segunda-feira, 2 de julho de 2012

Ver e ouvir - Philip Glass


Ver e ouvir – Philip Glass

(Esses textos -  tenho outros - são desenvolvimentos naturais de minhas notações, desde os tempos dos Formulários até os desenhos mais recentes. Com isso posso me colocar como artista marginal, conforme definido por Sergio Milliet em seu livro Marginalidade no Modernismo. A questão pode ir mais longe face à frase bem conhecida: a arte imita a vida, e faz desta arte um fenômeno cultural, segundo pensava Eliot.)
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Ver e ouvir


Há dias venho escavando meus pensamentos, e uma frase surgiu de
repente, pronta.
Estou cansado de ficar cansado - oh dias atribulados de tantos vazios
- hoje o dia foi de expectativa, e o sol nasceu e se pôs, e entre o
nascente e poente choveu como uma lágrima que escorresse do céu.
Mandei-a a minha amiga Cristina Pape e recebi uma resposta animadora.

"Oi Ze Maria, frases poéticas são reflexos em poças d'água.
Pulamos algumas, pisamos em outras e sempre elas são gotas concentradas."

Lembrei-me de Redon que diz que devemos evitar o literário em pintura,
a não ser que seja um poema. Lembrei-me de Leonardo também. Da questão
do serpenteamento. Este se refere aos limites de qualquer corpo e o
modo como serpenteiam. Frase instigante, então dentro de um limite há
outro que serpenteia? Põe assim em discussão o contorno dos objetos.
Cézanne mais tarde vai dizer que as linhas não existem em absoluto,
são abstrações,.e que na natureza tudo está colorido. Diz mais ainda,
devemos ver a natureza como ninguém a viu antes.

Ficamos, então, face a face de uma série de enigmas. Sentimo-nos que a
arte é como um vôo de um pássaro. Como aquele pintado por Braque no teto de uma ala do Louvre.

Ou então, ao Eclesiastes.

O fato é que estava ouvindo uma música de Phiplip Glass e vendo as
imagens. O serpenteamento se manifestou. E alguma coisa que nunca
vimos antes e nem ouvimos, se fez presente. Observe-se  bem. "O olho
não se farta de ver, nem o ouvido se cansa de ouvir." Está assim dito
no Eclesiastes. E em cada coisa que se vê, e em cada coisa que se ouve, tudo
é simples. Impressionante como as fotos são despretensiosas. Vemo-las
como se estivéssemos acordando, e tudo se parece, no início, como
imagens com uma estética desconhecida, únicas, que não se nos dão ao
diálogo, pois que sem seus respectivos complementos. Como nos diz Raul
de Leone. "Eu era uma alma fácil e macia, claro e sereno espelho
matinal." Do sol que nasce e se põe e que torna a nascer. A vida se
desenha. Da rosa vermelha da manhã (nela tudo é vaidade?), à outra,
abandonada e murcha em uma banqueta à tarde. O amor profano que se
acabou? Pelo amor sagrado as joaninhas se reproduzem. Os gaviões
espreitam, o gato olha a ave sobre os ovos coloridos, uma mão oferta
uma borboleta morta e, em outro momento, em um dedo como um trampolim,
a borboleta se prepara para seu novo vôo. Uma mão se estende - pedindo
ajuda? Há a estrada gelada e há a cerca que permite uma passagem.
Vêm-se as marcas dos pneus, e a imagem do carro, sujo, desconfortável,
tão anticomercial! Do pé ao pneu passando pelo sapato. E é Braque quem
nos diz; “O conceito obnubila. Foi somente após profundas meditações
que o homem bebeu do vazio de suas mãos. (Da mão ao copo passando pela
concha). Aqui é bem mais uma metamorfose que uma metáfora." O tempo
passa como um rio. De repente uma outra imagem, uma estrela-coração? "Há tempo de guerra e tempo de paz." As cores se multiplicam. Os galhos secam, como em certos quadros de Mondrian, uma desordem que antecede à ordem, (e depois florescem,
gráficas e improvisadas, em ritmo de jazz). Há as inúteis máscaras,
como as que nos cantou Dante Milano: "Até que a terra, com sua garra,
nos rasgue a máscara." É o vício de viver? Das uvas ao vinho que
embriaga, das papoulas ao ópio, como nos versos de Baudelaire. "O ópio
dilata o que contornos não têm mais, aprofunda o ilimitado, alonga o
tempo, escava a volúpia e o pecado, e de prazeres sensuais enche a
alma para além do que conter lhe é dado." É tudo vaidade. A flor
amarela prenuncia a morte, a as ferragens violáceas um fim e um
recomeço. O cinza sempiterno se manifesta na natureza e nos expõe o
enigma, este que só um espírito sagaz nele se embriaga, mas pela
metade apenas, tentando compreendê-lo. Curiosa uma foto de uma moça em
frente ao espelho e nele mal se vê o fotógrafo. Van Eyck revisitado?
"O que é o que foi? O mesmo que há de ser. Que é que se fez? O mesmo
que se há de fazer. Não há nada de novo debaixo do sol e ninguém pode
dizer: Eis aqui está uma coisa nova, porque ela já existiu nos séculos
que passaram antes de nós. Não há memória das coisas antigas, mas
também não haverá memória  das coisas que hão de suceder depois de nós
entre aqueles que viverão mais tarde." O que pertence também ao
Eclesiastes .

Mas uma pergunta persiste. A arte, como disse Cézanne, é uma
religião? E Deus, é nosso direito?  "Vem, pois, agora, rogo-te..."
(Números, 22-6). "Vai,vai, vai, disse o pássaro, o homem não suporta
tanta realidade." T.S.Eliot.

Ouçam e vejam. Percebam as histórias infinitas que a música e as
imagens nos contam. Depois me respondam.

http://www.youtube.com/watch?v=uHn8L3dYMLM&feature=related

Um adendo

Na sequência de fotos que acompanha a música do P G, na terceira ou quarta mostrada, tem um detalhe curioso. A foto mostra dois círculos: um bem azulado, outro, menos. Por ele pensamos no cinza sempiterno. Veja, Leonardo diz que o azul tanto pode ser uma cor simples como composta. No segundo caso seria composta de luzes, ou de brancos para as luzes, e de sombras, ou de pretos para as sombras. Este azul pode estar no intervalo entre um branco como cor e de seu oposto, um preto.  O mesmo intervalo para as demais cores e suas respectivas opostas. O cinza sempiterno como um pré ou pós fenômeno.

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