quarta-feira, 1 de março de 2017

Ivan Hegen. Permanência da pintura

Permanência da pintura


Não é o bastante, para haver pintura,
que o pintor retome os pincéis. Ainda
 é necessário demonstrar que a pintura
é algo que não podemos dispensar, e que
seria loucura – ou pior, um erro histórico –
deixá-la desaparecer. (Hubert Damisch)
                 Não basta pintar uma ótima tela e colocar na parede. Em qualquer exposição panorâmica de arte contemporânea, a pertinência da pintura é irremediavelmente posta em dúvida. O próprio Greenberg, maior entusiasta da pintura moderna, criou os precedentes para a ruína dessa técnica. Por mais que a amasse, impingia-lhe critérios tão estreitos que fariam com que a pintura em pouco tempo parecesse obsoleta. Para Greenberg, a pintura deveria falar apenas sobre si mesma, sobre seus materiais, e quanto mais autoconsciente de sua forma (a começar pela planaridade), mais se afastaria de seus aspectos “literários” (referenciais). O conteúdo de uma obra de arte não poderia ser alusivo, deveria remeter à sua própria realidade material. Não demorou para que, a partir daí, os pós-modernos acusassem toda pintura de pecar pelo ilusionismo,  pois mesmo o mais austero Mondrian resguarda algo da perspectiva. Se há a sensação de que as cores quentes se aproximam do espectador e que as cores frias recuam, a planaridade não chega até as últimas consequências, tampouco a “verdade dos materiais” de uma pintura.
        
    Questões formais, portanto, tornaram a arte cada vez mais conceitual – ironicamente, para horror dos formalistas. Uma vez dado o pontapé inicial de Greenberg, os lances seguintes, nos anos 60, seriam os da pop art, do minimalismo, da arte povera, do happening, da instalação e das aproximações entre a arte e a sociologia. Por mais diversificadas que fossem tais tendências, e por mais que tenham momentos interessantes, é preciso ter em mente o ponto comum: anti-ilusionismo.  Um de seus efeitos mais incontornáveis continua sendo o xeque à pintura. Se até Mondrian, de formas tão econômicas, tem sua credibilidade ameaçada, as pinturas mais figurativas, mais “literárias”, como as da Transvanguarda Italiana dos anos 80, por exemplo, são completamente incompatíveis com o projeto anti-ilusionista. Um modelo pressupõe a derrocada do outro – não se trata de uma guerra étnica ou social, mas de uma guerra cognitiva.
          





A pintura nos convida a apreciarmos suas relações internas. Não necessariamente um tema retratado, mas principalmente a composição das linhas com as cores, a textura e a gestualidade.  Quem combate a pintura tenta condicionar o olhar para fora, para o mundo, tornando-o refratário àquelas relações. A ênfase pós-moderna é no materialismo – tanto no sentido empregado pela sociologia quanto na ênfase da “verdade dos materiais”. As duas acepções têm se combinado: por exemplo, quando os anti-ilusionistas denominam o contorno do chassi, pejorativamente, de grade, nos induzem a pensar que uma pintura nada mais é do que matéria colorida sufocada por um perímetro. Para eles, a pintura se afasta do “espaço da vida”, onde deveriam se travar as verdadeiras batalhas da arte. Perdeu-se completamente a confiança em qualquer luta no campo da sensibilidade; veem apenas um quadrilátero mistificador que pretende desviar o olhar da realidade. Cessa o poder da ilusão: a tinta é apenas um produto esparramado sobre um plano, que por sua vez é apenas lona estendida. Não haveria mais expressão em uma pintura do que em uma casual mancha na parede.

Acusa-se a arte autônoma de impor silêncio, de não se misturar a discursos mais amplos. Não pode haver acusação mais fútil contra a pintura. A começar, porque a comunicação não-verbal é tão importante quanto a comunicação verbal, e não se dá apenas com a arte mas a todos os instantes, percebamos ou não. O fato de a pintura não se deixar codificar inteiramente pelo discurso é uma vitória sua, o que, infelizmente, é esquecido em um ambiente artístico que privilegia a retórica. Traços mnemônicos que transportamos das telas para o mundo, pensamento intuitivo, e mesmo uma noção mais refinada do Real não podem ser esgotados pelas palavras, aceitem ou não os artistas conceituais mais intransigentes. Quando a pintura se coloca como alteridade, estabelece diálogos abertos, e tanto melhor que não possam ser descritos verbalmente, pois é assim que seu assunto nunca termina. A ânsia pós-moderna por esquadrinhar a arte deixou a pintura de lado justamente por sua frustração em não conseguir esgotá-la pelo discurso.

Quando, aqui e ali, um crítico pós-moderno resolve tornar Mondrian, ou qualquer outro pintor, “aceitável”,  não o faz sem dispendiosos exercícios de contorcionismo, tais como os de Yve Alain Bois. O crítico da revista October enfatiza o programa de Mondrian, que pretendia levar suas cores e formas para a arquitetura e para o design de uma nova sociedade. De fato, o pintor holandês visava um futuro utópico onde a “consciência universal” triunfaria por toda parte, não apenas na “grade”, mas isso levou Alain Bois a ver em Mondrian um destruidor da pintura, o que é no mínimo um comentário afetado. Mondrian tinha, pelo contrário, uma confiança na pintura maior do que a da maioria de nós, pois a via de maneira essencialista, onde o universal era representado. Dizia que, de todas artes, a pintura era a “menos limitada por contingências”. Mondrian tinha na pintura sua liturgia, onde estabelecia o que denominava “relações primordiais”. Equilibrava formas e cores em correspondências internas, do contrário deixaria o chassi de lado e enveredaria para a arquitetura sem pestanejar. A despeito da inteligência de Yve Alain Bois, pretender que Mondrina iria assassinar a arte é mais uma entre tantas bobagens pós-modernas. Tais bobagens costumam ser proferidas porque somente com muita distorção se fazem enxertos em um paradigma que vem se provando pequeno.

Batalha cognitiva

Se, dos anos 60 para os 70, praticamente nenhum artista intelectual acreditava que a pintura pudesse sobreviver, algo estava ocorrendo que ultrapassava as variações do modismo. O próprio Yve Alain Bois, em seus textos, passa a impressão de gostar da pintura, no entanto nunca foi tão difícil defender uma obra apenas pelo gosto pessoal. Pois se trata de uma batalha cognitiva (ver Condição cognitiva). Para que uma tela pendurada em uma exposição possa ser percebida, é preciso antes estabelecer qual a relação figura-fundo: se a obra vai se vista em sua autonomia, ou se vai ser reduzida sob o olhar materialista, que vê na pintura um objeto entre tantos outros. Se o fundo é o fundo pintado, “ilusório”, temos uma obra; se querem considerar como fundo o amplo espaço físico onde todos os objetos estão expostos, a tela recua consideravelmente, como uma simples figurinha que não tem sentido fora do álbum. Se o fundo que a retina deve considerar é do tamanho do mundo, com todas suas relações sociais e paisagens como cenário macro, aí é que uma pintura se torna mesmo diminuta, e com isso o olhar contemporâneo tem tido dificuldades para enxergá-la. Tais relações não dependem exclusivamente da vontade do pintor, pois a competição é brutal.

O minimalismo chegou muito perto de assassinar a pintura quando propôs um realinhamento do olhar. Não mais as relações internas de linhas e cores num plano pictórico, como em Kandinsky, mas as relações entre uma escultura e o complexo arquitetônico ao seu redor, ou entre a obra e o skyline de uma cidade. Do zoom in ilusionista para o zoom out de um campo expandido. Kandinsky dizia que um pequeno ponto sobre o plano de uma tela criava tensão mútua entre ambos os elementos. Uma escultura de Morris pode se apresentar como ponto mínimo a criar tensão sobre um “plano” muito maior, como o de um pavilhão inteiro do espaço expositivo. Nesta mudança de paradigma, a tela de Kandinsky enfrenta maiores dificuldades para ser vista em autonomia, já que a atenção para suas relações internas se dispersa em um plano grande demais. Se em momento histórico algum foi experiência fácil investir em experiências de imersão e de alteridade tal como uma pintura exige, quando esta compete com obras que insistem no campo expandido, a tendência é que as telas passem a ser vistas como objetos quaisquer.


                                Instação de Robert Morris na Green Gallery, 1964

Apesar das batalhas cognitivas, tivemos nos anos 80 a chamada Volta à Pintura. A essa altura, o mercado já absorvia tranquilamente a arte conceitual mais refratária, mais “antiartística”, porém não há dúvidas de que uma nova safra de pintores foi bem recebida por boa parte dos colecionadores. Para os críticos mais exigentes, porém, apesar de a pintura ter dominado a cena por toda a década de 80, ainda havia algo de pouco convincente nesta virada. A pintura reaparecia como fenômeno de mercado, em reação à arte demasiado cerebral e materialista que se vinha realizando. De modo geral, no entanto, a pintura dessa época ainda carecia de vigor. Nenhum dos obstáculos anteriores havia sido superado, nem na prática nem na teoria. A pintura ressurgia ainda mais ilusionista do que na época de Greenberg; não parecia estabelecer um diálogo dos mais intensos com a vida; não demonstrava muitas novidades técnicas ou uma poética que abrisse novos caminhos. Havia exceções, como Polke, David Salle, Luis Zerbini, Gerhard Richter e Anselm Kiefer, mais atentos ao seu tempo. No entanto, todos eles, e em especial os dois últimos, mantiveram uma postura bastante dúbia com a pintura, mantendo-a sob suspeita, sob certo desprezo. O virtuose Richter se apropriava de fotografias e descaracterizava a pintura, alegando que toda expressividade seria um engodo; ao passo que Kieffer carregava no discurso, ora sacralizando, ora demonizando a pintura. Que a inquietude e o questionamento ocorram, é fundamental, mas a neurose era tanta que a arte se ensimesmava, hipocondríaca, com sérios problemas de auto-estima.

O principal crítico a defender a pintura, nessa fase de ressurgimento, foi Achille Bonito Oliva. Apesar da tentativa, não apresentava nem um time de artistas nem argumentos convincentes o bastante para encerrar a discussão. O italiano soube dialogar com o mercado, soube se impor, e obteve simpatia ao denunciar o anti-ilusionismo como moralista e masoquista, em um momento em que seus adversários também mostravam fadiga. Porém, não foi capaz de revelar um solo epistemológico onde a pintura garantisse sua potência contra seus incansáveis detratores, e em menos de dez anos a pintura estaria novamente sob perigo de morte. Ainda hoje, aliás, somos carentes de uma teoria que situe a pintura na contemporaneidade. O mais frequente são contemporizações e pactos forçados entre alguns pintores e seus opositores, como vimos em Alain Bois.  No máximo, a pintura é tolerada, dificilmente se acredita que ela esteja à altura de nosso tempo.
Podemos admitir, um pouco a contragosto, que não foi totalmente despropositada a perda de influência da pintura nos anos 60. É difícil negar que após o expressionismo abstrato tenha havido um hiato, uma falta de novos talentos que assegurassem a vitalidade da técnica. Por mais que se goste de Olistky ou de Richard Diebenkorn, é preciso admitir que após Andy Warhol, o minimalismo e a arte conceitual, a maior parte das pinturas saia sangrando do combate. Não é à toa que Agnes Martin, pintora de uma sutileza sublime, se retrairia, se desinteressaria por todas as discussões do universo da arte, apesar de inicialmente ter sido associada ao minimalismo.  Havia uma incompatibilidade, um novo olhar que não conseguia mais fechar o foco em pintura alguma, o qual ameaçava a sensibilidade que havia até então. Vieira da Silva, mais tarde Phillipe Cognée ou Michael Raedecker podiam apresentar telas mais interessantes do que qualquer capricho anti-artístico, mas a questão insistia como um trauma: boa ou não, a arte está viva?
              
                Retomada
                Para responder, há que se considerar os problemas do outro lado do front. A obra anti-ilusionista do campo expandido requer, em algum momento, um corte, um limite, do contrário a arte engole a realidade toda. Se o campo se expande indefinidamente, o espaço da arte se equivale ao da vida, resultando em uma falsificação dos gestos cotidianos, em uma estetização total da vida. O crítico Rodrigo Naves é um dos raros a dizer expressamente que isto não poderia ser mais alienante. Com o tempo, a tendência é que outros percebam e o digam. Sob o paradigma da antiarte, somente a afirmação dos artistas e dos críticos nos faz aceitar que aquele pôr-do-sol na Iugoslávia é uma exibição de arte, que o simples copo d’água oferecido ao público é performance ou que uma inserção comercial na televisão difere das demais por ter sido feita por um artista. A pintura foi desacredita por ter a “grade” como limite; por outro lado, o limite da arte no campo expandido surge, inevitavelmente, do superego. Requer uma figura de autoridade, seja um artista ostentando o semblante do saber, seja a de um crítico abalizador. Mesmo para as incursões mais “radicais”, a mediação tem se dado principalmente pelo superego, sem o qual não se destaca uma obra de arte de seu entorno.

Como vimos, esparsos elogios ou boas telas não puderam garantir um olhar atento para a pintura, do contrário não teria durado tanto tempo sua sentença fatal. As pinturas continuarão ameaçadas de morte pelas obras com que têm dividido espaços expositivos, ao menos até se perceber o quanto a arte requer confiança na virtualidade, na ilusão. E é justamente neste ponto que a teoria pós-moderna, por mais “atenta a nosso tempo” que  busque ser, está mais distante da nossa sensibilidade do que uma boa pintura. Não se trata de corporativismo, de defesa fanática por uma técnica. Se a pintura vai sobreviver no século XXII, por exemplo, é impossível de prever. Pode ser que simplesmente não apareça mais nenhum pintor bom o bastante para torná-la vibrante. No entanto, dizer hoje que a pintura está morta não pode ser visto como a constatação de uma morte por velhice – seria um assassinato frio e sem sentido. Ainda há gente apontando-lhe a arma, mas felizmente têm uma péssima pontaria. Mais feliz será o dia em que nem precisarmos explicar o por que de a pintura estar viva. No momento, ainda é questão de autodefesa, portanto sejamos rápidos no gatilho.

Em primeiro lugar, como defesa, pode-se dizer que os limites físicos da pintura não a impedem de infinitizar-se em variações livres que não atribuem primazia ao superego. Em segundo lugar, basta que a crítica contemporânea reconheça o impacto da internet para que a morte da pintura tenha que ser repensada. O formato que se chama pejorativamente de grade não deve ser mais problemático do que o monitor de computador, onde o mundo se virtualiza porém se abre para nós. Em um espaço de poucas polegadas, são estabelecidas as mais amplas conexões e o olhar ganha um terreno amplo – podendo se abrir com mais amplitude do que o skyline que certas obras antiartísticas tomam por seu horizonte. Diferentemente de uma obra minimalista – que de concisa não tem nada, pois cobiça o espaço inteiro, todo seu entorno – o espaço da pintura se virtualiza. Estamos ainda em transição, mas não me parece coincidência que já se note nas gerações mais novas de artistas uma confiança renovada no virtualismo, de que se vale não só a internet, como todo espaço fantástico. Quanto mais a interface para a realidade virtual for desenvolvida e se mostrar instigante, menor a tendência de se reprimir a pintura em nome de relações com o espaço expandido. Muitas de nossas conexões mais proveitosas vêm se fazendo em universos paralelos, imaginados, virtualizados.

Não é tão casual que ainda hoje a arte digital tenha permanecido um tanto à parte da teoria pós-moderna ortodoxa, pois não é muito compatível com a paixão pelo zoom out, pela concretude do materialismo. Observando artistas digitais recentes, como David Sullivan, é nítido que ele recorre mais a um repertório pictórico do que ao da arte mais estritamente pós-moderna. Da mesma maneira, notamos que alguns pintores, como Udomsak Krisanamis, Julie Mehretu ou Torben Giehler, se apropriam com muita naturalidade e competência da linguagem dos computadores. Porém, não são apenas eles que nos dizem algo em plena era da informática. A bem dizer, a pintura sempre se atualizou e se virtualizou simultaneamente, fazendo coincidirem matéria e ilusão. Uma cena de Velasquez ou de Rembrandt não nos impede de admirarmos a fatura, de analisarmos o pictórico como trabalho consciente. Toda pintura tem algo de tão virtual quanto uma tela de plasma, no entanto oferece a contrapartida de sua materialidade. É este jogo que a faz tão rica e que a faz perdurar ao longo de tantas transformações históricas e tecnológicas. Sua própria obsolescência tecnológica, o artesanato com que a ilusão da pintura se constroi, será seu maior trunfo para resistir, pois nos preserva o elo entre as experiências digitais e o mundo concreto. Se, inevitavelmente, grande parte de nossas experiências se repartirá entre o virtual e o material, a pintura seguirá como uma síntese desse trânsito. As arestas da pintura deixarão de ser motivo para vergonha, por marcarem uma zona de possibilidades infinitas. Que os antiartistas reformulem seus pobres discursos, pois o futuro da pintura tende a ser longevo. Ao contrário de todas as previsões, não encontrará sua decadência em nosso tempo, mas uma nova vitalidade.

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