso do Brasil você encontra a mesma situação: Tarsila [do Amaral], por exemplo, escreveu bastante, e seu marido [Oswald de Andrade] também. Assim, essa ideia de que há uma diferença categórica entre arte e crítica é uma ficção. De todo modo, eu posso entender as motivações que o levam a não se sentir bem em relação aos críticos. Eu de fato acredito que artistas fazem algo que críticos nem sempre fazem, porque relativamente poucos críticos são verdadeiramente escritores. Mas os maiores são escritores, e nós lemos seus textos sobre artistas que seriam completamente irrelevantes. Portanto, se lemos Baudelaire sobre Constantin Guys não é porque Guys é uma figura importante, mas porque Baudelaire escreveu algo extraordinário sobre as possibilidades que acreditou que esse artista representava.
Se você tomar a obra de Matthew Barney como exemplo – e ele atleta, jogador de futebol americano e aluno aqui, enfim... --, existem tantos elementos de teatro, música e cinema envolvidos que é uma espécie de eufemismo chamá-la de “arte visual”. Por outro lado, parece que é um desenvolvimento histórico específico das artes visuais que provê as bases de sua poética. Qual é, afinal, a singularidade desse campo, o que o diferencia de outras linguagens artísticas?
Storr – Esse é um tópico bastante amplo e complicado. Quero dizer, era uma vez, e particularmente neste país, nos anos 40 e 50, com Clement Greenberg, essa ideia de que cada mídia tinha suas propriedades essenciais. E que aquelas obras de arte que combinassem as propriedades de diferentes mídias eram de algum modo inferiores. E havia uma forte argumentação contra o teatral nas artes visuais, como sendo, de alguma maneira, inferior à pura pintura ou à pura escultura.
Você acha essa questão datada?
Storr – Eu acho que foi um erro de início e continua sendo. Não acredito que estivesse errado quando Greenberg promulgou isso, mas não acredito que ele tenha entendido as implicações do que disse, e o mesmo para Michael Fried, que estendeu isso ainda mais adiante. Então, não vejo qualquer razão para se aceitar isso como um a priori. Certamente Picasso não se importava nada com o que era absolutamente pintura, absolutamente desenho, e daí a colagem, claro, misturou tudo ainda mais. De todo modo, retomando a questão, a obra que Matthew [Barney] faz, ela pertence a uma longa tradição de apagamento dessas distinções. Recentemente ele tem sido mais “aberto” em sua homenagem a Joseph Beuys, por exemplo. E Beuys obviamente também provém de uma tradição. Assim, penso que é possível ver a performance e a instalação como uma ampla plataforma de práticas artísticas, desde o século 19, ao menos, ou talvez antes ainda, no século 18, com as máscaras e formas como essas; e que nós estamos vendo permutações muito interessantes, muito novas – algumas mais, outras menos –, de uma longa história desse tipo de prática artística que inclui os acionistas de Viena, Itália, Japão, que inclui muitas e muitas tendências, e Matthew é provavelmente o mais cinematográfico que já vimos; mas, por outro lado, ele é o mais conservador, teatral; sua afinidade com a Grande Ópera, com as trupes do Século 19. Ele é na verdade bastante conservador, apesar de outras coisas que faz serem muito inovadoras.
Um ex-aluno desta universidade publicou um livro no ano passado intituladoSexo e Deus em Yale.
Storr – Ele encontrou ambas as coisas, sexo e Deus em Yale? (risos)
Não tenho certeza quanto a deus, mas sexo, de certa maneira, eu diria que sim.
Storr – Eu fico feliz por ele.
Pois é... Em todo caso, em um dos capítulos, ele transcreve a seguinte notícia publicada no jornal da universidade: “A aluna de artes plásticas Aliza Shvarts (classe de 2008) quer fazer uma declaração. A partir da próxima quinta-feira, Shvarts estará apresentando o seu projeto de conclusão de curso, uma documentação de um período de nove meses durante os quais ela se auto-inseminou artificialmente “o mais frequentemente possível” enquanto tomou periodicamente medicamentos para induzir abortos. Sua exposição incluirá gravações em vídeo desses abortos induzidos, bem como mostras de sangue obtidas durante esse processo”.
Storr – Eu não li o livro, mas conheço o caso.
Como diretor da escola, você considera que há limites éticos para propostas nesse sentido?
Storr – Eu estive envolvido intimamente, e existem questões sobre as quais eu não posso falar porque dizem respeito à privacidade de um aluno. Mas minha visão é a seguinte: nesse caso, em particular, o que uma mulher fez foi de sua inteira escolha fazer; se ela estivesse fora de um ambiente acadêmico, se ela estivesse fazendo coisas como as que os acionistas fizeram, como Yoko Ono fez, ou não importa quem no domínio público, eu não teria nenhum comentário a respeito; caberia a ela e eu, como membro da audiência, iria ponderar a respeito. No ambiente acadêmico, a instituição não deve encorajar alunos, possibilitar que eles façam coisas quando muito jovens que podem acabar sendo bastante prejudiciais a longo prazo. E nessa circunstancia em particular, ela não estava sendo completamente franca em relação ao que estava fazendo e acabou envolvendo a universidade em um processo que nós não teríamos aprovado se tivéssemos sido comunicados de início do que se tratava realmente. E, se assim fosse, nós enfim teríamos que dizer que não iríamos avaliar o trabalho, porque não concordávamos com ele, e procurar outra obra do aluno que pudéssemos considerar.
O tema deste número da revista Celeuma é o da inter-relação das artes. Você acabou de abordar a questão, mas poderia falar mais especificamente algo a respeito da influência da música no seu trabalho?
Storr – Bom, eu vivo com uma musicista e escuto muita música. Mas não envolvo música com nada que eu faço. Não é parte de meu projeto. Mas trabalho com muitos artistas que têm a música como algo essencial no que fazem. Bruce Nauman, por exemplo. Portanto, eu vejo a música como um ingrediente das artes visuais com muita frequência atualmente. E acho bastante interessante. O hip-hop teve uma profunda influência em obras feitas não só por negros nos EUA, mas no mundo inteiro, porque a linguagem do hip-hop, as rimas têm um tipo de plasticidade que é basicamente um jogo de palavras no sentido wittgensteiniano, certo? Assim, tudo isso é muito interessante pra mim, mas não é o que eu faço.
Certo...
Storr – Agora, retomando sua questão anterior, e também porque se trata de uma publicação brasileira, obviamente, o que Lygia Clark, Oiticica e outros fizeram está bastante ligado à parte de uma tradição da qual Barney provém. Eu diria que a deles é mais radical do que a dele. Internamente, pode-se olhar para a tradição da confluência de mídias e da teatralidade na arte e fazer julgamentos baseados não no fato de ser ou não ser arte, mas a partir de uma zona determinada. Por exemplo, Allan Kaprow se queixa de que não se deveria falar em “performance” e não se deveria falar em “instalação”, porque ressaltam o que ele chama de “qualidades cenográficas e teatrais”. Sua preferência era por “environments” [ambientes] e happening que minimizam o “cenográfico”. Isso permite um diálogo interno entre práticas, no qual é possível tomar diferentes posições; acredito que seja mais útil que reduzi-lo à pintura e escultura tradicionais.
Dito isso, você não pensa, então, que a pintura é um meio mais conservador ou tradicional?
Storr – São coisas diferentes. Mais tradicional significa “com mais tradição”. Conservador significa se ater a algo contra as pressões por mudanças. A boa pintura mantém-se transformando. Ela pode ser tradicional e progressista ao mesmo tempo. Conservador geralmente mantém-se atrás ou olha pra trás.
Mantém-se transformando, mas não reagindo ao próprio modernismo...
Storr – Sim. E, de novo, não acredito que nós concordemos a respeito do que seja o modernismo. Eu penso que “modernismo” tem uso comum hoje; o pós-modernismo, como uma ideia que o toma por esse uso comum, é uma falácia. É altamente suspeito. O modernismo nunca chegou perto de ser o que fórmulas norte-americanas da metade do século 20 disseram que é. Logo, sou totalmente a favor de se superar isso, mas não em nome de algo que vem depois do modernismo, mas em nome de se restaurar a complexidade e diversidade do que ele foi em suas origens.
Também quanto à noção de “planaridade da pintura moderna” e exploração das especificidades desse meio...
Storr – A pintura vem explorando seu próprio meio por toda a sua história, certo? Planaridade foi uma característica muito específica que surgiu na França, e se fixou na era pós-impressionista, e que Clement Greenberg revisitou. Mas eu conheço muitos pintores que não fazem pinturas planares. Elisabeth Murray não faz pinturas planares, Bob Ryman não faz pinturas planares, Frank Stella não faz pinturas planares. Portanto, a ideia de planaridade já estava vencida no minuto em que alguém a proferiu.
Em um ensaio sobre a artista brasileira Jac Leirner, você começa com a frase “Foi amor à primeira vista”. Eu estava pensando em um texto de Agamben sobre a natureza da amizade, em que ele fala da etimologia dessa palavra, sua íntima relação com a própria filosofia, o conhecimento, mencionando também, a partir de uma pintura de Serodine, a questão da “excessiva proximidade” – a que se poderia talvez acrescentar a ideia de uma confiança absoluta. Você acredita que a distância é um requisito para a boa crítica?
Storr – É um requisito não só para a boa crítica, mas para a boa arte. “Amor à primeira vista” não é a mesma coisa que confiança absoluta. Eu não confio em ninguém absolutamente. Eu não confio em minha companheira absolutamente – e ela não confia em mim... (risos)
No sentido de que nós nunca estamos em total acordo com outra pessoa, certo? E nossa experiência de vida nunca está em total acordo com a de outra pessoa. Confiança é uma questão da latitude que você suporta que algo seja diferente de você. E eu confio em uma ampla latitude de obras que valorizo. Mas amor, atração e envolvimento não significam identidade.
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terça-feira, 26 de novembro de 2013

Depoimento de Denise Calazans Gama Lima tomado por Bernardo Magina

Depoimento de Denise Calazans Gama Lima

Denise,

Você poderia me dar um breve depoimento sobre como foi aplicar os estudos de cor ( Zé Maria) com as crianças na escola que você trabalha?

Beijos,

Bernardo Magina

--------------------

Oi Bernardo,

A arte como vc sabe pode ser reveladora. Falei com meus alunos na época ( fundamental II ) sobre a cor, tal qual experiênciamos com o mestre Zé Maria. Convidei-os a experimentar primeiro com a cor impressa das revistas e cortar pequenos círculos. Ao longo da pesquisa e coleta fomos "colecionando" vários azulados, esverdeados, amarelados, avermelhados, tons rompidos, etc e, logo um repertório imenso foi se abrindo sobre eles. É tão interessante como ver despertar esse conhecimento nos alunos. Eles começaram a " sacar" a questão da cor adjetiva, a substantiva e toda a relatividade que poderia surgir. Ao invés daquilo que estava posto na maioria do livros de ciências e de arte, e do disco de Newton, começamos a descobrir outras possibilidades. Fizemos várias construções com esses mini círculos recortados e montamos vários cromatismos. Numa segunda etapa, qdo tudo já começava a ficar claro, partir para que eles mesmos chegassem nas misturas e tons, evitando nomenclaturas. Dei a paleta mínima e eles não acreditavam que podiam chegar naqueles coloridos todos já vivenciados só com aqueles tubos de tinta. Foi incrível, a cada descoberta um admiração. Falei com eles que poderiam tudo com aquelas misturas e muito mais, e sugeri que eles começassem fazer seus próprios experimentos , se "encontrassem" nos seus tons e coloquei, enfim, a questão do cinza sempiterno, do pré e pós fenômenos e toda a sua riqueza.
Esses exercícios para meus alunos que tinham escassez de recursos e que achavam que só poderiam atingir um colorido com aqueles estojos de mil tubos super caros, ficaram estupefatos com esse novo mundo colorido nas suas mãos e que eu os apresentara "zémarianamente". Com certeza abrimos a mente. Foi muito legal!

P.S.: se eu tiver algumas fotos eu te passo depois.
Abs
Denise


Denise,

Você poderia me dar um breve depoimento sobre como foi aplicar os estudos de cor ( Zé Maria) com as crianças na escola que você trabalha?

Beijos,

Bernardo Magina

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Oi Bernardo,

A arte como vc sabe pode ser reveladora. Falei com meus alunos na época ( fundamental II ) sobre a cor, tal qual experiênciamos com o mestre Zé Maria. Convidei-os a experimentar primeiro com a cor impressa das revistas e cortar pequenos círculos. Ao longo da pesquisa e coleta fomos "colecionando" vários azulados, esverdeados, amarelados, avermelhados, tons rompidos, etc e, logo um repertório imenso foi se abrindo sobre eles. É tão interessante como ver despertar esse conhecimento nos alunos. Eles começaram a " sacar" a questão da cor adjetiva, a substantiva e toda a relatividade que poderia surgir. Ao invés daquilo que estava posto na maioria do livros de ciências e de arte, e do disco de Newton, começamos a descobrir outras possibilidades. Fizemos várias construções com esses mini círculos recortados e montamos vários cromatismos. Numa segunda etapa, qdo tudo já começava a ficar claro, partir para que eles mesmos chegassem nas misturas e tons, evitando nomenclaturas. Dei a paleta mínima e eles não acreditavam que podiam chegar naqueles coloridos todos já vivenciados só com aqueles tubos de tinta. Foi incrível, a cada descoberta um admiração. Falei com eles que poderiam tudo com aquelas misturas e muito mais, e sugeri que eles começassem fazer seus próprios experimentos , se "encontrassem" nos seus tons e coloquei, enfim, a questão do cinza sempiterno, do pré e pós fenômenos e toda a sua riqueza.
Esses exercícios para meus alunos que tinham escassez de recursos e que achavam que só poderiam atingir um colorido com aqueles estojos de mil tubos super caros, ficaram estupefatos com esse novo mundo colorido nas suas mãos e que eu os apresentara "zémarianamente". Com certeza abrimos a mente. Foi muito legal!

P.S.: se eu tiver algumas fotos eu te passo depois.
Abs
Denise

sábado, 23 de novembro de 2013


ANOTAÇÕES

O CROMATISMO EM CÉZANNE

Suas conseqüências

Edição do autor
Novembro de 2007



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Anotações para um livro sobre Cézanne

Mom Dieu ! quelle guerre cruelle
Je trouve deux hommes em moi
Racine



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Justificativa

Um livro sobre o cromatismo cezanneano parece-me oportuno. A cor está bastante recalcada na contemporaneidade. No livro A História das Cores, de Manlio Brusatin, está dito que o homem contemporâneo está perdendo a capacidade para uma percepção cromática mais profunda. Não investigarei as causas desse recalque. Apontarei apenas alguns indícios na esperança de que, assim, outros estudiosos se interessem em pesquisá-lo e em procurar melhores explicações para esse fato. No campo das artes, é curioso notarmos que vários teóricos das questões cromáticas nem citam Cézanne e nem se apóiam em suas observações, apesar de ele ter dito que era um primitivo pelas coisas novas que descobrira.

Nos textos da primeira metade do século XX, artistas de porte como Kandinsky, Klee, Albers, Itten, e Oiticica nos anos sessenta, nenhuma referência a Cézanne fazem, não obstante o mestre ter sido bem claro em seu interesse pelas cores, tanto em seus escritos quanto em sua obra. Os quatro primeiros apóiam-se na Doutrina das Cores, de Goethe. Já Oiticica cita Delaunay.

É curioso constatarmos que até mesmos esses artistas foram poucos estudados e não considerados como grandes pensadores das cores no século XX. Cada um merecia um livro de no mínimo trezentas páginas. O próprio Manlio Brusatin, em seu livro História das Cores nada fala do cromatismo de Cézanne. Pelo que sei, nem mesmo em livros científicos sobre as cores, dos pouquíssimos que li, ou sobre a psicologia gestáltica, Cézanne é citado como colorista, ao contrário de Seurat, muito mais lembrado. Também não é lembrado em importantes livros de filosofia, como as Anotações sobre as cores de Wittgenstein, por exemplo, que se apóia também em Goethe, e cita a Doutrina das Cores.

O filósofo Edgar Lyra, em um artigo publicado na revista Após, editada pelo Departamento de Filosofia da PUC Rio, reconhece essa falta de estudos sobre o cromatismo cezanneano. Cita, inclusive, um crítico que em 1914 afirmou que Cézanne foi o Cristóvão Colombo da forma. Não há como comparar essas duas grandes figuras. Cristóvão Colombo, por um artifício, mostrou como um ovo poderia ficar em pé. Cézanne jamais faria isso. O primeiro mentiu. Cézanne falaria a verdade e enfrentaria a dúvida e o enigma da impossibilidade de um ovo ficar em pé. A verdade é honesta.

Da força de Cézanne diante da natureza, do cinza sempiterno e dos contrastes

Vejamos uma frase de Cézanne: "A luz não existe para o pintor, tem que ser substituída por uma outra coisa, a cor. Fiquei contente comigo mesmo quando descobri isto." Penso que ele despreza o modo como os impressionistas e pós pensavam a cor. Isto é, a partir do espectro.

Monet, com a série da catedral de Rouen, é um exemplo. Ele procurou pintá-la cada vez de acordo com a qualidade da luz em determinado momento obedecendo a ordem das cores do espectro. Seurat, pelos contrastes simultâneos, procurava representar a luz, etc. Quando Cézanne diz que a luz não existe para o pintor, que tem que ser substituída por outra coisa, a cor, nos faz pensar, logicamente, que ele tinha uma outra idéia da cor e do colorido. Não se interessou pelo colorido impressionista, é claro. Qual era então o colorido que ele tanto procurou, sobre o qual afirmava que não tinha nada de absurdo e era perfeitamente lógico? Certamente não um a partir de um círculo cromático absoluto que classifica as cores em primárias, secundárias, etc. A
lógica estática deste círculo, face à obra de Cézanne, é absurda. Para ele na Natureza tudo está colorido.

Em 1866, em carta a Pissarro Cézanne escreveu: "Você tem perfeitamente em falar de um cinza, somente ele reina na natureza e alcançá-lo é de uma dificuldade espantosa." O mestre percebeu que já não se tratava mais de um cinza resultante de misturas pigmentares, pois esses são facílimos de se obter. Considero este cinza como causa e efeito dos coloridos. Se utilizarmos um pensamento próximo à geometria dos fractais - não para que este pensamento em pintura seja uma simples ilustração de descobertas científicas - veremos que no trajeto gradativo de uma cor em direção a sua oposta, pelas sucessivas aproximações ou fracionamentos, chega-se a um cinza
que é um ponto. Não tem nenhuma dimensão.

O trajeto se faz pelos sucessivos rompimentos, comentados abaixo. Vejamos o trajeto entre um vermelho e seu oposto, um determinado verde, por exemplo. O vermelho vai gradativamente se esverdeando. Na outra ponta é o verde que vai gradativamente se avermelhando. No exato centro desses rompimentos temos um ponto - o cinza sempiterno, que ao lado do vermelho é esverdeado e ao lado do verde é avermelhado. Jamais poderemos dizer quando ele é ele mesmo.

Pelos movimentos reversos volta-se aos trajetos e às cores iniciais.

Se tomarmos um colorido, ele também encontra um ponto, um cinza. Nesse colorido todas as cores se rompem, inclusive o branco e o preto. Como nos são limitados a percepção de todos os coloridos, mas somente daquele que se nos mostra em determinado momento, podemos dizer que um cinza sempiterno é causa e efeito de cada colorido.

Escrevi em meu livro A Cor e o Cinza, que "deste ponto nenhuma notícia teremos, salvo a intuição de que ele é o local de eliminação de tensões e de passagem entre cores opostas, considerando estas concretas adjetivas, cuja condição é ser em um colorido." Não podemos nem mesmo dizer que são relativas, mas apenas que buscam uma convivência simultaneamente com outras.

Há também as cores abstratas substantivas, idealizadas, platônicas, que subsistem por si só, as quais não se podem descartar. São quase infinitos os coloridos, daí serem também quase infinitos os cinzas. Deles e para eles os coloridos, simultaneamente, convergem e divergem. Esse cinza é assim em si dinâmico e sempre presente, daí considerá-lo sempiterno.

Para compreendermos o cromatismo cezanneano é fundamental entendermos a lógica do cinza sempiterno, o qual denominei sempiterno, pois ele ocupa todo o espaço e uma percepção dinâmica dos contrastes cromáticos. Tomemos uma fração do trajeto acima descrito. Teremos dele também seu oposto. No centro sempre um ponto sem nenhuma dimensão, outro cinza sempiterno. Podemos fazer o mesmo com todas as outras cores. Por isso Cézanne disse que "somente ele reina na natureza."

Teóricos da cor do século XIX, que muito influenciaram os pintores, estudaram os contrastes simultâneos observando inúmeros espécies deles separadamente, e sem considerar o rompimento. Já Cézanne, em seus estudos dos contrastes e rompimentos, observava a natureza diretamente e esta devia ser vista sempre como uma primeira vez. É um esforço hercúleo, para nós, ainda inimaginável. Isso nos mostra uma enorme diferença em relação aos seus pares. Não se sabe se ele leu o famoso livro de Chevreul, Da Lei dos Contrastes Simultâneos. Certamente dele poderia ter se informado quando esteve em Paris. Mas ao retornar a Aix-em-Provence afirmou que queria fazer do impressionismo uma coisa tão sólida como os quadros de museus, e por isso podemos deduzir que esse livro não o interessou. Dizia que era preciso ser forte. Por Cézanne, por sua força moral, por sua obstinação, devemos este inestimável ensinamento.

A lógica do cinza sempiterno

Há coisas, penso, bem difíceis. Quando Cézanne fala de um cinza que reina em toda natureza e quando refere-se a sua própria e a natureza em si em um diálogo com Emile Bernard aborda uma questão bem maior. Nesse mesmo diálogo refere-se também a uma lógica que não tem nada de absurdo. Perguntamos, então, qual a lógica do cinza sempiterno? Parece-me mais complexa do que a do terceiro incluído. Tantas são as variáveis, e ainda inclui nelas o acaso. Veja-se o que Braque disse: “É o acaso que nos revela a existência.” Os cinzas sempiternos são a causa e o efeito dos coloridos, são uns pré ou pós fenômenos. Como causa, geram vários coloridos, neste caso são uns pré-fenômenos na medida que ocorreram quando dos aparecimentos desses coloridos. Os coloridos, por sua vez, são a causa dos cinzas sempiternos. Neste caso eles são uns pós-fenômenos. São os coloridos que, uma vez gerados, fazem que os cinzas sempiternos sejam pós-fenômenos.

Pensamos em um cinza onipresente, inteiramente fora de nosso mundo, face a nossos limites, que seria a causa e efeito de todos os cinzas sempiternos. Por isso Cézanne diz que pinta somente uma secção do espaço. De minha parte digo que nossa vida é balizada entre nosso nascimento e morte, o que não exclui outras vidas. O cinza onipresente não está em nosso mundo balizado entre nosso nascimento e morte, mas continua independente de nossa morte. Diremos que é uma variação de um cinza sempiterno que, sem nenhuma mágica linguística, sustenta a lógica do cinza sempiterno. Diremos, então, que se ele está em toda parte possível, não implica em sua infinitude. Como centro é apenas inatingível, tanto como os cinzas sempiternos. Ambos são enigmáticos.

No que se refere ao acaso podemos associar ao estado de entropia máxima e da passagem da ordem ao caos e deste novamente à ordem. O acaso seria então uma situação limite da qual poderemos prever dentro de uma certa circunscrição de possibilidades. Nesse sentido o acaso nos revelaria a existência, permitiria que tivéssemos uma percepção dela entre várias possíveis e, também, de sua realidade entre várias.


O rompimento do tom

Cézanne referia-se também a 1/2 tom, 1/4 de tom, etc. Vemos em seus quadros que utilizava muito os rompimentos dos tons. Nas teorias cromáticas tradicionais a partir do século XVIII, o rompimento resultava das misturas pigmentares. Defino-o como um tom que se transforma pela sobreposição nele de sua respectiva oposta, a pós-imagem, pela convivência deste tom com outros, pela qualidade das luzes e sombras, pelo tempo que escolhemos para observá-lo, etc.

É fácil percebermos o rompimento do tom. Basta olharmos uma cor circunscrita em um quadrado durante alguns segundos e diminuirmos a distância de observação à metade. Veremos, sobrenadando na cor, um outro tom que é o tom rompido. Se o observarmos em diversos tempos, veremos que quanto maior for o tempo de observação, mais o tom se rompe. A qualidade da luz também interfere na percepção das diversas possibilidades de rompimentos. Pode-se afirmar, por essas experiências, que a cor e o colorido têm uma dimensão temporal. Vale dizer, estão sempre movendo-se face à presença de uma testemunha.


Pintar é contrastar

Cézanne falava também que pintar é contrastar. Mostraremos, além da dimensão temporal dos rompimentos de tons, os vários níveis de percepção e realidade. Os contrastes se anulam e se unificam pela lógica do terceiro incluído sem ferir o axioma da não contradição. (Abaixo citarei estudiosos desta questão. Esse axioma diz que em A e não A temos a contradição respeitada por essa lógica, pois A não é não A e não A não é A). Mas temos de afirmar que insistir em uma só lógica para um entendimento do cromatismo cézanneanno pode ser uma tarefa quase inútil. Se insistirmos nessa tese cairemos sempre em uma premissa indemonstrável. Psicólogos gestálticos experimentaram como percebemos as cores. Apesar dos vários métodos utilizados os resultados eram surpreendentes, incontroláveis, longe de qualquer explicação científica. Consideraram, então, a cor como sendo enigmática, conclusão a que chegara o pintor Gauguin. Se pelos sucessivos rompimentos intui-se um ponto, e não tendo esse nenhuma dimensão, ele também é enigmático. Arriscaria dizer que a cor é paradoxal.

Braque diz “Em arte apenas uma coisa tem valor, o que não se pode explicar.” O próprio Cézanne afirma que: “Tudo é, em arte, sobretudo, teoria desenvolvida e aplicada pelo contato da natureza.” Daí pensarmos que muitos poemas poderão ser muito mais elucidativos do que a aridez de textos apenas teóricos. Leiamos, portanto o poema “Modernidade”, de Rachel Gutierrez.

É quando a vasta noite acende estrelas
- o vídeo, o som, painéis já desligados –
que a velha alma acorda peregrina
e evoca outros planos, outros mundos
esferas de amplidão jamais pensada
onde a palavra Tempo é sem sentido
e a treva cintilante é Mãe-Rainha.


A lógica do terceiro incluído

A citação que se segue, retirada de um livro recentemente editado, pode ratificar o que vinha pensando plasticamente, muito embora, como já disse, podemos pensar a partir de outros modelos para uma compreensão das obras de arte.

Para o autor, T, no caso abaixo, é uma flecha do tempo e da informação.

"A Realidade comporta, segundo o nosso modelo, certo número de níveis. As considerações que se seguem não dependem do fato deste número ser finito ou infinito. Para a clareza terminológica da exposição vamos supor que este número seja infinito.
Dois níveis adjacentes estão ligados pela lógica do terceiro incluído, no sentido de que o estado T presente num certo nível de realidade, está ligada a um par de contraditórios (A, não A) do nível imediatamente vizinho. O estado T produz a unificação dos contraditórios A e não A, mas esta unificação ocorre num nível diferente daquele onde estão situados A e não A. Nesse processo o axioma da não-contradição é respeitado. [...]
A lógica do terceiro incluído pode descrever a coerência entre os níveis de realidade pelo processo interativo compreendendo as seguintes etapas: Um par de contraditórios (A, não A) situado num certo nível de realidade é unificado por um estado T situado num nível de realidade imediatamente vizinho; 2. Por sua vez, este estado T está ligado a um par de contraditórios (A', e não A'), situado em seu próprio nível; 3. O par de contraditórios (A', e não A') está, por sua vez, unido por um estado T' situado num nível diferente de Realidade, imediatamente vizinho daquele onde se encontra o ternário (A', não A', T). O processo interativo continua indefinidamente até o esgotamento de todos os níveis de realidade conhecidos ou concebíveis. [...]

Se afirmarmos o limite de nosso corpo e de nossos órgãos dos sentidos, a afirmação de um conhecimento humano infinito (que exclua qualquer zona de não-resistência) parece-nos uma mágica lingüística. A zona de não resistência corresponde ao sagrado, isto é, aquilo que não se submete a nenhuma racionalização. A proclamação da existência de um único nível de realidade elimina o sagrado, às custas da autodestruição deste mesmo nível.”
Basbarad Nicolescu em o “Manifesto da Transdiciplinaridade.”, Trion, São Paulo, 1999.

Para além do limite acima escrito, os autores consideram um estado de transparência absoluta, onde não mais, por se dar em um espaço ilimitado, temos a lógica do terceiro incluído. Falam do encerramento das contradições. Falam ainda do terceiro excluído.


Uma tradição

Cézanne fala das pequenas sensações. Cada uma tem um centro com seu respectivo cinza sempiterno, daí seu espaço ser, simultaneamente, sincrético e analítico. Citemos Klee: "O crepúsculo incerto do centro." Curioso é constatarmos que essa afirmativa pode nos levar à indagação de Hélio Oiticica sobre o núcleo da cor e a afirmativa de Gauguin sobre o enigma das cores. Lá atrás está Cézanne, que não quis criar uma escola, mas uma tradição. Penso que isso pode dar origem a uma pesquisa bastante profunda.


Um círculo cromático parado, portanto, que não circula

Qual a utilidade de um círculo cromático absoluto, criado no século XVIII, que classifica as cores em primárias e secundárias, com a pretensão de explicar todos os fenômenos cromáticos da Natureza? Devemos evitar, o tanto que possível, as classificações. Elas quase que anulam as percepções e são por demais conclusivas.
É urgente repensarmos as cores, e Cézanne nos aponta para essa necessidade. As cores não são absolutas. Se assim as considerarmos jamais compreenderemos as pinturas do mestre. Daí ter pensado nas cores abstratas substantivas e concretas adjetivas. Destas últimas diremos que são um par, que contém em si sua oposta, a qual pode ser observada pela pós-imagem e pelo rompimento do tom. Na passagem entre a cor e sua oposta encontramos um ponto, o cinza sempiterno.

O pintor lida com as duas, as concretas adjetivas e as abstratas substantivas.

Podemos notar que as cores concretas adjetivas ou são amareladas, azuladas, avermelhadas, esverdeadas, claras ou escuras. Assim ficamos livres das respectivas nomeações e mais atentos para a percepção.

Lembro-me de uns relevos amarelados do Hélio Oiticica expostos no MAM – Rio. Se fossem pintados de um amarelo o qual nos levasse mais a classificá-lo como abstrato substantivo, certamente ficariam mais visíveis pelo fato de ocuparem um espaço exclusivo, independente do ambiente. Amarelados, como intuitivamente Hélio Oiticica os pintou, tornaram-se estruturalmente dependentes do colorido do ambiente, apesar da permanência da visibilidade. A condição da cor concreta adjetiva é ser no colorido. Não houve uma invasão no espaço natural, mas uma reverência. Na execução dessa obra, creio, houve uma aproximação de um pensamento mágico. Nesse sentido Oiticica se aproxima de Cézanne o qual se ocupou do colorido, mais do que cada cor em si. O desdobramento desses relevos levou Oiticica às indagações sobre o núcleo da cor, ou seja, sua dimensão espaço-temporal na consciência e nos sentidos, e não como proponho, além disso, pelos fenômenos dos rompimentos dos tons, contrastes cromáticos e do cinza sempiterno, permanecendo no quadro, e não espacializando a pintura.

Deixemos que elas, as cores e coloridos, se descortinem diante de nossos olhos. Como diz a escritora Márcia Carrano, “Leia os fragmentos de cores – e cada cor tem infinitos deles. Depois abra a janela e entorne as tintas.”


Sísifo

Cézanne diz, já quase no fim de sua vida, que não sabe se alcançará o objetivo tão procurado. Diz ele: “Sou muito velho, não realizei e não realizarei nada agora. Sou um primitivo pelas coisas novas que descobri.”


Penso que há qualquer coisa sisífica nessas palavras do mestre. Há a dúvida do absurdo pelo castigo recebido. Pinta a montanha, desce, pinta a montanha, desce... Camus diz que imagina Sísifo, na descida da montanha para iniciar seu trabalho inútil, com clarões de alegria. Afinal para Camus, Sísifo pode ser feliz.


Cézanne diz: “Os antigos, eles, meu Deus, não sei como, conseguiam cobrir quilômetros da tarefa... Eu, me desespero, me mato para cobrir cinqüenta centímetros de tela, é a vida... Eu quero morrer pintando...” A vida de Cézanne não foi trágica. Vale citarmos aqui uns versos do Ivan Junqueira.

De acreditar como Sísifo
Que o trágico não reside
No ato inútil do suplício,
Mas no gesto de omiti-lo.

As frases de Cézanne abaixo são elucidativas e nos levam a pensar pelos sentidos. Braque diz: “Jamais teremos repouso, o presente é perpétuo.”

As grandes paisagens clássicas - nossa Provença, a Grécia, a Itália tais como as imagino - são aquelas onde a clareza se espiritualiza, onde uma paisagem é um flutuante sorriso de inteligência aguda.

Não posso me queixar. Sempre o céu e as coisas sem limites da natureza me atraem e me propiciam a oportunidade de olhar com prazer... haveria tesouros a descobrir nesta região que ainda não encontrou um intérprete à altura das riquezas que ela exibe.



Pintar e desenhar, o descortinamento

Na frase em que Cézanne diz que à medida que pintamos, desenhamos, quanto mais a cor se harmoniza, mais a forma se precisa, há uma contradição: pintar não é desenhar, e desenhar não é pintar; contradição esta que pode ser anulada e unificada também pela lógica do terceiro incluído. Dá um novo sentido à dicotomia desenhar/pintar presente na história da arte a partir da Renascença. Os venezianos se opunham aos florentinos, Leonardo a Boticelli, Poussin a Caravaggio, Delacroix a Ingres, dicotomia que se resumia a uns defendendo na arte o primado do desenho, a outros o primado das cores.

Penso que Cézanne rompeu com essa dicotomia a partir do momento em que intuiu que não podemos pensar em desenho e pintura em termos absolutos. Quis chegar à perspectiva unicamente pela cor, mas sem abolir a solidez das figuras. Para isto, que pretendo ao menos apontar nestas anotações, procuro mostrar como o mestre criou uma lógica para o colorido, lógica esta temporal. Em Cézanne, o desenho se aproxima da percepção da solidez das figuras, da consideração da não existência da linha na Natureza que se “descortina diante de nossos olhos”. Essa expressão fica em conformidade com a frase do mestre que diz que “devemos ver a natureza como ninguém a viu antes.” Hoje, creio, devemos ver Cézanne como ninguém o viu antes.

Para revê-lo dessa forma voltamos ao conceito de descortinar, que tem um duplo movimento. Um de dentro para fora. Como diz Klee, tornar visível; e o próprio Cézanne quando se refere a um cinza que não existe, nos leva ver o invisível. Outro, de fora para dentro, que permite a entrada da luz. Leva-nos também à percepção do espaço mediato e imediato. Mais abaixo comentaremos o quadro A Cabana do Jordão como desenvolvimento desta anotação.


O azul

Leonardo fala que o azul é a cor intermediária entre a luz e a sombra. O cinza pode ser esse azulado ao qual Leonardo refere-se como uma passagem entre as luzes e sombras. Vou ter que me estender além desta anotação para deixar claro a questão do azul, notada por Rilke e Gauguin. O primeiro diz que uma monografia do azul deveria ser escrita e que o cinza não existia nos quadros de Cézanne, mas que ele se manifestava como uma atmosfera. O segundo pergunta se uma sombra deve ser pintada de um azul o mais azul possível ou talvez azulada. Curioso é lembrarmos das palavras de Gagárin: “A terra é azul.” Vemos aí a possibilidade de vários horizontes e até mesmo de sua anulação no espaço em uma obra de arte.


O enigma e a verdade em pintura

Cézanne diz que o pintor representa sempre uma secção do espaço. A geometria dos fractais poderá nos ajudar. O espaço encerrado no quadro pode se fracionar quase infinitamente. Tenho então que falar de nossos limites, dados por nossos sentidos. Além desses limites falaria da zona de não resistência, do sagrado, do inviolável, do terceiro excluído. Tentaremos comentar sobre a frase em que ele diz que mostrará a verdade da pintura na pintura.

Esse comentário leva em consideração tudo o que acima foi dito. A verdade da pintura está na poética da própria pintura. Vale dizer, na aceitação do seu enigma, no que ela torna visível, na consciência de seus limites, na possibilidade de nos levar a sentimentos que se desdobram em pensamentos e conhecimentos, em sua magia...


O serpenteamento e o desenho em Cézanne

Uma outra frase de Cézanne deve ser estudada. Ele diz que a linha não existe em absoluto. Continua afirmando que o desenho puro é uma abstração.

Leva-nos a investigar a enigmática afirmação de Leonardo sobre o serpenteamento. No Tratado da Pintura está dito que “devemos observar com muito cuidado os limites de qualquer corpo e o modo como serpenteiam.” Merleau-Ponty, no ensaio a Dúvida de Cézanne, levanta a questão e cita Bergson e Ravaison, que também se ocuparam em decifrá-la. Consideravam o serpenteamento como um acontecimento característico dos seres vivos, como se fosse seus respectivos eixos geradores.

Penso que o contorno de um objeto não tem um valor absoluto. Leonardo considera-o como um limite instável e, dentro desse limite, um outro que serpenteia, animando os objetos. Nos desenhos e quadros de Cézanne não vemos um traço contínuo contornando a figura. Temos vários traços. Topológicamente poderemos dizer que há uma fronteira entre um traço e outro que torna o espaço entre estes potencialmente ativo, diferente da passividade do espaço em torno. (Podemos também argumentar essa potencialidade pela gestáltica). Diremos então que os traços criam uma linha. (Há a possibilidade de um traço contínuo contornando uma figura. É o caso em que o artista escolhe o trajeto do traço, transformando-o em linha com sentido volumétrico. Os desenhos de Matisse são bons exemplos desse procedimento. Os desenhos dos vasos gregos também).

Aqui transcrevemos algumas frases de Cézanne mas antes deixemos claro que ele resolve o serpenteamento também pelas cores e coloridos, como abaixo veremos.

A linha e o modelado não existem em absoluto. O desenho é uma relação de contraste ou simplesmente a relação de dois tons, o branco e o preto. A luz e a sombra constituem uma relação de cores, os acidentes principais diferem não por sua intensidade geral senão muito mais por sua própria sonoridade.

A forma e o contorno dos objetos nos vêm dados pelas oposições e os contrastes que se derivam de suas colorações particulares.

O desenho puro é uma abstração. Não há diferença entre desenho e cor, uma vez que na natureza tudo está colorido.

O artista plástico Marco Veloso tem estudado essas questões: o despertar do contraste presença-percepção pela linha de sombra* até o ocaso desta relação. Somos cezanneanos. Meu pensamento aproxima-se muito do que ele desenvolveu. Penso no alvorecer da convivência das cores que geram coloridos até o ocaso destes coloridos. Há entre nós uma


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* Estudar a linha de sombra é uma tarefa de muita complexidade. Diremos aqui, para que a expressão não fique tão vaga, apenas que ela atua como um limite dos corpos que anima tanto estes como o espaço plástico, assim como o serpenteamento.
cromáticas foram percebidas pelo mestre nas obras do primeiro. Daí ter dito que queria “refazer Poussin direto da Natureza.”
divergência discursiva, mas uma convergência poética, e é esta que é importante, como acima afirmamos citando Braque.


Uma maçã não comestível

Pelo serpenteamento Rilke percebeu que as maçãs de Cézanne tinham vida como pintura. Daí ter dito que não eram comestíveis. Seria, então, uma pintura viva? Sim.

E pintura viva era também todo o quadro de Cézanne, ou seja, toda a consciência de espaço plástico.

Suponhamos duas figuras com um afastamento entre elas. Em seus quadros não temos um espaço contínuo entre duas figuras, coberto por poucas cores chapadas as quais nos levassem, bem mais, a cores idealizadas, ou seja, abstratas substantivas ou platônicas O espaço entre duas figuras também não eram modelados, vale dizer, criando uma ilusão de relevo pela variação de claro e escuro de uma única cor no sentido de nos levar a uma aproximação de uma perspectiva próxima à renascentista. Esse espaço, conforme Cézanne dizia, devia ser modulado.

Modular implicava para Cézanne em respeitar os diversos contrastes, os rompimentos de tons em diversos tempos, as diversas claves de matizes resultantes dos valores tonais. Ora as claves eram altas ou claras, ora intermediárias, ora baixas ou escuras. Basta compararmos os quadros de Poussin com os de Cézanne. Daí ter dito que queria “refazer Poussin direto da Natureza.” Portanto, a modulação era realizada pela variação das pequenas sensações que se articulavam com as outras, ou melhor, havia uma convivência entre elas. Os diversos tons
criavam as pequenas sensações, de tal forma que possibilitassem criar uma outra grande sensação, a de um plano entre o objeto e o pintor como uma profundidade. Um outro azul. Entre um tom e outro, portanto, pela modulação, manifesta-se o cinza sempiterno, um ponto que serpenteia no espaço entre uma figura e outra e assim animando-o, dando-lhe vida.


A pintura e as duas mortes

Há uma curiosa frase de Leonardo no Tratado da Pintura.


De como as figuras que não expressam o pensamento estão duas vezes mortas.


Se as figuras que não fazem os gestos vivos que mediante seus braços expressem o conceito de sua mente, tais figuras estão mortas duas vezes, pois mortas estão essencialmente, pois a pintura não é viva, senão expressão sem vida de coisas vivas, e se não se acrescenta a vivacidade do gesto morrem por uma segunda vez.


Egos e ecos

Digo que um artista não é um ego, é um eco. Já Braque diz que “O eco responde ao eco, tudo se repercute.” Os auto-retratos de Cézanne não se tornam vivos ao se mostrarem como retratos do próprio ego do artista. Cézanne lhes dá vida como pintura. O mesmo constatamos nos retratos por ele pintados.

Cézanne diz também: ”Vocês se lembram de um belo pastel de Chardin com óculos e uma viseira como proteção? É um pintor esperto! Vocês repararam que ao fazer um traço dinâmico em seu nariz, um ligeiro plano transversal bruscamente parado, estabelece uma visão de valores mais harmônica à visão? Verifiquem e digam-me se me engano.” Este plano, um só preciso toque, dá vida ao pastel, cria um serpenteamento, e também mostra toda a sagacidade do próprio Chardin. A verdade em pintura é viva.

Neste ponto retornamos a sua afirmação de que queria criar uma tradição, e não uma escola. Uma escola restringe-se aos aspectos históricos de uma determinada época, até certo ponto previsíveis pelos movimentos que lhe antecederam. É uma construção que se baseia em uma genealogia estabelecida pela permanência de uma específica mentalidade. Como exemplo podemos citar o livro do historiador inglês W. C. Crosby que em seu livro A Mensuração da Realidade nos mostra como se deu a passagem da Idade Média para a Renascença. Diz esse historiador que na Idade Média prevalecia uma mentalidade qualitativa. Por exemplo, não havia ainda se inventado o relógio, o escambo era uma prática comum, dominavam os feudos sob o jugo da fé da Igreja Católica. Já na Renascença ocorrem as grandes descobertas marítimas, inventa-se o relógio e outros instrumentos de precisão que permitem uma navegação mais segura, introduz-se na Europa os números arábicos, e por decorrência, a contabilidade etc. Cria-se, assim, uma mentalidade mais quantitativa. Braque afirma sobre esse período de mudança que a idealidade substituiu a fé.

Já a tradição almejada por Cézanne se dá por um corte profundo, onde é descartado um mundo com valores absolutos. Introduz-se as incertezas, as dúvidas, novos conceitos de espaço e tempo, etc. Braque diz: “Cézanne fundou, ele não construiu. A construção pressupõe um preenchimento.”

Podemos acrescentar que uma observação de Cézanne como essa relativa ao estabelecimento de uma tradição não almeja uma atitude contemplativa. Lembremos-nos de Poussin que considerava importante um saber do olho. Ou seja, um olho esperto, rápido e sagaz.

Este livro, dessa forma, não apenas pretende mostrar didaticamente como Cézanne pensava as cores e os coloridos. Pretende também mostrar como seu olhar se reflete na contemporaneidade. Há uma frase do mestre que merece uma atenção especial. “Há um minuto que passa. É preciso pintá-lo em sua eternidade.” Em um minuto devemos e podemos perceber um mundo bastante complexo, sem a necessidade de um olhar contemplativo, ou melhor, excluindo este olhar. Neste momento de crise em que vivemos, crise que se intensificou a partir dos movimentos artísticos da década de sessenta, podemos compreender uma obra efêmera em sua materialidade, e registrá-la em uma atemporalidade resultante de outros níveis de realidade e percepção.
Assim, podemos compreender com mais profundidade o cinza sempiterno. Ele não existe, manifesta-se na natureza e no quadro, cria um espaço que coincide com este no qual nos orientamos, o que significa dizer, nos leva a uma posição da qual podemos pressentir o mundo a partir desse espaço. Ao trazer o plano do quadro à frente como uma atmosfera arrisco-me a dizer que Cézanne nos aponta para o lugar específico para a percepção da obra e tudo que dela explode. Por conseqüência somos levados a uma visão de mundo a partir de uma outra mentalidade.

Já falamos bastante do cinza sempiterno. Ele não existe, mas é um ponto central, para nós interditado. Daí o associarmos à frase de Klee, observação esta com uma enorme carga poética: “O crepúsculo incerto do centro.” Há a incerteza, a dúvida, a essencialidade da pergunta que sempre permanece: por que?

Como ilustração citamos um verso de Cassiano Ricardo, seu eco e os incontáveis centros luminosos. É uma bela metáfora.


Salpicado de sol. Sol
Picado.


Ainda pela percepção desse minuto que passa, e todas as temporalidades e atemporalidades que dela explode, citamos também os versos magistrais de Eliot:

O meu passado é todo meu presente
E todo meu futuro é já passado...

Citamos também Dante Milano, o poeta do pensamento, que assim como Eliot, refere-se ao Eclesiastes:

Bem no fundo do meu ser obscuro
Lembro-me antigamente do futuro.

Há as palavras com todo seu poder, como as de Cézanne quando diz “que cada lado de um objeto se dirija a um ponto central” e paralelas a elas o impacto da obra. As palavras e os olhos de mãos dadas, ambas no existir poético nos fazendo sentir todo a pulsação dessa vida contemporânea que nos assusta. E foi o próprio Cézanne quem disse: “A vida é espantosa.”


Um plano, a atmosfera

Penso nas maçãs de Cézanne. Penso, também, em uma outra de suas frases na qual ele diz que entre o modelo e o pintor se interpões um plano, a atmosfera. As maçãs estão vivas, mas são pintadas. Estão no intervalo entre o espaço imediato, aquele no qual nos orientamos, e o espaço plástico criado pelo mestre. Este espaço plástico deixa de ser mediado pelo suporte. Ele é engendrado pelas cores considerando-se o cinza sempiterno. Perguntamos: não estará aí alguma pista para entendermos o que o mestre afirmara, ou seja, que diria o que era a verdade em pintura? Para compreender essa afirmativa, temos certamente que estar diante dos quadros desta forma pintados. Fora disso, tudo será apenas retórica. Rilke percebeu esse plano como uma atmosfera à frente do quadro. Ele dá sentido ao que o poeta observou sobre as maçãs. Esse plano tem ainda uma fronteira incerta para esse no qual nos orientamos. A geometria em Cézanne é também topológica.


Bidimensionalidade, sim ou não? Multidimensionalidade?

Quando um crítico da estatura de Greemberg procura ver nas obras de Cézanne aquilo que ele, entre outras coisas, defendeu, a bidimensionalidade do suporte, não podemos concordar. Claro que alguns artistas procuram respeitar esta bidimensionalidade. Condenaram o quadro janela, procuraram justificar o quadro objeto, etc. Os fundamentos do famoso crítico, penso, estão bem afastadas das questões cezanneannas.

Cézanne não nega as pinceladas. Elas estão bem visíveis participando da construção do quadro e é por elas que podemos afirmar uma planaridade em convivências com outras dimensões. Curioso é estudarmos como essas pinceladas se articulam como pinceladas, afirmando-se e negando-se. Negam-se quando no primeiro momento de percepção prevalecem as relações cromáticas. Assim, temos pinceladas e cores ora afirmando-se, ora negando-se em favor das cores. Vale dizer, contrastando-se simultaneamente. Dessa forma o quadro vai se construindo. Há uma bidimensionalidade complexa, há uma profundidade também complexa, e há ainda um espaço plástico ainda mais complexo, que é um plano como uma atmosfera à frente do quadro.

Na base dessa complexidade está a cor, o cromatismo cezanneano. Podemos observar que cada quadro obedece a uma escala básica a qual nada se aproxima da ordem das cores no espectro da luz. Quando Leonardo estabelece uma ordem para as cores, descarta o que diziam os filósofos em relação ao branco e o preto, isto é, o primeiro como a soma de todas as cores e o segundo como a ausência delas. Afirma que os pintores têm que considerar tanto o branco como o preto como cores, pois sem eles ficariam limitados. Cézanne também inclui o branco e o preto como cores as quais possibilitam os contrastes claro e escuro. Preocupa-se com as cores e não com a luz. Parece-me que tanto Leonardo como Cézanne pensam em uma ciência da pintura. A posição de Cézanne se opõe a dos pintores impressionistas e pós impressionistas. Seurat, por exemplo, pensava em uma pintura com bases científicas, e não como uma ciência em si. Ou quase. Daí Cézanne ter dito que a luz não existe para o pintor. Claro, a luz existe para os físicos e por ela as cores são refletidas. Mas Cézanne busca um contato direto com as cores. Por esse contato constrói sua poética e enfrenta o enigma.


“Vai, vai’, vai, disse o pássaro, o homem não suporta tanta realidade.” Este verso de Eliot... o que dizer mais? Ou outra do mestre: “Há um minuto que passa, é preciso pintá-lo em sua realidade.” Realidade que surgirá por si só no momento da última pincelada. Como disse um aluno, “é um beco com muitas saídas.”


Há qualquer coisa de metafórico no espaço cezanneano. Há o suporte, o presente; a profundidade, o passado; e o espaço à frente do suporte, o futuro.


Perturbadora é a frase de Cézanne: “Mas eu sempre disse a mesma coisa.”


O círculo cromático – sua impossibilidade

Há uma impossibilidade de se entrar na dinâmica do cromatismo cezanneano por uma teoria cromática obsoleta. Não gosto e não concordo com o Argan quando ele diz que para Cézanne uma laranja era ao mesmo tempo uma laranja e uma esfera, etc., considerando os sólidos geométricos como formas históricas da construção do espaço. É um pensamento em branco e preto. Baseia-se nas idéias platônicas, abstratas, portanto.


Entendo, porém, como esse crítico tentou enfrentar, assim como eu agora tento, a tarefa
sisífica a que nos expõe o mestre, tarefa que até ele mesmo enfrentou. Cézanne diz que seu estudo baseia-se na observação direta da Natureza. Citemos uma de suas frases: Há uma lógica plástica em pintura: “O pintor devia obediência somente a ela. Jamais à lógica do cérebro. Se ele abandona-a está perdido. Sempre àquela dos olhos. Se ele sente justo, pensará justo. A pintura é em princípio uma óptica. A matéria de nossa arte está lá, naquilo que os olhos pensam. A natureza sempre se desembaraça quando respeitamo-la para dizer o que ela significa.”


A flor e a cerca viva

Como pintor tentei no final da década de oitenta e início da de noventa resolver um problema, mas não, obviamente, colocando a questão nos termos científicos que se seguem depois destes breves comentários sobre alguns quadros de minha autoria.

Observei uma cerca viva e uma flor em um sítio de um amigo. Uma posição contemplativa paralela a uma curiosidade investigativa, esta resultando no quadro. Pensei: ou pintamos a flor, e perdemos a cerca viva, ou pintamos esta e perdemos a flor. Uma contradição, portanto. Disse, na ocasião, que o enquadramento, como um espaço limitado, engendraria a questão. A anulação da contradição resolveu-se pela inclusão do fenômeno do rompimento do tom, que é a manifestação no quadro do cinza sempiterno, que não existe, pois é um pré ou pós fenômeno.

Hoje posso dizer, com as novas descobertas no campo da ciência, que esse cinza sempiterno potencializa o espaço plástico e comporta-se como o terceiro incluído, anulando o contraste entre a flor e a cerca viva. Ou como o vazio-cheio da física quântica. Mas estas lógicas não invalidam a do cinza sempiterno, assim como outras que surgirem não apagarão as verdades das que se passaram. A totalidade do quadro ultrapassa essas análises episódicas amparadas em descobertas científicas. Somos levados a citar o Eclesiastes.

Todas as coisas são difíceis; o homem não as pode explicar por palavras. O olho não se farta de ver , nem o ouvido se cansa de ouvir. O que é que foi? É o mesmo que há de ser. Que é o que se fez? O mesmo que se há de fazer. Não há nada de novo debaixo do sol, e ninguém pode dizer: Eis aqui uma coisa nova, porque ela já existiu nos séculos que passaram antes de nós. Não há memória das coisas antigas, mas também não há memória das coisas que hão de suceder depois de nós entre aqueles que viverão mais tarde.”

Mas, no quadro acima referido, a flor foi pintada em uma intensidade (verde e rosa) em desarmonia com o restante da intensidade geral do quadro onde também podemos constatar a extensão da cerca viva. Considero desarmonia como uma não convivência entre a “flor” e a “cerca viva” e uma situação estática. Considerando-se os coloridos dinâmicos, uma desarmonia em um determinado nível de percepção e realidade pode se transformar, em outro nível, em uma harmonia.

Mas abaixo estudaremos as harmonias e desarmonias. Lembraremos , agora, da frase de Cézanne na qual ele diz “que a harmonia se dá por si só.” Poderemos perguntar se a harmonia não está no princípio, está no fim?


Escalas cromáticas, quantidades.

Para Leonardo são seis as cores simples, muito embora, diz ele, os filósofos não considerem nem o branco e nem o preto como cores, pois segundo eles, uma é a totalidade delas e outra a ausência. As cores simples, então, segundo Leonardo, são seis e obedecem a uma ordem: a primeira, o branco para as luzes, a segunda, o amarelo, a terceira, o verde, a quarta, o azul, a quinta, o vermelho e a sexta, o preto para as sombras. Fala assim de uma passagem gradativa, com uma ordem, entre um claro e um escuro passando por valores cromáticos.

Nas passagens dos diversos intervalos há uma relação que é sempre a mesma. Somos levados a pensar quantitativamente, na medida em que estabelece uma noção de ritmo baseado em uma recorrência pressentida. Em uma escala com seis intervalos temos que o primeiro é mais claro que o segundo, na mesma medida em que o segundo é mais claro que o terceiro, etc.

Se considerarmos as cores concretas adjetivas, e também livres do poder das palavras, teremos vários claros, vários amarelados, esverdeados, azulados, avermelhados e escuros. Serão quase que infinitas as escalas que poderíamos construir. O que vale dizer, são infinitos os coloridos.


O pensamento plástico

Falamos acima de um pensamento plástico. Podemos constatar um conflito entre o discurso verbal e a percepção visual. O filósofo Mário Guerreiro indaga se “devemos concordar com a idéia de que o percebido só se faz passando pelo crivo da nomeação, como se a linguagem estivesse filtrando a percepção, canalizando-a no sentido de só poder captar certos padrões em detrimento de outros.” Digo que o pintor tem que lidar com as duas abordagens das cores. Mas pensando plasticamente não faz sentido a nomeação. Por exemplo, um terra de sombra queimada, um vermelho de cádmio claro, um magenta, um castanho, um rosa claro são todos avermelhados. E, assim, plasticamente os diversos azulados, amarelados e esverdeados e os claros e escuros, as cores simples de Leonardo além do brancos e pretos.

Se observarmos, lado a lado, dois vermelhos e dois verdes notaremos, que tanto nos primeiros como nos segundos, desvios para os amarelados ou azulados. Se repetirmos a experiência com dois amarelos e dois azuis, notaremos que ambos os pares se desviam para os avermelhados ou esverdeados. Dessa forma não mais precisamos de nomear as cores a partir de seus específicos matizes. Um magenta será para nós um vermelho-azulado, um terra de Sena queimada, um vermelho-amarelado. E o mesmo para os diversos amarelos ou azulados. Nossa percepção ficará, livre das nomeações, mais aguçada. Para fins práticos podemos construir um diagrama em quadrantes a partir dessas simples percepções que poderão representar vários coloridos. Abole-se, portanto, um círculo cromático absoluto, e ficamos mais livres para observarmos as sutilezas cromáticas de Cézanne e notarmos sua singularidade face a seus contemporâneos.

Há ainda os contrastes simultâneos. Uma mesma cor pode ter inumeráveis tonalidades conforme aquelas de suas vizinhas, da qualidade da luz, dos rompimentos contínuos, etc. Assim poderemos dizer que, plasticamente, temos os claros, os escuros, os avermelhados, os esverdeados, os amarelados e os azulados, as cores simples de Leonardo. Claro, um pensamento plástico não elimina para o pintor o pensamento verbal. Ele tem que saber como lidar com os dois. E certamente com outros, como o pré-lógico, o táctil, o auditivo, o mágico, etc.


Nomes

Um trecho de uma crônica de Manuel Antônio de Almeida, denominada “Nome” pode nos propor algumas reflexões, por isso transcrevo-o.

“Dizem os gramáticos, gente detestável nestes tempos de discordâncias, que o nome é uma voz com que se dão a conhecer as coisas. Quando nos tempos de colégio minha memória, rebelde às exigências do decurião, recusava guardar no seu arquivo esta triste definição, é que meu espírito, agora o conheço, pressentia-lhe já todo o absurdo e falsidade. Nunca em verdade uma mentira tão grande se escreveu em letra redonda.

Aquilo que as coisas menos se dão a conhecer é pelo seu nome. O nome é hoje, e não sei se o deixou de ser em algum tempo, a primeira mentira de todas as coisas: é como o cunho do pecado original impresso sobre tudo que existe. A tradição da torre de Babel parece-me errada até certo ponto; o que ali se confundiu não foram as línguas, foram os nomes das coisas.”


O paradoxo das cores

A cor abstrata substantiva, que subsiste por si mesma, é quantitativa. É atemporal. Apesar de ser de lembrança jamais é uma hipótese, pois é sempre a mesma, ou um conceito, como uma cadeira, por exemplo, na medida em que esta é uma idéia geral de cadeira.

Quando pensamos em um amarelo, por exemplo, ele é sempre aquele amarelo, e não uma generalização de vários amarelos. Este amarelo, entretanto, está mais atrelado à nomeação do que à percepção. Cézanne enfrentou esse paradoxo quando disse que na medida que pintamos desenhamos, não considerando nem a pintura nem o desenho com valores absolutos, isso no fazer. Dessa forma trabalha tanto as cores abstratas substantivas ou se quisermos, as cores locais, nomeáveis, como as concretas adjetivas, ou efetivas, estas temporais, e sempre atreladas à percepção.


As cores locais são uma síntese das diversas percepções das cores efetivas como observa Merleau-Ponty em seu livro Fenomenologia da percepção. Podemos considerá-las como cores de lembrança. Cézanne desconsidera um pintor como Émile Bernard, o qual tanto se aproximou do mestre nos últimos anos de sua vida. Este artista disse que se o pintor, ao excluir a cor local atrelada à nomeação, automaticamente escolhe a outra, a concreta adjetiva, igualmente nomeando-a, e não enfrenta o complexo paradoxo. Bernard não percebe a diferença entre uma cor de lembrança, ou cor local, da cor efetiva ou como cor concreta adjetiva, pois a ambas trata-as ainda dentro das possibilidades da nomeação, considerando-as uma e oura como absolutas.


(Deixemos, portanto, para os matemáticos a solução desse problema. São tantas as variáveis de A e B, não é nada simples chegarmos à equação An + Bn = X).


Já Cézanne enfrenta no quadro diversas situações paradoxais. A cor local, ou de lembrança, fixa nela mesma, mas não modelada. Ao modulá-la, a cor local deixa de ser nomeada e passa a ser perceptiva, portanto impossível de ser nomeada dada sua inconstância. Trabalha, assim, com a cor efetiva, ou concreta adjetiva, cuja condição é ser no colorido, sem abandonar de todo as cores de lembrança.


A voz do mudo

Leonardo no Tratado da Pintura define a pintura como uma “poesia muda” que se dá no tempo e no espaço. Diversas vezes nos aconselha observarmos os mudos, como se nos dissesse, escutem suas vozes. Devemos seguir esses conselhos. Os que não falam nos dizem muitas coisas através de seus pensamentos que se expressam pelos seus olhos e gestos. Pensamentos plásticos, certamente. Por que uma pintura muda? Porque o discurso verbal não dá conta da complexidade das artes plásticas, não dá conta de seus paradoxos, de sua complexidade. Não têm conceitos para tanto. A pintura, sendo muda, vale dizer, sendo produto de um pensamento plástico, que não exclui uma lógica racional, tem como enfrentar os paradoxos e a complexidade de seu existir como uma das faces dos caminhos do que nos são possíveis conhecer. Pelo saber do olho, como sugere Poussin, ela se apruma. Cézanne tranqüilamente fala de uma lógica que não tem nada de absurda. É a lógica dos mudos vincianos.


E agora, José?

Será que podemos dizer que Arte e Ciência marcham juntas? Muitas vezes, penso, que a Arte antecede a Ciência. Isso dá aos artistas muita liberdade, pois eles não devem produzir obras que sejam ilustrações das descobertas científicas.

Mas fica a pergunta: por que a ciência hoje tanto nos fascina? Vejo muitos artistas em atividade que se referem às geometrias, como o topologia e os fractais; à física, como a teoria quântica; à cibernética, como a inteligência artificial. Claro, são questões importantes, que estão em nosso mundo, não podemos ignorá-las. Mas em si jamais justificarão uma obra de arte. Ao falar ingenuamente de inteligência artificial pode-se chegar à burrice artificial.

Parece-me melhor, para nós artistas, estudarmos a obra de Cézanne. Afinal, repito, ele disse que não pretendeu criar uma escola, mas uma tradição. Se hoje percebemos em sua obra uns substratos científicos, estes nunca o moveram.

Já um artista como Seurat afirmava que a arte devia obedecer a princípios científicos. Poderia pesquisar e escrever alguma coisa sobre arte e ciência. Poderia até mesmo chegar a uma conclusão. Mas será que não correria o risco de me fechar em um único nível de realidade tornando-me mais um “escolástico” entre tantos que circulam em vários cantos? Teria então que prever todos os riscos.

E se a questão fosse deslocada para o âmbito da poesia e da ciência? Assim marchamos. Como disse Carlos Drummond de Andrade: “E agora, José”.


Harmonia e desarmonia

Complexo agora é considerarmos harmonia e desarmonia levando-se em consideração outras dimensões cromáticas, além das espaciais, como as temporais as quais podemos observar pelo rompimento do tom não definido mais como misturas pigmentares. Também excluímos a classificação no universos das cores dos pretos e brancos e suas gradações como cores neutras. Não me parece lógico, dentro de um pensamento plástico, considerarmos essas cores como neutras ou não-cores.

Diremos, então, que harmonia equivale a movimentos simultâneos de convergência e divergência considerando-se o cinza sempiterno. Harmonia é portanto uma situação em si dinâmica que se dá no tempo e no espaço. Assim descarta-se, para uma aproximação do conceito de harmonia o termo relação. Harmonização não depende, como veremos, de uma relativização. Lidamos com várias dimensões temporais e espaciais e as atemporais, ou seja, as cores de lembrança. Podemos testemunhar situações com mais de duas e menos de três dimensões, ou com mais de três e menos de quatro, considerando-se o rompimento do tom como um fenômeno espacial com uma interferência temporal. O que podemos dizer é que há uma Busca de convivência entre as cores harmonizadas dinamicamente que engendram um colorido também em si dinâmico.

Um outro fator importante para se compreender toda a complexidade das harmonias cromáticas é a potencialidade do cinza sempiterno, malgrado sua inexistência. Como este cinza sempiterno é causa e efeito das cores e dos coloridos, esses são igualmente potencializados quando consideramos suas condições espaciais e temporais.

Podemos exemplificar, dentro das limitações do discurso verbal, afirmando que duas cores, em seus respectivos aspectos de convergência ou não entre si, se harmonizam pela lógica do terceiro incluído ou da do cinza sempiterno.

Queremos dizer que a harmonia se dá também no tempo. Se temos as cores A e B ao se romperem, cada uma ou mais ou menos, dentro das suas respectivas dimensões temporais, incluem os cinzas sempiternos na dinâmica harmônica. Então vejamos. O cinza sempiterno é um ponto que não possui nenhuma dimensão, mas possui uma potência latente, pois é a causa e efeito das cores e coloridos. As cores A e B quando naturalmente se rompem, ativam suas respectivas opostas, e engendram movimentos em direção ao cinza sempiterno. Este, por sua vez, pelos movimentos de divergência de seu centro, engendram movimentos no sentido das cores A e B, articulando igualmente suas opostas. A harmonia, então, não se dá pela relação estática entre essas duas cores, mas pela lógica do bailado entre as cores, suas respectivas opostas e os cinza sempiternos. Harmonia, em um sentido geral, é a totalização de um bailado das cores. Mas como não se pode descartar as cores de lembrança, deparamo-nos com as nossas limitações. Há a duração bergsoniana que não pode ser descartada. “A intuição é a alma da verdadeira experiência, o acto que nos coloca dentro das coisas; não um acto estático, mas uma actividade viva, a própria duração da realidade.” Essa citação está em uma das páginas da Internet sobre o filósofo sem a referência do autor.

Eu diria que essas questões levaram Cézanne às dúvidas quando afirmou que jamais alcançaria o que tanto procurara. Mais uma vez citamos Braque: “É um equívoco traçar um contorno para o inconsciente e situá-lo nos confins da razão.”

Para uma compreensão destes fenômenos temos que descartar o círculo cromático absoluto, cuja lógica baseia-se nas misturas pigmentares, abandonarmos a nomeação das cores que as tornam limitadas, estáticas e abstratas substantivas e confiarmos em nossa percepção e intuição. Como dizia Poussin, no saber do olho. Daí Cézanne ter afirmado: “Quero refazer Poussin direto da Natureza.”

Quando Cézanne disse que era um primitivo pelas coisas novas que descobrira, afirmou também que a harmonia se dá por si só. Estava intuindo uma dimensão espacial e temporal no processo de harmonização.

Harmonia considerada como simetria implica em uma situação estática e também em um único nível de realidade e percepção, portanto simplesmente tanática na medida que sendo estática é um fim auto-destrutivo. Considerando-a dinâmica diremos baudelairianamente que a cor é simultaneamente o prazer e o pecado, ou erótica e tanática, como afirmei em meu livro A cor e o cinza. Sendo erótica e tanática há a possibilidade de imaginarmos uma “ressurreição.” Como vimos acima, pela lógica do terceiro incluído, anulando a contradição sem ferir o axioma da não contradição, podemos intuir a zona do terceiro excluído, ou seja, do sagrado, do inviolável, ou, para nós homens, do eternamente interditado. Assim também a perfeição.

Já uma desarmonia no sentido de só uma divergência, atemporal e estática, rompe um sentido de unidade e as dimensões temporais. Mas esta desarmonia, considerando-se os movimentos simultâneos de convergência e divergência, podem se encaminhar para uma harmonia, tanto pela lógica do terceiro incluído, como pela lógica do cinza sempiterno.

Assim harmonia não é um fim no sentido de uma perfeição. O teólogo francês Mauritain disse que Deus não está no princípio, está no fim. Deus seria para esse teólogo a perfeição. Mas para nós homens essa perfeição é interditada. Diria então que está aí novamente o mito de Sísifo. A perfeição é tanática. Sísifo não venceu a morte.


Várias dimensões espaciais e temporais e a testemunha

Agora vejamos o que nos diz Cézanne. Para ele pintar é contrastar. Utiliza o recurso do rompimento do tom, que se dá no tempo e no espaço. Toma-se um quadrado com uma cor. Se observamo-la sob uma determinada luz durante 4”, a pós imagem sobreposta à cor rompe-a levemente. Em 8” o rompimento é mais visível. Em 12” é mais visível ainda. Com uma luz mais intensa, se a observação for de 4”, a qualidade do rompimento que teremos é igual a percebida em 8” com a luz do primeiro experimento, quando era menos intensa. Assim, além dos contrastes, o rompimento se dá pela participação do observador ou da testemunha. Testemunha vem do latim, tertius, um participante que dá um sentido a um fato anulando e unificando os contrastes sem ferir o axioma da não-contradição. Cézanne diz mais ainda, que na Natureza tudo está colorido e que a harmonia geral se dá por si só, o que vale dizer, que esta harmonia geral só é alcançada no momento da última e exata pincelada, quando transpostas ou realizadas no quadro através das pequenas sensações. Cézanne percebia essas pequenas sensações e procurava entender sua lógica.

Assim, as flechas do tempo e da informação agem sobre os diferentes níveis de Realidade induzidos por uma estrutura aberta do conjunto destes níveis de Realidade... etc.


A morte de Cézanne

Volto a Cézanne, quando ele diz que na Natureza tudo está colorido. Diz mais ainda, quase no fim de sua vida: “A Natureza se torna para mim cada vez mais complexa.” Ao mesmo tempo, duvida de seu esforço. “Será que alcançarei um dia o objetivo tão procurado?”

Minha pergunta é se ele percebe o estado do sagrado e da transparência absoluta não em um sentido dogmático, mas no de inviolável, ou toma consciência de seu próprio limite. Há uma frase em que ele diz: “A arte é quase uma religião.” Quase ao morrer ainda estava trabalhando no quadro A Cabana do Jordão, quadro este com uma estrutura cromática bastante complexa. Há o narrativo, coisa rara nas últimas obras do mestre. A entrada pela porta da cabana para um espaço além do quadro, e um retorno, também por ela, para o espaço imediato no qual nos orientamos, ou aquela atmosfera que se interpõe entre o objeto e o pintor.

Cézanne estava pintando A Cabana de Jordão, já doente, quando cai uma tempestade. Cézanne tomba desacordado. Um carroceiro que passava pelo local o leva a sua casa. Seu médico recomenda repouso absoluto. No dia seguinte, levanta-se e vai pintar em seu atelier. Seu estado de saúde se agrava. Dois dias depois morre. Sempre disse que queria morrer pintando.


Vida, morte e ressurreição

Será que no quadro A Cabana de Jordão há um espaço limitado, balizado entre nascimento e morte, e um outro, ilimitado, além deste balizamento? Percebemos que há no quadro um começo ou um nascimento, duas pinceladas lado a lado com as cores opostas vermelho-amarelado e verde-azulado, cores estas que pelo contraste simultâneo se realçam. Parece que por elas o espaço e o tempo se iniciam. Vemos aquelas duas pinceladas em um tempo bem rápido. Outras semelhantes, verdes e vermelhos já rompidos, ou em claves diferentes, têm outros tempos, mais lentos.


Se experimentarmos cobrir essas duas pinceladas com uma cor que não crie um contraste muito forte com as que lhe estão em torno, veremos que o quadro se neutraliza, como um objeto indiferente em nosso campo visual, quase como um objeto morto. Se há um começo, há um fim. O fim seria a porta da Cabana? Desculpem-me, leitores, mas cito aqui um trecho de meu livro A Cor e o Cinza.


O que passa a interessar é o pensamento plástico que se enriquece pela apreensão desses fenômenos. O espaço torna-se ilimitado. Mata-se o movimento. Intui-se tanto um cinza sempiterno, causa e feito dos coloridos, como o cinza onipresente, causa e efeito de todos os coloridos. A tudo isso se opões um tratamento em pinceladas mecânicas resultantes de um gesto repetido, um tempo cronológico como um tique-taque de um relógio, ou, para os que hão de vir, como a intermitência ou o silêncio de um relógio digital. A vida balizada em nosso nascimento e morte e um espaço limitado.



Tristeza

Alguns estudiosos da obra de Cézanne referem-se a uma inexpressividade nos retratos desse artista. Não será, como o mestre diz, talvez, uma tristeza que não sabemos? “Há uma tristeza na Provença que ninguém disse.” A mesma tristeza não está também em suas paisagens e naturezas mortas? É interessante notarmos, por exemplo, o quadro de George de la Tour, os Trapaceiros. Diante deste quadro somos uns espectadores e também cúmplices. Diante de outros quadros ora somos voyers, ou observadores quase que indiferentes, etc. Diante dos quadros de Cézanne seríamos mais testemunhas, no sentido de apaziguar-se, assossegar-se, reconciliar-se.

Estrutura cromática do quadro A Cabana de Jordão

É curioso observarmos a estrutura cromática desse quadro. Duas pinceladas lado a lado com as cores vermelhas e verdes, em um ponto situado na parte superior direita de uma diagonal estrutural que começa no vértice superior direito até o canto inferior esquerdo, surge como uma pequena sensação. Outras pequenas sensações são percebidas e delas surgem a figura de uma árvore ainda do lado direito. Ao alto, os esverdeados se aproximam por afinidade de diversos azulados-esverdeado ou viláceos com seus respectivos rompimentos dos tons que dão a coloração do céu. Dos azuis-esverdeados surge do lado esquerdo, a figura de uma cabana alaranjada, a cor oposta dos azulados- esverdeados e, em seu telhado, uma pequena chaminé. Na extensão inferior do quadro percebemos tons avermelhados, alaranjados e amarelados escuros (ou ocre, se quisermos nomear) com seus respectivos rompimentos em várias intensidades. Áreas esverdeadas recortam os amarelados escuros do primeiro plano. As figurações de uns caminhos surgem e um deles leva à porta da cabana. Esta porta surge pelos diversos rompimentos azulados, com a mesma coloração do céu. No centro do quadro, por contraste uma vertical intensa com os tons claros da cabana à esquerda e com tons bem escuros à direita. Uma espacialidade é criada pelas verticais e pelas horizontais. Cézanne nos diz que as verticais dão a profundidade e as horizontais, a extensão


Vários níveis de percepção

Acabei um quadro muito difícil. Há formas muito fortes, totalmente gráficas, em contraste com vários coloridos, ou claves cromáticas, mas que não fazem com que nossos olhos se fixem exclusivamente nelas. Há um olhar mais sincrético, ou não hierarquizado, e há paralelamente um espaço mais analítico. Há uma contradição, portanto, entretanto os olhos não param. Isso pode nos levar a uma reflexão sobre as cores, pois são por elas que esse fato ocorre. Ou seja, são coloridos gerados pelo cinza sempiterno que como já vimos são potencializados. É na convivência dos olhos com as formas e os coloridos do quadro que o espaço plástico se constrói de uma forma bastante dinâmica. Falando-se assim parece uma coisa muito difícil, mas não é. Depende do saber do olho. Construímos um espaço basicamente pelas cores opostas e seus rompimentos e junto a elas uma terceira por afinidade por exemplo, no primeiro caso, um vermelho e um verde. No segundo caso, um azul esverdeado, seu rompimento e a terceira, por afinidade, um outro azul. O espaço torna-se bem mais qualitativo pela presença do cinza sempiterno, que quantitativo e com uma potência que permite ou absorve outros elementos, no caso as formas bem gráficas, anulando-as pela lógica da potencialização do cinza sempiterno ou do terceiro incluído. O que vale dizer, é possível percebermos vários níveis de realidade e percepção. O quadro tem várias dimensões espaciais e temporais. Mas, vendo-se o quadro realmente percebem-se esses movimentos, ora o quadro pára, não impedindo, entretanto, que nossos olhos se fixem direito em um determinado ponto. Eles ficam como que girando e procurando um lugar no qual possam encontrar um momento para pousar. O curioso é que se o quadro for visto com um olho só, tudo muda. Um olho pode se fixar em cada forma ou detalhe como quiser. Temos, neste caso, uma outra percepção e realidade.

Resolver essas questões acima expostas em um quadro é de uma dificuldade espantosa, Cézanne as enfrentou. Penso que há muito o que se fazer nesse sentido. Hélio Oiticica deve ter percebido essas dificuldades e espacializou a pintura. Suas preocupações plásticas eram bem outras. O fato é que, espacializando ou não, deparamo-nos com a enorme complexidade da pintura na contemporaneidade.

Esse quadro que realizei só foi possível pelos estudos que fiz da obra de Cézanne, utilizando-me das fontes primárias, ou seja, seus quadros e o pouco que ele escreveu.


O olho como limite

Seguem umas citações do livro de Wittgenstein, Tractatus logico-philosophicus, no sentido apenas de ilustrar a questão do limite do olho em determinada situação.


5.621 O mundo e a vida são um só.

5.63 Sou meu mundo. (O microcosmo.)

5.631 [...]

5.632 O sujeito não pertence ao mundo mas é limite do mundo.

5.633 Onde no mundo se há de notar um sujeito metafísico?
Tu dizes que aqui se está inteiramente como diante do olho e do campo
visual, mas tu não vês realmente o olho.
E não há coisa no campo visual que leve à conclusão de que ela é vista por
um olho.

Este filósofo é muito complexo. O livro é um todo, e uma parte citada já o deforma. Assim, deformando, o lemos, porque há coisas nele fora de nossas investigações, fora de nossos conhecimentos, pois estão longe do nosso objeto, o pensamento plástico. Não obstante é interessante o que cito. No quadro que terminei pode haver alguma muito pequena aproximação: a questão do olho como limite.

Todas essas questões complexas que venho até aqui expondo estão bem expressas no verso de Machael Palmer: “As diversas distâncias entre olho e pálpebra.”


Um problema: a invenção de um cubo

Sabemos que Cézanne escreveu muito pouco. Hoje temos não muitos escritos de seus contemporâneos. Alguns poucos parecem expor mais as idéias de seu autores do que as do mestre. Outros, poucos, distorceram bastante os pensamentos do próprio Cézanne. Um exemplo é a famosa frase de Cézanne na qual ele se refere aos cones, esferas e cilindros. É o caso de Emile Bernard, que foi o primeiro a substituir o cone pelo cubo. Apesar de Cézanne ter lhe escrito mostrando que não dissera cubo, essa idéia do cubo acabou prevalecendo.

O poeta Ferreira Gullar escreveu nos meados do século passado a Teoria do Não Objeto. Na introdução, faz um pequeno retrospecto histórico e refere-se ao cubo, mas ignora Cézanne, como todos o fariam. Sua definição do Não Objeto nem por isso deixa de ser até certo ponto esclarecedor, não obstante a referência ao cubo. Por esse manifesto entende-se os Bichos da Lígia Clark ocorrendo em um espaço topológico que elimina uma relação sujeito objeto. Entende-se sua filiação a Cézanne. Afinal o plano à frente do quadro já é um espaço topológico na medida que há a possibilidade de ora estarmos dentro de um engendrado pela pintura, ora fora deste, quando estaríamos naquele no qual nos orientamos. Lígia Clark se insere na tradição estabelecida pelos estudos cromáticos de Cézanne que criou um plano à frente do quadro. Os Bichos de Lígia Clark não são objetos que nos imponham um olhar contemplativo. Não buscam um espaço exclusivo. O espaço contém todas as geometrias. Assim como os quadros de Cézanne que abolem a contemplação, a sublimação, etc. pois são demasiados reais e presentes para tanto. Braque nos diz: “Jamais teremos repouso, o presente é perpétuo.”

Muitos artistas modernos construíram suas teorias considerando o cubo, teorias bem fundamentadas, as quais em pouquíssimos pontos aproximam-se dos pensamentos plásticos de Cézanne. Mas são herdeiros da tradição que o mestre quis conscientemente criar.

Na prática o que vemos é a sombra de Cézanne protegendo a maioria dos artistas modernos e muitos contemporâneos.

Mas como nosso objetivo é o estudo do cromatismo cezanneano, aquela frase distorcida do Émile Bernard, na qual se referia ao cubo, não terá muita relevância. Relevante é vermos a influência de Cézanne nessas novas teorias.


Rompimentos e pigmentos

Entende-se Duchamp quando ele diz que os impressionistas se apaixonaram pelo próprio pigmento. Se para provar uma coisa temos que apresentar as provas, no caso basta ler as cartas de Van Gogh ou o diário de Redon quando eles pretendem definir o rompimento do tom. Definem-no, quase que didaticamente, como misturas pigmentares as quais geravam, segundo eles, um cinza absolutamente incolor. Será que podemos aceitar a afirmação, seguindo as observações de Cézanne, que diz que na Natureza tudo é colorido? Acrescentamos, inclusive o cinza ou cinzentos. O mestre não fala que há nesses coloridos não cores. Isto seria tão ilógico! Mas o que Van Gogh e Redon disseram não invalidam a genialidade de suas obras. Vê-se aí a dificuldade do discurso verbal de dar conta do pensamento plástico.

Podemos, portanto, concluir que as definições de Van Gogh e Redon eram correntes nos ateliers de vários artistas seus contemporâneos. Menos no de Cézanne.


A sombra da madrugada

Há uma sutil relação entre Goethe e Cézanne, muito embora este mestre, pelo que sei, jamais tenha citado o livro Doutrina das cores, mas sabemos de sua aversão por textos teóricos. Cientistas com Prigogine, Nicolescu, e pensadores com Edgar Morin concordam com as afirmações do movimento alemão sobre a Filosofia da Natureza, surgido no princípio do século XIX, do qual Goethe participou. O livro do gênio alemão Doutrina das cores, entre outras coisas, é também uma sutil psicologia das cores. Afirmam aqueles cientistas e pensadores que a Filosofia da Natureza surgiu dois séculos antes. Faltava-lhe as descobertas da física quântica, as descobertas tecnológicas e as do campo da informática. Já Cézanne diz: “Eu cheguei talvez muito cedo.”

Do livro intitulado A cor no processo criativo – Um estudo sobre a Bauhaus e a teoria de Goethe, de Lilian Ried Miller Barros citamos a seguinte frase: “Dessa forma, temos hoje maior consciência e flexibilidade para assimilar obras como a de Goethe, sem a intransigência de uma visão determinista. Conhecendo a repercussão que a “Doutrina das cores” teve em todas essas teorias e manifestações artísticas (na Bauhaus), é impossível negar a importância histórica e a riqueza desse texto.” Quando Goethe faz referência aos efeitos das pós-imagens das cores considerando o espaço e o campo visual, uma relação me parece possível com a frase de Cézanne quando ele diz que “Quero chegar à perspectiva unicamente pelas cores.” Lidando-se com o rompimento, lida-se obviamente com as pós-imagens.


Por si só e o colorido natural

Há ainda uma outra frase de Cézanne na qual ele diz que “a harmonia se dá por si só.” Isto talvez explique o que anotei sobre o terceiro incluído. Aí está uma coisa que os pintores experienciam facilmente. Usam uma primeira cor, uma segunda e até, em certos casos, uma terceira, e estas, embora dinamicamente harmonizadas entre si, não criam um colorido natural, atmosférico. Entendemos colorido atmosférico quanto há a presença e a percepção das seis cores de Leonardo, ou os pares amarelados-azulados, avermelhados-esverdeados e caros-escuros, tomados como concretos adjetivos, uma totalidade, portanto. Somente com aquelas poucas cores percebemos que esse colorido não funciona ou está incompleto. Quando usamos a última cor, a última pincelada, a harmonia geral em si dinâmica se dá "por si só" e passamos a perceber o colorido em sua totalidade.

Mas o colorido não cessa de ser dinâmico. Não há um fim, mas um recomeço, um renascimento ou ressurreição.

Não temos um conceito verbal que nos responda à pergunta: o que é um colorido natural?

Daí dizer que somente em outro nível de realidade, que se dá no tempo, o colorido natural se organiza, e essa organização de uma harmonia geral, que se dá por si só, seria então um terceiro incluído. Deve-se deixar aqui bem claro que aquelas cores usadas pelos pintores criavam superfícies cromáticas que pelo hábito geral típico do ocidental de olhar de uma forma mais analítica e hierarquizada os faziam pensar a cor independente do colorido. Assim as cores harmonizavam-se entre si, é claro, mas estaticamente e em um único nível de realidade, ou seja, dentro da única lógica permitida neste nível de realidade, lógica essa atemporal. Já o colorido natural é temporal.


O que decorre daquela operação, quando o colorido natural se harmoniza dinamicamente por si só, portanto a partir de uma outra lógica, esta temporal, é que esse colorido se potencializa. Esta potencialização não é mais somente um colorido natural, mas também um colorido potencializado, vale dizer, em um outro nível de realidade, que suportaria outros acontecimentos, acidentes ou acasos com suas respectivas contradições. Estas, em outros níveis de realidade, não anulariam as novas contradições deixando intocável o axioma da não contradição. (Esse mesmo argumento foi aplicado na anotação acima sobre o surgimento de um colorido harmonioso que se deu por si só). O espaço seria, então, menos quantitativo do que qualitativo.


Como rever Cézanne?

Há uma outra frase de Cézanne que merece uma atenção: “É preciso ver a natureza como ninguém a viu antes.” Aqui, parece-me, há uma referência à Filosofia da Natureza e, por conseqüência a Goethe. Posso dizer que, a cada dia, ao olhar de minha janela a paisagem durante uma semana, por exemplo, ela é sempre a mesma. O que vale dizer que a vejo sempre a partir de um único e mesmo nível de realidade e percepção. Ou platonicamente.


Mas se me esforçar para ver essa paisagem a partir de uma outra mentalidade, considerando-a em si dinâmica, posso dizer que a minha percepção dela não é sempre a mesma, qualquer que seja o instante. Há, neste caso, uma constante mudança, e sendo mudança é externa e temporal, isto é, vejo-a a levando em conta a possibilidade de vários níveis de realidade. Há ainda nessa frase a possibilidade de fazermos alguma aproximação com o pensamento mágico, definido de uma forma bem simples como se a consciência do homem estivesse também na natureza. Nela tudo é colorido como dizia o mestre, mas considerando o pensamento plástico, e considerando Braque que disse em “uníssono com natureza.”


Um quadro entre parênteses

(Na minha última exposição pintei uns quadros onde criei uns coloridos que só se afirmaram como coloridos quando a última cor foi pintada. Devo dizer aqui que sempre mantive uma ligação com o cinza sempiterno, o que vale dizer, mantive uma lógica. Uma vez potencializado o colorido tive a liberdade de sobrepor um círculo com dois diâmetros cruzados alternados pelas cores preto e amarelo tal como saíram dos tubos, portanto uma forma gráfica e gestalticamente fortíssima pelas forças criadas pelas cores muito contrastadas e como abstratas substantivas, com a força de seu ponto central, mas que a potencialidade do colorido absorvia.

Havia a lógica de um colorido a partir do cinza sempiterno. Criava, assim, e também por uma outra lógica, a do terceiro incluído, em ambos os casos a potencialidade do colorido, que anulava e unificava, igualmente as contradições sem ferir o axioma da não contradição. Procurava uma posição ainda mais radical do que aquelas em que explorava o tema da cerca viva e da flor.)


O plano azul

Sobre a frase de Cézanne na qual ele faz alusão ao cone, a esfera e ao cilindro penso o seguinte. Nessa frase há uma referência às cores, entre outras coisas, que merece ser analisada. “[...] donde a necessidade de se acrescentar às vibrações de luz, representadas por amarelos e vermelhos, uma soma suficiente de azulados para que se sinta o ar.” Cézanne não quis aqui fazer uma referência ao círculo cromático tradicional, nem uma referência à classificação de cores quentes e frias, as quais, em um colorido em si dinâmico não nos leva muito longe, mas a uma outra de suas frases: “Entre o objeto e o pintor se interpõe um plano: a atmosfera.” Mas a esta devemos lembrar de uma outra: “Os corpos no espaço são todos convexos.” Essa frase é uma referência às superfícies dos cones, esferas e cilindros e não a suas formas estáticas. Cézanne prenuncia um espaço curvo.

E ainda uma outra frase: “Não basta ver, faz falta a reflexão.” O que nos permite dizer que Cézanne foi um filósofo pintor. Ao inaugurar um pensamento plástico mais maleável, interfere no pensamento verbal, inclusive enriquecendo-o.

A pintura não é uma disciplina que se basta. Ela convive e se nutre de outras, como a filosofia, a geometria, a psicologia, a antropologia, e muitas outras. Mas uma vez citamos Braque. “O clima: é preciso chegara uma certa temperatura que torna as coisas maleáveis.”


Mais de duas e menos de três dimensões

O que é a potencialidade de um colorido, vale dizer, como podemos ver um espaço cromático com mais de duas e menos de três dimensões, por exemplo, a partir dos estudos de Cézanne? Conceito difícil de explicar ou quase impossível, mas que o pintor, se entrar no colorido natural, pensa-o plasticamente. Vimos acima as diversas dimensões temporais das cores em função de seus rompimentos. Estes rompimentos não engendram um espaço tridimensioal, mas a percepção de um outro, que é espacial e temporal não mensurável, não como uma ilusão, mas como diversos níveis de percepção e realidade. Um tom, que se rompe no tempo, permite que sobre ele sobrenade sua pós-imagem, a qual o modifica. A cor não é, como alguns teóricos afirmam, essencialmente bidimensional. Podemos considerá-las entre as segundas e as terceiras dimensões. Além das duas dimensões da superfície do suporte, temos as várias dimensões temporais das cores quando rompidas.

Daí podermos afirmar que na pintura de Cézanne, na qual podemos perceber uma busca de convivência de vários níveis de realidade e percepção, o olhar desmedido, ou seja qualitativo.


Uma ilusão? Não

Cézanne afirma que para nós, homens, a natureza é mais em profundidade do que em superfície. Não se refere a criar uma perspectiva como uma ilusão. Quando diz que entre o modelo e o pintor existe um plano, a atmosfera, cria uma realidade. Cézanne sempre afirmou, inclusive, que buscava no quadro uma realização. Ora, uma superfície bidimensional é uma abstração. Tanto como uma linha, esta unidimensional. Uni ou bidimensionalidades são conceitos criados pela razão, e não pela percepção. Daí entendermos a frase de Cézanne: “A natureza é mais em profundidade que em superfície.”


O que é pintar, o que é desenhar

É oportuno aqui comentarmos sobre os estudos de Marco Veloso sobre a linha de sombra. Esta realmente existe na natureza. Como está no Tratado da Pintura, de Leonardo, ele refere-se à pintura linear considerando o limite dos corpos, não contornados por uma linha mas como uma certa gradação, uma passagem entre luzes e sombras, (uma relação de contrastes como diz Cézanne) no qual percebe um serpenteamento. Cézanne ao descartar a perspectiva científica mono-ocular, interessou-se pela percepção bi-ocular. Um olho foca o objeto o qual é fixado na consciência. O outro dirige-se para um outro foco, o qual não é fixado na consciência. Permite a ela nos dar o sentido da profundidade. No desenho no qual as cores concretas adjetivas são abolidas, surgem como um serpenteamento o que alguns teóricos denominam como a linha de sombra. Uma linha que tem um caráter volumétrico sem que seja ela mesma uma representação tridimensional. Pode ser percebida realmente em uma superfície plana, assim como a cor, como tendo mais de duas e menos de três dimensões. Não se trata de uma ilusão, pois como já vimos uma superfície bidimensional é uma criação da razão. Ilusão seria quando da linha tivéssemos a impressão de uma bidimensionalidade, isto é, uma abstração. Vale notar que Cézanne disse que a linha pura é uma abstração.

Alguns historiadores da arte dizem que Cézanne não tinha uma habilidade específica para o desenho. Considero isso uma posição preconceituosa. Quando ele diz que devemos ver a natureza como ninguém a viu antes, começa do zero. Ao eliminar a cor concreta adjetiva espanta-nos como fica clara sua habilidade para desenhar. E mais ainda, sua busca sísifica por uma realização. Não foi somente na pintura que Cézanne quis criar uma tradição, mas também no ato de desenhar.

Na pintura cezanneana permanece o cor concreta adjetiva. Não há como se afirmar que a cor percebida é essencialmente em duas dimensões sem ferir uma lógica. Cézanne, como vimos acima, enfrenta inclusive os paradoxos dessa lógica essencialmente plástica. Podemos ter um conceito verbal de amarelo – o círculo cromático tradicional nos leva a isso – mas dentro de um pensamento plástico um amarelo não é uma generalização, mas uma síntese. Como vimos acima, a idéia de uma cadeira é uma generalização, e não uma síntese. É uma idéia geral de cadeira.

Como já vimos, a cor possui várias dimensões temporais, dimensões estas que podem ser percebidas pelos rompimentos dos tons tratados não como misturas pigmentares. Claro, tratamos nestas reflexões das questões cézanneanas a partir de seu cromatismo. Mas pode haver na pintura e no desenho manifestações que passam ao largo do que aqui se discute.


Sobre o centro - Degas e Klee

Conheço o diagrama cromático de Klee há anos, mas só agora me apercebo de outros desdobramentos que aumentam sua complexidade. Será sua estrutura topológica? Creio que sim. Há deformações e transformações contínuas tanto como em Cézanne, mas dentro de outra abordagem. No diagrama elaborado por Klee há um eixo vertical para os brancos e pretos, e suas gradações, e em torno dele, uma circularidade cromática onde fim e começo se encontram. Nessa circularidade as cores vermelha, amarela e azul se interprenetam. Não percebia sua dinâmica porque Klee não conseguiu se livrar dos conceitos de cores primárias e do cinza neutro, os quais descartei. E também, não explorou o fenômeno do rompimento do tom e nem de um certo cinza como Cézanne. Cito o aforismo de Klee: "O crepúsculo incerto do centro." Este coloca-o entre os grandes pensadores das questões cromáticas. Diderot dizia que em cada dez pintores há somente um colorista. Digo mais, são poucos os pintores que além de coloristas, são também pensadores. Afinal a cor é enigmática, e enfrentá-la é uma tarefa das mais complexas. Pelas cores Klee interroga a centralidade, e esta está também presente em Degas como uma questão, além de cromática, de espacialidade.

Para irmos mais adiante vale vermos a reprodução de um pastel do Degas. Nele uma mulher, está no centro do quadro, mas não está no centro do espaço, está tão dentro de si, que talvez esteja fora de tudo. Mas ela está iluminada, dentro da sua juventude, por uma luz azul que não é a mesma do ambiente noturno. Será que não nota uma outra luz? Será que a luz que lhe espreita não é aquela que procuramos? Uma que ilumine o outro lado de nossas vaidades? Mas, há no fundo, atrás dela, uma sombra vertical que coincide com o eixo do quadro, sombra esta tão misteriosa... Há no pastel, ainda, no lado direito, a mulher sentada, mais velha e mais vivida que a olha dentro de uma sombra com um chapéu enfeitado por um buquê de flores estranhamente iluminado e do lado esquerdo uma outra, alheia a tudo, com um chapéu também com enfeites em cores bem contrastantes. Lá fora o movimento apressado de passantes, um deles, um homem com um fato preto, meio encoberto por uma coluna, caminhando sempre para o mesmo destino de todas as noites. O que vemos se ficarmos só com as formas perceptuais? Nada e fica em um instante a pergunta porque se entrarmos nas formas estruturais afirmamos com certeza que realmente são vários os espaços e os tempos em várias dimensões. Uma linha estrutural horizontal, considerando esses pontos focais periféricos, dá aquilo que Cézanne diz que é a extensão. Diz ainda este mestre que as verticais dão a profundidade, que no caso do pastel de Degas aparecem nas colunas e, misterisomente, no eixo vertical central da estrutura subjacente do suporte, muito forte na construção desse pastel. Mas voltemos aos adornos femininos. Eles se parecem com esses pontos focais periféricos que dão à mulher de azul uma posição como a de um "crepúsculo incerto do centro." Das formas estruturais passamos, quase sem sentir, para a formas poéticas”


Sobre o centro – Cézanne

Podemos perguntar, e o centro no espaço cezanneano. Em 1866 Cézanne escreve uma carta a Pissarro. Nela diz: “Você tem perfeitamente razão de falar do cinza, somente ele reina na natureza, mas alcançá-lo é de uma dificuldade espantosa.”. O cinza sempiterno é um centro incerto, enigmático e inexplicável. Em Cézanne o colorido engendra o espaço plástico. Nele não há um centro. Quando ele diz que “ver é conceber e conceber é compor” entendemos que composição é organizar o espaço plástico obedecendo a uma lógica que inclui o enigma das cores. Não é compor obedecendo a regras geométricas de proporção como muitos historiadores da arte e críticos supõem.


O dedo indicador e a “presença

Quando Cézanne fala de uma atmosfera entre o quadro e o pintor, refere-se a um espaço construídos pelas cores. Ou com vários níveis de percepção e realidade. Consideremos o aspecto enigmático da cor e dos coloridos. Centremos nossa atenção para a presença dessa atmosfera. Daí podemos afirmar que a cor não é, como alguns teóricos de arte afirmam, como sendo essencialmente em duas dimensões. Podemos notar nas cores concretas adjetivas movimentos de lateralidade, que é a mudança da tonalidade da cor segundo a ação de suas vizinhas. As cores assim adjetivadas têm simultaneamente movimentos também de profundidade pelos rompimentos dos tons, e sobretudo pela presença de uma atmosfera à frente do quadro. Por isto justifica-se a frase de Cézanne que diz que “quer chegar à perspectiva unicamente pelas cores.” Não enfatizava as misturas pigmentares como matéria para a reflexão. Somente como um trabalho de operário, como costumava dizer.

Como levamos este trabalho baseado nas reflexões de um pintor, diremos que na atmosfera entre o quadro e pintor podemos perceber as várias dimensões das cores e dos coloridos. As superfícies dos objetos cônicos, cilíndricos e esféricos ou esses mesmos objetos geométricos, nessa atmosfera, estão topologicamente em transformações e deformações contínuas e têm várias dimensões. Não são formas estáticas e históricas desses objetos considerados dentro da geometria euclidiana. Face ao recalque da cor na contemporaneidade pensamos que deve ser muito difícil para os artistas, críticos e o público em geral perceber toda essa complexidade de uma estrutura cromática. Como é muito complexa a construção do espaço cézaneano, com seus inumeráveis contrastes, seus rompimentos de tons, das várias dimensões temporais, da presença do cinza sempiterno, do serpenteamento, etc., a melhor maneira de mostrar esses acontecimentos é usando o dedo indicador face ao quadro.

É interessante notarmos que um artista contemporâneo tenha dito e realizado trabalhos que consistiam apenas em apontar para alguns objetos, situações, problemas, etc. Podemos dizer que ele é também cezanneano na medida em que evitou o plástico subordinado ao literário? Cézanne sempre disse que o pintor tem que evitar o literário em pintura. Há uma frase curiosa de Cézanne: “...Dalacroix, é o romantismo talvez. Ele se engasgou de tanto Shakespeare e Dante, ele folheou muito Fausto. Ele continua com a mais bela paleta da França, e ninguém, debaixo de nosso céu, percebeu a calma e o patético de uma só vez pela vibração das cores.”


Cézanne e Barnet Newmann

É oportuno agora referirmo-nos ao pintor e pensador Barnet Newmann que se rebelou com a classificação simplista de pintura geométrica atrela à geometria euclidiana. Esse pintor criou os campos de cor. Não devemos confundir campo de cor com superfície. Dessa forma estaremos contradizendo aquilo que o próprio Barnet Newmann afirmou contra a uma generalização da geometria euclidiana. Diremos então que esse pintor é cézanneano na medida que aceita a afirmação de Cézanne no qual ele diz que “as verticais dão a profundidade e as horizontais a extensão.” Mesmo em uma grande extensão, como eram os quadros dessa pintor norte americano, a cor se rompe. O que vale dizer, Barnet Newmann não trabalhou somente com as cores abstratas substantivas, mas sobretudo com a concretas adjetivas. Dessa forma rompeu com os princípio dogmáticos de composição que tolhiam o desenvolvimento de grandes realizações nas artes plásticas e sua compreensão e sentimento profundos como pintura, independente das formulações teóricas que precederam sua feitura.

Barnet Newman, apesar de um profundo pensador, tento sido considerado por um grande tempo mais um crítico que pintor, não subordinou o plástico ao literário. Certamente é cezanneano também pela imensa compreensão do que é a verdade da pintura.

Quase no fim de sua vida Cézanne declarou: “A natureza se apresenta para mim cada vez mais complexa.” Esta complexidade foi compreendida por esse grande pintor americano, tornando-o um exemplo de um artista comprometido com a tradição fundada por Cézanne.

Diremos de Barnet Newmann que ele é também um pintor filósofo.


A visão pop da impopularidade de Cézanne

Cezanneanno é também o artista pop Roy Lichtenstein. Ironicamente nos mostrou o que poderia ser a popularidade do mestre quando de sua simplificação para o grande público. Roy Lichtenstein denuncia essas estratificações, essas simplificações. É um quadro em sentido vertical, de 173 x143 cm, pintado em 1962, com um fundo todo branco, um retrato da Madame Cézanne, levemente inclinada para a esquerda, apenas com seu perfil delineado com um traço preto uniforme e contínuo. O eixo da figura é um traço preto mais grosso, também paralelo à inclinação da figura, indicando o alto e o baixo. Esse eixo é apontado pela letra A. Em torno, outras setas, indicando distâncias e planos (dois apenas, contornados por linhas tracejadas). Cada qual é respectivamente assinalado com as letras B,C,D,E, como se nos mostrasse, aleatoriamente, princípios de composição, pois ainda há os que acreditam nela. O quadro é uma informação massificada para turistas, uma indústria do espetáculo que movimenta uma soma enorme de dinheiro que verdadeiramente existe.

Devemos reverenciar esse grande artista americano. Sua consciência ética é impressionante. Ele foi um artista pop que não se transformou, pela força irracional do dinheiro, em um pop star. É um exemplo. É um artista que por essa óptica deve ser estudado. Diria que foi um anti Dali, um anti Picasso, este hoje uma griffe, etc.


O cinza sempiterno não existe

Já dissemos que o cinza sempiterno não existe, é um pré ou pós fenômeno. Nas Cartas sobre Cézanne, de R. M. Rilke, escritas por ocasião da retrospectiva de Cézanne realizada em Paris em 1907, notou a inexistência desse cinza. Ele escreveu: “Para Cézanne, o cinza não existia.”


O centro inexplicável

Em uma anotação acima referimo-nos a um pastel de Degas. Falamos do centro do quadro, de um outro centro, o da personagem, etc. Os centros eram visíveis. Em Cézanne, temos o seguinte: centros são também os cinzas, como ele diz, reinando em toda a natureza e difícilimos da se alcançar. Esses cinzas ou centros não existem, manifestam-se na natureza e Cézanne os transpõem para seus quadros, e estes não representam, mas nos permitem perceber uma secção do espaço, como ele nos diz.

Importante é entendermos a idéia de Cézanne no sentido da composição. Ele diz: “Fazer um quadro é compor.” Composição, para Cézanne, implicava em criar uma lógica própria. Creio que não se trata de estabelecer primeiramente uma estrutura geométrica qualquer a partir das leis da proporção. Braque foi sutil quando afirmou que Cézanne não construiu, ele fundou. Continua afirmando que o mestre não reunia elementos homogêneos, mas heterogêneos. Daí entendermos porque Cézanne enfatizava tanto o estudo direto da Natureza e seu interesse pelos contrastes. Há a bem conhecida frase em que ele se refere aos cones, esferas e cilindros. Cézanne não os toma como objetos homogêneos, concebidos aprioi, mas dentro de um espaço potencializado pelo cinza sempiternos, e que se contrastam continuamente por essa potencialização. Não são formas históricas da construção do espaço, como pretendeu um crítico, mas transformações e deformações contínuas das superfícies desses sólidos geométricos em um “ecran” que nos permite perceber as várias dimensões temporais e espaciais. Percebemos também um espaço curvo. Cézanne afirmou: “Os corpos no espaço são todos convexos.”

Dentro dessa abordagem podemos então afirmar que são muitos os centros, e nunca como pontos ideais e fixos. Cézanne fala das pequenas sensações. Há sempre a possibilidade de uma delas vir para o primeiro plano de percepção e realidade, e as outras ocuparem outros planos. E a possibilidade de uma destas se movimentarem, criando outros níveis de realidade e percepção, de tal ordem que podemos dizer que o espaço cezanneanno é simultaneamente sincrético e analítico.

Não há pois como explicar o inexplicável. Resta-nos, então, mas uma vez lembrarmo-nos de Sísifo, o mito do impossível.

Temos muito o que pensar para entender um espaço topológico na obra de Cézanne. A frase do mestre: “Entre o quadro e o pintor se interpõe um plano, a atmosfera.” é bastante enigmática, pois esse plano é gerado pelos coloridos, e estes, como já vimos, também são enigmáticos.

Quase mágico é também constatarmos como Cénanne partindo do enigmático – as cores – conseguiu nos mostrar vários níveis de percepção e realidade. O mestre sempre falava em realização. O enigmático, pela lógica do cinza sempiterno e do terceiro incluído, são levados, respectivamente, para o infinito ou para a zona da transparência absoluta.


A fronteira entre os espaços imeditato e mediato

Frente a um quadro de Cézanne podemos perceber um plano, a atmosfera. A fronteira dele com esse no qual nos orientamos é difusa, indeterminada. Uma dúvida nos assalta: em uma distância normal para se ver um quadro nunca saberemos quando estamos no espaço no qual nos orientamos, ou na atmosfera a qual o quadro constrói. Se estamos dentro de um, estamos fora de outro e vice versa. O que aqui nos interessa é saber como esse plano foi construído, e como dele podemos constatar um espaço topológico. Um estudo das cores, dos contrastes, dos rompimentos dos tons e do cinza sempiternos, como estamos fazendo, pode nos habilitar ao menos uma aproximação desse mistério.


Do desenho, da pintura, à confusão

Se os pontos de passagem, os cinzas sempiternos que não existem, são causa e efeito dos coloridos, têm uma potência. O resultado só pode ser um espaço dinâmico, portanto potencializado. Em um quadro onde percebemos a manifestação do cinza sempiterno o espaço plástico é mais qualitativo. As cores, não ficando subordinadas às formas, nos permitem trabalhar mais livres no sentido de uma não obediência às relações formais, estas mais quantitativas, ou mensuráveis.

Devemos aqui dizer que não existe o qualitativo ou quantitativo em termos absolutos.

Falamos acima de um espaço, que pela modulação percebemos um serpenteamennto, portanto, animado. Como o resultado desse espaço é qualitativo, nosso olhar para ele será desmedido. Podemos percebê-lo com mais de duas e menos de três dimensões. Se nesse espaço colocarmos um qualquer objeto, por exemplo, ele será absorvido pela lógica do cinza sempiterno ou do terceiro incluído, os dois temporais, que anularão a contradição, como já dissemos. Devemos afirmar que um olhar desmedido tem seu limite. Se entre duas figuras o espaço for contínuo, será quantitativo. Se colocarmos uma figura, esta tem que ser exata em suas medidas mantendo uma relação em que percebemos um ritmo enquanto recorrência pressentida. Um espaço assim construído é bidimensioanal e atemporal. Assim fica limitado às relações formais, estas quantitativas. Temos aí o conceito vasariano que defendia o primado do desenho em que “a proporção guardava o todo com as partes, e as partes entre si com o todo.” Se há relações quantitativas, as cores ficam subordinadas às formas.

Mas Cézanne falava dos contrastes entre o branco e o preto também como acima escrevemos. Não vou aqui me estender na questão do desenho, já que meu objeto é o cromatismo do mestre. Ele dizia que o desenho é uma relação de contraste ou simplesmente a relação de dois tons, o branco e o preto. Temos que a oposta de um branco é um preto e deste um branco.

Temos os desenhos de Beyus, por exemplo. Diremos que são cezanneanos na medida em que são construídos a partir da convivência de dois tons e não pelas relações de formas proporcionais, pois o contraste entre tons brancos e pretos neste caso, são concretos adjetivos. Aqui repetirei que Cézanne pode ser visto como um inovador também como desenhista. Diria que ele estudou tanto as questões cromáticas, como as gráficas. Em seus quadros observamos a convivência do gráfico e do pictórico. O espaço plástico gráfico seria então uma percepção de formas, as quais o balizariam, e do tátil no sentido de uma determinada presença. O espaço plástico pictórico seria dado por um encadeamento das cores que criam um colorido. Não há nem o gráfico e nem o pictórico em termos absolutos. Mas há as diversas passagens entre um e outro.

Uma outra dificuldade será a de mostrar como Cézanne trabalha no sentido de nos evidenciar o permanente e o transitório. Parece-me que algumas frases irão nos ajudar. “O desenho puro é uma abstração.” “Quanto mais a cor se harmoniza, mais a forma se precisa.” O permanente seria o que denomino como cor abstrata substantiva, que subsiste por si só, e o transitório o que denomino de cor concreta adjetiva, aquela na qual sua condição é ser no colorido. Daí podermos dizer que a primeira é atemporal e a segunda temporal. Não há cor nem forma com valores absolutos. Mas há uma interação entre elas. Há , então, uma definição/indefinição do desenho e uma definição/indefinição da pintura. Somos levados, por isso, a vários níveis de realidade ao lado de vários níveis de percepção/pensamento. Estes nos levam a uma situação de entropia máxima, ou a um confusão, ou a uma situação caótica. O acaso, que elimina as certezas, seria então o limite de nossos pensamentos? Quando Cézanne diz que jamais alcançaria o que tanto procurara não teria chegado ao limite de seu pensamentos? O acaso seria então uma descida sisífica, na qual, como dissemos acima, segundo Camus, poderia haver uma felicidade?


Verdades e mentiras

Há um livro escrito por um artista na segunda metade do século passado que não mais me lembro o nome que se diz um teórico da cor. (O livro sumiu, não sei como, perdi as referências). O autor faz um resumo das diversas geometrias, desde a euclidiana até as mais recentes, como a topologia e à geometria dos fractais. Na introdução desta última ele diz: "A afirmação de que tudo na natureza se compõe de esferas, cones e cilindros - a doutrina pragmática de Paul Cézanne [...] não é correta. Nuvens não são esferas, montanhas não são cones e troncos de árvores não são cilindros." Me acudam!!! O cara pensa em branco e preto!!! Coitado de Cézanne que pensava colorido.

No livro Histórias das cores, de Manlio Brusatin, está dito que o homem contemporâneo praticamente só percebe os contrastes claro-escuro e quente-frio, daí resultar na reconstrução da paisagem urbana com muitos cromados, neóns, brilhos, etc. para compensar essa pobreza perceptiva. A cor está mesmo recalcada na contemporaneidade. Precisamos sentir mais os coloridos para entendermos o aforismo de Braque: "A verdade existe, inventa-se somente a mentira." e "Em arte somente uma coisa tem valor: o que não se pode explicar." Quando o artista está inventando uma mentira? Mas estas vingam, transformam-se em dogmas que, como observa Gauguin, desorientam não somente os artistas como também o público em geral. Da mentira ao dogma, e deste à conclusão, diluindo a mentira na massificação, atropelando a liberdade de reflexão.

Picasso diz: "Eu não procuro, eu acho." Quem procura pode achar alguma coisa, ou não achar nada, é claro, e sua afirmativa tem um sentido. Um achar sem procurar nos leva a pensar em um ato mecânico. Ou talvez em um pensamento sempre conclusivo. Mas Braque diz: "Um quadro está terminado quando apagou a idéia." Picasso inventa uma mentira. Braque enfrenta o enigmático, mas não acha nada. Cézanne diz: “Vou lhes dizer o que é a verdade da pintura.” Há uma contradição entre o pensamento de Picasso e o de Braque. Mas antes disso observamos outra contradição entre esses dois pintores. Do primeiro diremos que a contradição ficou em um único nível de realidade e percepção. Na medida em que se fechou em uma conclusão, afasta-se da verdade em pintura, portanto. Do segundo diremos que a contradição se anulou e se unificou, pois se direcionou no sentido da transparência absoluta e, assim, o apagamento da idéia não a tornou conclusiva. A verdade em pintura não é conclusiva.

Em arte não há uma conclusão. Vemos, então, a aproximação de Braque com Cézanne.


A honestidade e a verdade em Cézanne

A uma pergunta hiperbólica de Emile Bernard Cézanne respondeu que não estava acostumado a muitas especulações. Cézanne em verdade abominava a mentira, o embuste, e dizia que “não basta ver, faz falta a reflexão”. Condenava o artista pelo afastamento de seu verdadeiro objetivo. Cézanne sabia que a verdade é honesta. Ou, como diz Braque: “A verdade não tem contrário.”


Chardin, a poesia muda e a verdade da pintura

Chardin, que pintor complexo! Difícil falar-se de sua pintura. Mas há uma frase que pode nos permitir alguns comentários. Diz ele que o pintor tem que manter uma certa distância de seu modelo. Pensamos: se há uma aproximação o pintor pode se perder nos detalhes; se um afastamento, se perde da pintura; no devido lugar compreende a verdade da pintura. É curioso observar suas pinceladas. Não demonstram um gesto, mas a objetividade ou realidade de uma pincelada, como quem dissesse "isso é uma pincelada". O mesmo se pode dizer das cores: "isso não é a cor de um objeto, isso é uma cor." Pouco importa que se muitas vezes muito esmaecida. Cézanne o compreendeu muito bem quando afirmou que "A natureza se resolve." A pintura por si só se organiza dentro de uma lógica. Uma figura, em um quadro de Chardin, nunca aparece inteira em muito de seus quadros, sobretudo naqueles pintados em sua maturidade. Ela se compõe de várias partes bastante amplas, e em muitas destas não percebemos o todo, isto é, vemo-las apenas como pintura. Um detalhe identificável, e a figura surge inteira. Há um quadro, uma cena interior. Uma empregada recostada em um móvel, pousa levemente a mão sobre uns pães em cima do móvel. A mão fica quase invisível, não indentificável, assim como também os pães, se nosso interesse ficar circunscrito apenas a esse detalhe. Vemos tons alaranjados, seus rompimentos e até mesmo o oposto azulado. Na outra mão uma sacola com talvez uma ave morta. A saia é de um azulado esmaecido ou um azul bem rompido. A sacola, os pães, a mão sobre eles pousada surgem pela identificação do rosto da empregada.

Podemos concluir que Chardin, quando pinta conjunto de objetos lado a lado, temos em um deles uma abstração, (o pão e a mão nele pousada, por exemplo) e no que está ao lado um objetos identificáveis (uma panela de barro e um prato de metal). No todo temos, então, objetos identificáveis segundo sua espécie. Podemos dizer que temos uma abstração gerando uma figura, ou esta gerando um abstração. Uma dinâmica intrigante que pode romper com os conceitos de pintura abstrata ou figurativa.

O cômodo onde a empregada está, é bem sombreado. Se liga por uma porta, pelo lado esquerdo a uma outra sala, mais iluminada. Entre uma sala e outra um filtro enorme em solene perfil, e penso em um objeto carregado de metáforas. Ou uma fronteira entre os dois espaços, o sombreado e o mais claro, filtro que elimina os recalques das sombras e ilumina as possíveis fantasias da empregada pintada no primeiro plano de percepção. No fundo dessa sala contígua, perto de uma outra porta, talvez uma projeção da empregada, ela conversa com um galanteador. Além desta porta um pedacinho mínimo de céu se apresenta como um limite do mundo dessa adorável empregada. Mas ficamos na dúvida: é uma sala contígua ou um espelho? Será que sonhos da empregada não são os mesmos que os nossos, em última análise? Além do mais, acreditamos ainda na verdade e em uma postura ética, e esse quadro de Chardin nos indaga.


Em Chardin o narrativo fica inteiramente subordinado à pintura. O quadro em questão ilustra bem aquilo que Leonardo nos fala: "A pintura é uma poesia muda."


Penso que Chardin nos diz: não é, mas é, basta ver pelos intervalos. Por aí refere-se apenas à pintura, e nos faz pensar na sua verdade. Verdade da pintura, esta que não tem pureza, que não reside no ato de sua auto investigação, e que, também, para nós, homens, é limitada. Uma verdade, como diz Braque, que não tem contrário. A verdade possível dos poetas e dos pintores.


Noto que hoje há um interesse em Manet. Penso que para se estudá-lo devemos iniciar por Chardin. Cézanne disse, diante das flores de Manet que ali estava a verdade da pintura.
A verdade da pintura, como um motivo amplo da própria pintura, talvez comece em Chardin.


Poesias, marchas marciais e sambas

O verso é de Reynaldo Valinho Alvarez: “sou um peixe com um ânus, uma boca e uma gravata de seda francesa”. O peixe é um tubo, que é um toro, que é um peixe, que é um toro... uma circularidade sempiterna. A gravata de seda francesa é a permanência abstrata da vaidade, da mentira dentre aqueles que não percebem que em torno deles a verdade sempre espreita.


E tem mais poesia. Ângela Montez, a brasileira que prefere ser poetisa, escreveu o livro intrigante denominado Sem Fotografias. Um espaço retroativo, fruto de uma estranha e misteriosa percepção, é assinalado em seus poemas.

tudo está fora de lugar
neste mapa
.
A invasão da banda marcial de Jonh Philip Souza, ocupando outras terras, velando um outro músico, Charles Yves. O código é meu, mas as bandeiras tremulantes, invasoras e impositivas são nossas vozes na voz de Ângela.

Em bandeiras
somos
marchas
em luvas brancas

[...]

bandeiras
que se vendem
como bananas
nesta
cidadania”

Continuamos a ler poesias, tão próximas estão das artes pláticas. Uma outra poeta, Elaine Pauvolid, nos aproxima de algumas geometrias plásticas não euclidianas.

Dançam ao chão em desfile triste
as contas que do fio tênue desistem

As palavras-contas se espalham em busca de outros lugares. Procuram se articular em outra instância, dentro de uma outra ordem, em várias lógicas inesperadas.

Interessante é percebermos como a obra de Cézanne se espalhou em várias direções, sem bandeiras, mas em quais lugares? “Aquilo que me falta é a realização.” A realização em Cézanne está em suas reflexões, que jamais são conclusivas. Pensamos ainda em sua solidão, não por ter se negado a ficar em Paris e voltado para Aix-en-Provence, mas a solidão de quem viu seu eu ser abandonado por seu próprio eu.

Os dois homens de Racine, e o eu de Cezanne sendo abandonado pelo seu próprio eu. Uma referência a Cristo crucificado: "Pai, por que me abandonaste?" Ou de sua miséria, do latim miserere, no sentido da imperfeição própria do ser humano.

Quanto a mim, vejo que todo meu esforço ficará sempre inconcluso. Na medida em que procuro me aproximar de Cézanne, mais sinto que dele me afasto. A complexidade de sua obra é tal que por ela chegamos sempre a um limite o qual não podemos ultrapassar, seja ele o da transparência absoluta, vale dizer, do inviolável, seja o do seu, e também do nosso próprio pensamento. Acasos que nos liberam. Mas que acasos são esses?

Até onde os dois homens, os de Racine e os do Milton Machado, giram sós no espaço levitando. A transcrição de um poema do artista plástico/poeta, ou somente ...plástico como Milton Machado, agora e com razão, prefere se identificar, fica aqui como o testemunho de um gesto solitário conseqüente dessa crise a qual atravessamos. São nesses momentos de crise profunda que, segundo Sérgio Millet, o artista torna-se, além de um solitário, um marginal.

Lona

cai por terra o último baluarte
o pirulito lambido não fala a língua das crianças
o z que termina o papo não leva a galinha ao pé da letra
o desespero pode fazer rir do buraco os roedores
tanta água assim desperdiçada é puro desperdício
debaixo da ponte deve ter lugar para mais uma
os otimistas sempre saem antes da hora
Nietzsche me abre a porta para que Bataille escancare

o fogo começou nas cortinas e acabou com a casa
dois corpos de meia idade giram no espaço em levitação
(o confronto nuclear é iminente)
a roda de bicicleta empenada leva o patrão aos aposentos da empregada
fazer amor é sacrifício:
cabe aos meninos regar a árvore da loucura
e ao ancião, que não cabe em si
cabe podá-la

Tarkovski recomenda o entra e sai

Instigante este verso do Milton Machado: "cabe aos meninos regar a árvore da loucura". Parece-me que neste poema cada verso, ou até mesmo cada palavra, tem uma ressonância. Os versos, assim, vão se multiplicando, se entrelaçando com uma lógica imprevisível, e o resultado é um poema multifacetado, poliédrico. Vi algumas coisas bíblicas. Diria que é um poema eliotiano. Se visto por uma das facetas há os meninos (ou crianças como anjos?) regando a árvore da loucura, (a árvore de vida?) Estranha antítese. (A árvore da intangível maturidade? Ou da insensatez do ancião?) A tradição? Deus? Ou um ancião mesmo (não quer arder no fogo do inferno?) ou (o ancião que poda a árvore por imaturidade?) ( e novamente a antítese, ancião / infantilidade?). Há alguma coisa, penso, de Dante Milano, considerado por alguns críticos como o poeta do pensamento. Ou da solidão. Em um de meus desenhos o citei: "De tão lúcido, sinto-me irreal." Como Milton Machado, neste belíssimo poema. Quando ficamos com um verso e uma palavra do verso que lhe sucede, tem-se um tempo entre os meninos e o ancião, ou em outro nível, uma circularidade temporal, e alguma coisa lá atrás ou lá na frente, como está no Eclesiastes. “Todas as coisas têm seu tempo.”

Tenho que reler esse poema muitas vezes. Sinto como se tivesse lido somente um verso. E os outros? Terei ainda que cometer o gesto insensato da poda? É muita coisa condensada em uma restiazinha de uma folha de papel.


E tudo termina em samba para não chorarmos

Mas voltemos ao Argan. Se ele não nos deu um relato convincente das questões espaciais cezanneanas, afirmou considerar a obra do mestre como uma das mais significativas em termos de uma importância social. Mas somos brasileiros. Sou carioca. Daí citar agora Noel Rosa.

Sou do sereno / poeta muito soturno / vou virar guarda noturno / e você sabe porquê. / Mas você não sabe / que quando você faz pano / faço junto do piano / estes versos pra você.

Acho essa letra linda e não conheço na música brasileira versos com uma crítica social tão profunda, nada panfletária e nada também com aquele sal de mau gosto de obra engajada. O artista é também um guarda noturno. E um guarda que guarda também o enigma das cores e mistério do azul.

Como diz Noel Rosa: “Mas você não sabe...” Cito mais uma vez Braque: “O artista não é incompreendido, ele é menosprezado. Nós o exploramos sem saber o que ele é.”

E assim tudo acaba em samba, agora com Ismael Silva. Pode ser um sonho meu, mas a essa altura do campeonato, por que não sonhar? Ser um Nestor não é para qualquer um. Precisa de pulso, sensibilidade, inteligência... O sambista, pedindo ao Antonico, que nos perdoe. E Ismael Silva nos mostra, assim como Cézanne, que há coisas tristes que ninguém disse. Aquilo que está além do visível, e que só uma sensibilidade especial pode ver e fazer com que possamos vê-la como quisermos.

Cézanne dizia que o artista tem uma sensibilidade especial

Estas anotações podem não estar bem escritas, não por incapacidade minha por ser pintor, mas por de não saber ir mais longe do que aqui foi escrito.

Oh Antonico / Vou lhe pedir um favor / Que só depende / Da sua boa vontade / É necessário uma viração pro Nestor / Que está vivendo em grande dificuldade / Ele está mesmo dançando na corda bamba / Ele é aquele que na Escola de Samba / Toca pandeiro, toca surdo e tamborim / Faça por ele / Como se fosse por mim.

Até despacho / Já fizeram pro rapaz / Porque no samba / Ninguém faz o que ele faz [...]


As inconclusões de Cézanne

Certamente estas anotações nunca chegarão a um fim. Como escreveu Marguerite Youcenar em Memória de Adrianao fim contém em si a idéia de encerramento.

Matisse afirmou, cezanneanos somos nós todos. Há Picasso também e entre eles, quase sempre em segundo plano o refinadíssimo pintor e o refinadíssimo pensador Braque. Por que, por exemplo, que na História da Arte de Gombrich ele nem é citado? Braque, que afirmou: “Cezanne não construiu, ele fundou. A construção pressupões um preenchimento.”

Dos artistas brasileiros, dos verdadeiros, cezanneanos quase todos o são.

Um Volpi, por exemplo, onde percebemos um ritmo nas pinceladas sustentando, por transparência, uma variedade enorme de valores cromáticos respeitando a bidimensionalidade do suporte, por um lado, e a dinâmica cromática, por outro.

Um Waltércio Caldas, um outro exemplo, em suas obras onde meditava sobre o fim. Fim como a morte? Fim como um conceito que se desmancha nas obras, que por serem obras excluem o fim conclusivo estabelecendo uma interessante dialética. Ou um fim no sentido de uma determinada finalidade? Há um outro trabalho também curioso. Um grande tapete de sala em um tom ocre esmaecido. Um semi círculo de ferro reduzido a 5/6 aproximadamente. A parte aberta desse semi círculo tangencia o lado direito do tapete. Seu peso levanta no centro um par de sapato por suas pontas. A imagem é de uma grande ratoeira e o título do trabalho é “Emoção estética” como a nos mostrar os riscos de estratificarmos as obras de arte.

Ou Tunga, com seus poéticos espaços topológicos, como Reynaldo Valinho Alvares. Um túnel, um toro, toro que é um túnel, túnel que é um toro... uma circularidade, onde princípio e fim se unem, tal como uma inconclusão cezaneana, inconclusão esta também presente em sua obra. Há ainda mais em Tunga: o serpenteamento, animando a obra, evitando sua segunda morte, como nos ensinou Leonardo. A obra viva anima os textos que algumas vezes acompanham-na. Uma obra viva implica, obviamente, em um espaço plástico também vivo e por ele entramos nesta obra viva ou, podemos dizer, que ela nos envolve, para descobrir e viver uma delirante poética que aproxima o artista até de um Edgar Allan Poe, sobretudo o que escreveu As Aventuras de Arthur Gordon Pynn, personagem que se lançou aos mares guiado por imprecisos mapas, buscando um destino incerto, e , ao fim, encontra uma paisagem abismal.

Um Ronaldo Macedo, construindo o espaço plástico pelas bordas, como fronteiras, que possibilitam também os serpenteamentos, e muitos outros artistas. Como também Hélio Oiticica, que buscou o núcleo da cor, tão próximo ao cinza perseguido por Cézanne, como vimos, se considerarmos esse cinza como sempiterno constituinte desse núcleo.

A frase de Leonardo sobre como evitar a segunda morte da pintura (agora a obra), penso, é muito importante. Lembro-me de um trabalho do BobN. Em uma grande exposição coletiva ele mostrou um “burrinho sem rabo” como um suporte, com uma quantidade enorme de cachos de bananas. As frutas depois foram distribuídas aos visitantes. Mas banana não é uma guloseima, é um alimento. Uma coisa é comer, outra alimentar. Bela metáfora. A arte é um alimento. Bananas são, realmente, vivas. Podem apodrecer. Mas os formadores de opinião, na grande maioria reacionários, atualmente tão fortes nos meios de comunicação, não consideram coisas perecíveis como obras de arte. Comem os restos de um banquete assim que os comensais se retiram e depois nos falam dos sabores inesquecíveis dos quitutes. O que vale dizer, não nos fazem viver. Esses formadores de opinião que agora pontificam, com raras exceções, nas casas dos saberes, um eufemismo dos saraus de antigamente.

Há os artistas e amigos que me fizeram compreender a importância da questão ética, o que não excluí a estética, é claro, mas permite um outro olhar menos contemplativo e mais ativo. Há uma subida e há uma descida. Retorno então ao mito de Sísifo. Citei acima uns versos de Ivan Junqueira, onde o poeta diz que o trágico está no gesto da omissão. À aceitação do castigo, cada nova subida é um novo recomeço. A frase é de Cézanne: “Mas eu sempre disse a mesma coisa.” Será? Os verso são de R. M. Rilke: “Trinta e seis vezes mas outras cem / o pintor pintou essa montanha.” E repito: Camus disse que na descida Sísifo pode ser feliz.

Há os artistas e também amigos. BobN, o meu apoio; o centrado Carlos Beviláqua, e as suas cezanneanas obras descentrada; o jovem Pedro França; o Sheik, atento e deseperançado; a queridíssima Elisa Castro procurando seus espaços; a professora Denise Gama, menos professora que aluna, menos aluna que uma artista em potencial; a criativa Denise Araripe; a Ana Amélia com seus gestos orgânicos e seus fungos; as irmãs Csekö; aqueles que ainda devo; o Denilson; a Mariana Puppin; as Virgínias uma Acosta, outra Teixeira e a Vivi Marmota, como as três Graças, tema tão caro a vários artistas do passado e ainda presente na contemporaneidade; a questionadora Ana Marcela; a Reynaldo Roels amigo e consultor; ao sereno e ponderado Luiz Camillo Osório; ao carioquíssimo Mollica, criado no Catumbi, e sempre atento às curvas e aos contrastes cromáticos extremos da luz tropical do Rio de Janeiro, esta cidade que nos faz sentir os altos e baixos de seu clima; o João Magalhães, excelente pintor que me afaga com seu sorriso; a paulistana e ocupadíssima Lilian, ou Lix, estudiosa das cores, uma pintora que está por surgir; e o agora parisiense, o compulsivo pintor Gonçalo Ivo, meu maior colecionador com mais de cem obras, que tanto me apoiou, e que, além de outras coisas, introduziu-me no mercado, e quem sabe, sem essa interferência dele voltaria a ser um vegetal pela terceira vez, pois já havia parado de pintar por duas outras vezes, tão fortes eram os ataques às minhas preocupações plásticas ao ponto de afirmarem, estampado em um jornal, no fim da década de setenta, bem antes das balas perdidas de hoje, tão temidas pelo falecido Wilson Coutinho, que “inteiramente fora de propósito, equivocada e sem sentido é a pintura de José Maria Dias da Cruz,” e que depois se desculpou. São tantos, tantos e tantos os amigo que me apoiaram, não no início... Como Abelardo Zaluar, que nos deixou tão cedo, o primeiro pintor que me procurou, e me fez professor, e eu tinha na ocasião já meus quarenta anos... Outros me informaram sobre um outro centro, com o qual não sabemos como conviver, como diz o poeta Francisco Marcelo Cabral com a linda metáfora (será que podemos dizer isso?) “No fogo cruzado das balas perdidas.” Ou alunos e alunas, como Brenda Osório, dando seus primeiros e desengonçados passos, para a qual escrevi, como incentivo, o que se segue, sobre um vídeo que criara:

Para Brenda.

Onde estará a tão querida Brenda? Lá, aqui ou além?

O que será de nós, pobres testemunhas, ao percorrer os caminhos dos contrastes e das antíteses, caminhos por diversos níveis de realidades e percepções pela “presença” (tristes palavras, orgulhosas de seus sonhos de poder) “presença” sempre ausente do cinza sempiterno, um enigma?

Brenda era o tronco coberto de flores caídas (mortas) que se transmudavam em flores (vivas), como uma outra Brenda, agora flor viva, colada e abraçada ao tronco onde tudo gira lentamente. As flores rosadas (não espectrais) são simultaneamente também verdes-amareladas (espectrais).

O tempo para nós, testemunhas, sendo Brenda o tronco, acelera-se, como a energia de uma criança, mas não anula o contraste entre as mil ou mais cores opostas verde-amareladas e rosadas. O tempo, sendo Brenda as flores vivas coladas a outro tronco, este maduro e adulto, também para nós testemunhas, é como um tique-taque de um relógio, ou as batidas de nossos corações, regulares e sonoras, e também batidas em uníssono com os nossos, testemunhas, como sombras ou como um momento mágico. Em cada um dos infinitos pares, infinitos cinzas sempiternos. Para nós, testemunhas, nossas vidas balizadas entre nascimento e morte. Para além desse limite o seu oposto, o ilimitado. E além do ilimitado? A transparência absoluta, o segredo que jamais nos será revelado, o sagrado, o inviolável?

De nada adianta a prepotência do vídeo que quis inutilmente aprisionar Brenda em uma hipotética memória, e tão mais hipotética quando mais se afasta do incerto presente. Brenda está livre e sempre livre será. E quanto mais livre, Brenda deixa de ser um apenas nome. Apaga-se a palavra, apaga-se o nome e algo ressuscita... e das paredes sairão flores coloridas que criarão um jardim inacessível, lá longe...


Destino

Estou empenhado em continuar escrevendo este livro. Até quando? Não sei. Abandono-o agora com o sentimento de que há muito ainda o que se pensar. Estou bem consciente da importância deste trabalho, mas não me iludo pensando que irá mudar alguma coisa. Acho mesmo que acabará engavetado. Talvez um dia, ninguém sabe...
De resto, posso dizer que estas anotações terão o mesmo destino de meu livro “A Cor e o Cinza.” Uma inconclusão. A profundidade do pensamento é tal que sinto-me apenas tangenciando o que ele nos quis passar.

Há ainda tantas coisas. Temos que ver, viver intensamente, procurar compreender...