quarta-feira, 11 de julho de 2012

Cézanne e a Cor

Cézanne e a cor

 Há um problema complexo para se entender a cor na obra de Cézanne e por extensão, a própria obra do mestre. Como observa o crítico Manlio Brusanti em seu livro A História da Cores, ele está bastante recalcada em nossa cultura. Diz mais ainda, que com isso o homem está cada vez mais perdendo uma percepção mais profunda das cores e dos coloridos. Daí, creio, a obra de Cézanne não ser estudada considerando-os muito embora ter ele dito que queria chegar à perspectiva unicamente pelas cores.

 Há duas frase do mestre que merecem nossa atenção. Em carta a Pissarro escreveu: “Você tem perfeitamente razão de falar do cinza, somente ele reina na natureaza e alcançá-lo é de uma dificuldade espantosa.” Em suas anotações escreveu o seguinte: “A luz não existe para o pintor, tem que ser substituída por outra coisa, a cor. Fiquei contente comigo mesmo quando descobri isso.”

 Concluimos por conseguinte que Cézanne não aceitou a maneira como os impressionistas teorizava a cor, ou seja, a cor pensada a partir do espectro e considerando um círculo cromático absoluto. E também sua intuição ao considerar um cinza.

 Nos meus estudos sobre a obra de Cézanne estou tentando repensá-lo considerando essas duas frases, e nem tanto uma outra, esta sempre citada pelos historiadores da arte na qual ele diz o seguinte: “Tratar a natureza através do cone, esfera e o cilindro...etc."

 Nos meus estudos a partir da obra de Cézanne descartei o círculo cromático absoluto que classificava as cores em primárias e secundárias. Pensei no cinza sempiterno como um ponto sem nenhuma dimensão como um pós ou pré fenômeno e causa e efeito dos coloridos. Redefini o rompimento do tom como não mais resultante de misturas pigmentares e com um valor absoluto e sim como sobreposição na cor de sua respectiva pós imagem. Reiterpretei uma frase de Leonardo na qual ele diz: “Devemos observar com muito cuidado os limites de qualquer corpo e o modo como serpenteiam para julgar se suas voltas participam de curvaturas circulares ou concavidades angulares.” Considerei a cor abstrata substantiva como uma idéia platônica e a cor concreta adjetiva com uma dimensão temporal face aos ininterruptos rompimentos dos tons.
 A cor é dentro do pensamento verbal e dentro das lógicas decorrentes desse pensamento, impossível de ser racionalizada. No século XVIII criou-se um círculo cromático no qual as cores eram classificadas em primárias, secundárias e com valores absolutos, etc. com a pretensão de explicar todos os fenômenos cromáticos da Natureza e, assim, aprisioná-las dentro de uma mentalidade quantitativa na medida em que ficavam subordinadas às formas, estas mais racionais. Com isso, ficou eclipsada a possibilidade de se pensar as cores e o colorido fora do modelo imposto por este círculo. Além do mais, este círculo cromático é regido por uma lógica que criou os conceitos de cores puras, pastéis e neutras, e assim, atrelando as questões cromáticas ao discurso verbal. Dentro do pensamento plástico a cor é enigmática, portanto passível de ser percebida por outra lógica, como diz Cézanne, nada absurda. 

  Vale ressaltar que a partir desse círculo classificamos as harmonias em termos absolutos e em conseqüência, igualmente as cores. O mesmo em relação aos contrastes. Todos com valores absolutos e estáticos. Nesse círculo as cores são explicadas pelas misturas pigmentares, as quais foram mais tarde denunciadas por Duchamp. Claro, estudam-se alguns outros fenômenos como os contrastes simultâneos, por exemplo. Mas na base está um pensamento lógico, atualmente questionado, decorrente do discurso verbal. A partir desse círculo cromático classificaram-se as harmonias, por exemplo. Estas seriam consoantes, dissonantes e assonantes. (No pensamento plástico como a cor pode ser assonante ou neutra, vale dizer, uma não-cor?). Essas harmonias consideram uma mentalidade quantitativa, ou seja, explicam-se considerando ritmo como recorrência pressentida, que é racional e a cor ficando subordinada às formas. E assim bem longe do que Cézanne nos adverte: “Na natureza tudo está colorido.” A partir do círculo cromático absoluto ficamos presos à lógica aristotélica. Ou seja, à lógica do terceiro excluído, lógica esta que afirma que uma coisa não pode ser verdadeira e falsa simultaneamente.  Esse círculo excluiu o que hoje nos é familiar, as incertezas.

 Descartando-se o círculo cromático absoluto, como, parece-me, também o fez Cézanne, passamos a considerar um terceiro termo. A dimensão espaço-temporal da cor, pelo rompimento do tom, nos permite entender o cinza sempiterno como um pré ou pós-fenômeno. Vale dizer, um cinza que não existe, mas que se manifesta na natureza. Isso nos aproxima a cor e o colorido da lógica do terceiro incluído, sendo o terceiro um termo que se refere às diversas dimensões embutidas na fecha do tempo como informação.

 Escrevi um livro intitulado A Cor e o Cinza  utilizando-me, é claro, da linguagem verbal Nele refiro-me ao conflito entre a percepção sensível e a linguagem. Neste livro, para reforçar a disparidade entre a cor e o nome que lhe damos, cito o filósofo Mário Guerreiro, que diz:

 “Sim, pois onde estão as cores puras no mundo percebido? Na verdade, elas pertencem ao mundo nomeável, mas esse mundo nomeado reparte o mundo percebido e o organiza de acordo com essa coisa enigmática que é o critério de relevância implícito na língua estruturada. Parece que se abre um abismo entre a percepção sensível e a linguagem, entre as qualidades percebidas e as qualidades nomeáveis, mas ficamos em dúvida se deveríamos concordar com a idéia de que o percebido só se faz passando pelo crivo na nomeação, como se a linguagem estivesse filtrando a percepção, canalizando-a no sentido de só poder captar certos padrões em detrimento de outros. Com certeza este é um problema que teria de ser colocado para uma fenomenologia, onde uma incursão nos domínios da pintura seria, certamente, bastante esclarecedora.”

 Nesse sentido, podemos fazer com que haja uma convivência entre a percepção sensível e a linguagem verbal. Neste caso, consideramos a cor abstrata substantiva, que subsiste por si mesma na medida em que sua substância não se altera, é nomeável e é uma idéia platônica, e a cor concreta adjetiva, cuja condição é ser no colorido e está sempre se rompendo, possuindo uma dimensão temporal. Podemos, assim, lidar simultaneamente tanto com a percepção sensível e a linguagem verbal.

 Procurei através do estudo das questões que os pintores discutiram chegar ao pensamento plástico. Apoiei-me em Poussin que se refere a um ver prospectivo, além de outro que considera apenas o aspecto dos objetos. Por esse olhar prospectivo Poussin  considera o saber do olho, os eixos visuais e as diversas distâncias. Braque diz que explicar uma coisa é substituir a coisa pela explicação. Nos livros que escrevi, A Cor e o Cinza e O Cromatismo Cezanneano caí, em parte, nessa sutil observação. O ato de olhar permite a experimentação e, obviamente, o ato poético, criativo, etc. Procurei desenvolver um pensamento plástico para sair desse impasse.

 Procurei entender a frase de Cézanne Na qual afirma que a luz não existe para o pintor, etc. Portanto o mestre de Aix não se interessou pelo cromatismo impressionista. Disse mais ainda, que somente um cinza reina na natureza. Não se trata obviamente do cinza baseado na mistura do branco com o preto, pois esse não oferece nenhuma dificuldade. Digo que Cézanne nos preparou para pensar no cinza sempiterno, como passei a denominá-lo.

 Cabe enfatizar, que o cinza sempiterno não existe. É um pré ou pós fenômeno. Acrescento agora que ele não é objetivo na medida em que não é um fenômeno. Talvez seja apenas uma lógica. E mais, talvez nos faça compreender Cézanne quando ele afirma que a arte é uma religião. Ele, o cinza sempiterno, se manifesta na natureza. Será que podemos afirmar que essa manifestação pode nos levar a considerá-lo como uma manifestação de uma das faces de deus e este uma lógica?
 Além dessas questões, incluiu-se na lógica da cor a questão do serpenteamento vinciano. Leonardo no Tratado da Pintura diz que devemos observar com muito cuidado os limites de qualquer corpo para julgar se suas voltas participam de curvaturas circulares e concavidades angulares, uma questão bem mais complexa do que afirmar, como se vê nas histórias das artes, que ele introduziu na pintura o esfumato. Este é apenas um procedimento e não uma questão teórica.

 Sobre esta questão vale citar a famosa frase de Cézanne na qual ele reforça que tratar a natureza através do cone, esfera e cilindro não implica em uma geometrização considerando esses sólidos geométricos como os que possibilitam a construção do espaço pictórico tomando-os como formas históricas da construção deste espaço. Além do mais Cézanne afirmava que queria chegar à perspectiva unicamente pela cor. Interessante é que podemos compreender a afirmação de Duchamp na qual diz que o cubismo tem inicio em Cézanne, e passa pelo fauvismo, (em minha opinião, sobretudo por Braque).

 Consideraríamos a geometria dos fractais, e novamente o cinza sempiterno, que estaria presente tanto no todo como nas partes. Assim em uma fração teríamos também um elemento contido no todo, no caso, o cinza sempiterno. Daí poder-se dizer que as partes são maiores que o todo. Consideraríamos, também, a teoria do caos, e a partir daí pensaríamos no processo contínuo de organização e desorganização quando estados de entropia máxima são observados, o que metaforicamente nos levaria a considerar a questão de vida, morte e ressurreição.

 Tudo isso nos permite realmente pensarmos em uma geometria das cores considerando-se entre outras a topologia na qual, além das transformações e deformações contínuas, o cinza sempiterno seria uma fronteira. Ou na geometria dos fractais e novamente aquele cinza lhe dá consistência.

 Podemos imaginar também que essas surdas questões pertinentes ao pensamento plástico e, por extensão, às artes visuais, poderão, talvez, ser mais bem compreendidas pelas geometrias que hão de vir. Como, por exemplo, uma geometria das cores.



  José Maria Dias da Cruz - julho de 2012

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