Troca de emails entre a poetisa Ângela de Barros Montez e José Maria Dias da Cruz
José Maria:
Te mando meu poema novo, pra compartilhar.
Beijos, saudades, Ângela
Identidade
entro no podre passeio no escuro
me agarro ao jasmim das entranhas
mesmo o que está estragado
aqui
se foi bonito um dia
serve
porque existo no caótico e no intraduzível
porque resido no não mundo
e no acidente de ser ocidental
mesmo não sendo
assisto a cheiros existências alentos
há tanta carne e tanta luz
no chão enquanto rumo
entre os meus
que me emociono por ter a mesma pele
mesmo não tendo
ainda que meu andar seja torto
e minhas veias apontem para outro corpo
longínquo
sou semelhante
e o que eu não sei (e que é muito)
preencho com que é desfeito
descosturo o que somos nós
nos fazendo
em nossos linhos de fios
negros
sou tanto fogo que incendeio
por isso o rasgo o esquecimento
reconheço o que não entendo
enquanto caminho
passo atrito espinho
essa flor úmida com verbo e voz
e des(crio)
e todo o limo e todo o limbo
em que vivo
percebo
fazem parte da parte em que estou
− nas entranhas − de nós
no podre do outro de mim
no jasmim do chão no acorde no ouvido
e o estremecer suave delicado
de um corpo
caído
gozando
no Rio
Ângela
Li e reli e estou pensando, mas logo te direi o seguinte. Perece-ne q vc trabalha simultaneamente com as palavras imediatas e remotas. Há, naturalmente um intervalo entre elas e aí ocorre o serpenteamento, ou seja, dá vida ao poema. Ou, se vc quiser, evita que o poema morra por uma segunda vez, na medida em que, ao realizá-lo, matou por uma primeira vez. Daí estende-se à questão de vida, morte e ressurreição com um sentido metafórico, claro. Vou tentar desenvolver mais tudo isso. Mas gostei imensamente desse poema. Lindo!
Bjs
JM
Ângela
Cada releitura mais descobertas. Não especifiquei tal ou qual verso, mas o que escrevi, pouco, espero que vc me entenda. Me pareceu uma grande sacada vc trabalhar simultaneamente tanto com as palavras imediatas e com as remotas. Foi realmente uma surpresa vc pensar na morte, vida e ressurreição com tal maestria. Vou desenvolver essas pequenas observações, se vc achá-las pertinentes. Pretendo falar tbm dos contrastes. Depois até posto em meu blog se vc permitir.
Mostreio-o a minha filha e ela adorou!
Bjs
JM
Oh, José Maria, adorei sua leitura! Nunca pensei nisso! Obrigada!
Beijos, Ângela
Ângela
Que bom q tenho gostado do q pretendo desenvolver. Sobre a questão de vida, morte e ressurreição percebi na primeiro estrofe. Vou até citar um biólogo, Hanry Atlan.
"[...] a organização dos seres vivos não é estática, nem tampouco um processo que se oponha a forças e desorganização. Mas antes um processo de desorganização permanente seguida de reorganização, com o aparecimento de propriedades novas, quando a desorganização pode ser suportada e não mata o sistema. Em outras palavras, a morte do sistema faz parte da vida, não apenas por sob a forma de uma potencialidade dialética, mas como uma parte intrínseca de seu funcionamento e sua evolução: sem perturbações ao acaso, sem desorganização, não há reorganização adaptativa ao novo; sem um processo de morte controlada, não há processo de vida."
Veja, parece q vai na mosca. E tem ainda a palavra aqui, simultaneamente imediata e remota e q tambem é uma palavra de passagem que justifica o que citei acima.
entro no podre passeio no escuro
me agarro ao jasmim das entranhas
mesmo o que está estragado
aqui
se foi bonito um dia
serve
E tem outra estrofe:
e o que eu não sei (e que é muito)
preencho com que é desfeito
A partir dessa penso me referir ao enigma e citar Braque: "Em arte somente uma coisa tem valor, o que não se pode explicar."
Não sou poeta, mas tentarei escrever algo com alguma carga poética e por aí posso me apoiar em um terreno no qual me entendo menos mal, a pintura.
Assim, em cada e-mail vou desenvolvento o que seu poema me tocou, ou se vc quiser, me afetou. Acho que é por isso que gostamos de trocar idéias. Nada daquele blá blá blá acadêmico. Aliás outro dia vi um vídeo que tinha uma passagem bem interessante. e engraçada. O palestrante dizia que os acadêmicos usam o corpo somente como meio de transporte para suas respectivas cabeças. Acrescento: iluminadas por uma luz artificial. Transportam-nas para diversas conferências. Achei engraçado. Claro, não podemos generalizar.
Bjs
M
Ah, José Maria, pra mim é uma honra ter a sua leitura! Esse poema não vai entrar nesse livro que eu te mandei, vai fazer parte de um futuro. Você deve ter percebido que eu mudei de fase e de dicção. É espontâneo, você sabe.
Gostei do que você falou sobre os acadêmicos. A frase é perfeita! Geralmente, os veículos estão arruinados pelas cabeças!
Beijos, Ângela
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