segunda-feira, 20 de março de 2017

Carlos Berriel: A origem da “superioridade racial” dos paulistas



Carlos Berriel: A origem da “superioridade racial” dos paulistas

06 de agosto de 2013 às 21h16


Planalto garantiu “preservação” dos paulistas contra invasão, pensava Paulo Prado
Da ficção historiográfica ao paulista
 como ‘raça superior’
por Carlos Orsi, no Jornal da Unicamp, sugerido por Ana Cláudia Romano Ribeiro, no Facebook
A Semana de Arte Moderna de 1922 foi, no plano ideológico, a iniciativa de uma “oligarquia racista, reacionária e ao mesmo tempo modernista”, para servir aos interesses de classe da elite cafeicultora e a um projeto de hegemonia paulista, que via o Brasil como uma colônia a ser explorada pela metrópole de Piratininga.
Mesmo autores como Mário de Andrade foram próximos a esse projeto, cuja justificativa é construída no livro Retrato do Brasil, de Paulo Prado, cafeicultor, historiador e grande mecenas da Semana de 22. Isso é o que afirma o professor do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp Carlos Berriel, autor de Tietê, Tejo, Sena: a obra de Paulo Prado, livro sobre a trajetória e a obra de Prado.
Publicado originalmente em 2000, o livro, nascido de uma tese de doutorado defendida em 1994, foi relançado neste ano, em edição revista e ampliada, pela Editora Unicamp.
Em entrevista ao Jornal da Unicamp, Berriel falou não apenas sobre a trajetória intelectual de Paulo Prado e a influência de seu pensamento, mas também sobre a necessidade de se rever o lugar do modernismo paulista no cânone da literatura brasileira.
A festa de lançamento do livro, em Campinas, acontece no próximo dia 15, no Empório do Nono, em Barão Geraldo, a partir de 18 horas.
Abaixo, os principais trechos da entrevista, na qual o autor defende também a ideia de que o modernismo paulista sofreu influências inclusive da visão colonialista desenvolvida por intelectuais portugueses no fim do século 19.
Jornal da Unicamp – O senso comum sobre a Semana de Arte Moderna de 22 diz que os artistas de vanguarda engabelaram a elite do café, fazendo os barões pagarem por um espetáculo que eles não entendiam e que, no fundo, os afrontava. Seu livro indica que não foi bem isso… No fim, quem estava usando quem? Os artistas usaram os cafeicultores, ou vice-versa?
Carlos Berriel – Acho que o enfoque correto não é esse. O modernismo paulista é a estética da elite do café, é praticamente a sua visão de mundo. Não se trata de dois partidos que, com consciência limitada, andaram juntos durante um tempo. Isso não é verdade. A tese que defendo, nesse livro, é muito mais ampla: o meu trabalho avalia o modernismo do ponto de vista da sua gênese enquanto consciência de classe social, enquanto projeto político. É um estudo de consciência de classe. A classe de origem do modernismo paulista é a do baronato cafeicultor.
JU – Mas tem a questão do Oswald de Andrade, que depois virou comunista…
Berriel – Oswald de Andrade se separa do núcleo duro do modernismo, do grupo do café, de 28 para 29. Aliás, ele não se separou, ele foi expulso desse grupo porque, como editor da Revista de Antropofagia, permitiu que fosse publicado um artigo tratando, de forma muito desrespeitosa, o Retrato do Brasil, o livro de Paulo Prado que tinha acabado de sair. E Oswald tem uma origem de classe um pouco diferente.
Embora o lado materno seja sim, da aristocracia do café, o pai era um empresário moderno, que foi quem instalou o sistema de bonde em São Paulo e quem urbanizou o que hoje são os Jardins. Mas mesmo sendo membro do Partido Comunista, Oswald manteve sua teoria da Antropofagia, que é modernista.
Mas nós não podemos falar do modernismo como uma coisa unívoca – cada caso é um caso, cada obra existe em si mesma e tem sua razão própria. No fundo, cada autor e dada obra possuem um percurso diferente. E também é importante considerar que existe o modernismo paulista, e existem as letras modernas, que não são a mesma coisa. O modernismo é moderno, mas nem todos os modernos são modernistas.
Há a tendência, de uma historiografia marcada pelo próprio modernismo, de trazer para as águas do modernismo autores e obras que não têm nada a ver com esse movimento, como por exemplo Graciliano Ramos, José Lins do Rêgo e outros. Então, existem as letras modernas em Minas, no Rio de Janeiro, no Nordeste, etc., e existe o modernismo paulista, que são coisas diferentes. Essa distinção é essencial, e sua ausência é muito danosa para a compreensão da época.
JU – Em uma das notas de seu livro aparece José Lins do Rêgo, reclamando dos modernistas paulistas.
Berriel – Ele dizia: nós do Nordeste não temos nada a ver com isso. E ele é super hostil ao movimento. Graciliano Ramos não chega a escrever sobre isso, mas pelo depoimento de pessoas que foram muito próximas a ele sabemos que a sua opinião de que o modernismo paulista era a pior possível.
Acho que é fundamental tomar autor por autor e ler o que cada um escreveu, e não o que nós achamos que eles disseram. Meu livro busca manter a disciplina de ler exatamente o que o autor disse, exatamente o que ele está dizendo.
Procurei evitar – e espero ter conseguido – acrescentar qualquer coisa minha, a favor ou contra. Procurei manter uma disciplina de objetividade diante do que o texto efetivamente diz. Quis apenas colocar o discurso em pé: ele disse isso. Quais os pressupostos? São esses aqui, conforme está na obra. Foi uma coisa muito difícil, mas não se pode fugir dessa prática.
JU – Algo que chama muito a atenção na obra de Paulo Prado é a questão do racismo, ou racialismo, que em certos pontos me fez lembrar das polêmicas recentes em torno da obra de Monteiro Lobato. Essa questão de raça era uma coisa muito forte na cultura paulista daquela época?
Berriel – As teorias raciais eram uma coisa muito forte da época, e não apenas no Brasil. O final do Império, a libertação dos escravos, ainda era uma coisa recente…
No Brasil temos a tradição de que classe social é raça, que vem do problema da escravidão. E é algo de que não se livra do dia para a noite. E já que estamos falando da elite rural, eles eram ex-escravocratas, e o fato de alguns serem abolicionistas não implicava necessariamente que não fossem racistas. Isso é uma coisa muito presente na cultura brasileira, e aquele foi um período no qual o Brasil ia buscar as suas teorias, os seus arcabouços teóricos, no exterior. Foi comum, nessa época, ir buscar as teorias raciais e trazê-las para cá – teorias que depois deram no que deram.
Para sermos justos com esses autores, precisamos lembrar que nem Paulo Prado, nem Monteiro Lobato ou qualquer outra pessoa, sabia que daí viriam os campos de concentração, por exemplo. Eles não sabiam nem tinham como saber. Então, não podem ser responsabilizados por uma coisa que ainda viria a ocorrer. Porém, eles beberam da mesma fonte teórica do racismo “científico”, e isso precisa ser levado em consideração.
JU – Qual o propósito de se trazer essas ideias ao Brasil?
Berriel – Há um sentido muito prático: o que é que está em jogo no Brasil? Aqui se constituiu, desde a proclamação da República – principalmente na chamada República Velha –, a hegemonia de um setor econômico sobre o conjunto do país. Ou seja, a oligarquia do café, que monopolizava o Estado através da política do café-com-leite, transformou o Brasil em um sistema caudatário de São Paulo, através do chamado Convênio de Taubaté, de 1906, que instituiu no país um sistema semicolonial, em que São Paulo age como metrópole e o resto do Brasil submete-se como colônia.
O sistema funcionava da seguinte forma: São Paulo poderia produzir quanto café quisesse, pois o Estado brasileiro compraria, através de um empréstimo internacional a ser pago com as finanças de toda a nação.
Na prática significa que todos os Estados compravam o café paulista – e não o recebiam – cotado em libras esterlinas. Mais tarde ele poderia ser exportado ou não. Poderia ser queimado ou jogado no mar, tanto fazia.
Na lógica econômica, trata-se de um sistema colonial interno, com um sangramento da economia de todos os Estados brasileiros, que repassam seus recursos para a oligarquia do café – que em decorrência enriqueceu extraordinariamente, e se imaginou uma locomotiva puxando 20 vagões vazios.
Esse sistema durou um terço de século, e quando acabou por decreto de Vargas, em 1932, São Paulo promoveu uma guerra civil pelo retorno de seus privilégios.
O modernismo, a Semana de 22, é a manifestação, no plano artístico, da mentalidade do Convênio de Taubaté – e mesmo Oswald denunciou isso. A política do café e o movimento modernista veem São Paulo como uma entidade capaz de sintetizar o país como um todo, de dar ao Brasil uma lógica histórica que lhe falta e um projeto realista.
JU – Mas parece que, em vez de ser uma síntese, São Paulo se define em oposição ao país como um todo.
Berriel – É o que está na obra de Paulo Prado. Toda essa absurda ficção historiográfica, que não tem pé nem cabeça, que instala os bandeirantes como construtores do Brasil, por exemplo, faz parte de um discurso que preside o ano de 1922. Isso está na lógica fundante do Museu do Ipiranga, também de 1922.
Paulo Prado é o maior produtor e exportador de café do mundo, e ao mesmo tempo a consciência mais lúcida e ousada da oligarquia. E ele é o grande organizador da Semana de Arte Moderna, e sabemos disso pelo depoimento do Oswald, do Mário, de Menotti del Picchia, da Tarsila do Amaral: ele é o cara.
JU – E qual a teoria dele sobre São Paulo e o Brasil?
Berriel – É uma teoria de que existiriam no Brasil duas mestiçagens distintas. Ele elimina a ideia de raça pura, o que não existe mesmo, ele não cai nessa. Então, no Brasil existiriam duas mestiçagens, ligadas à história de Portugal. Aliás, quando se diz que o modernismo foi uma ruptura com a herança portuguesa, na verdade é o oposto: acho que nada, na cultura brasileira, foi mais ligado a Portugal do que o modernismo.
JU – Qual é essa influência portuguesa?
Berriel – Há uma teoria, que vem da chamada Geração de 70 – o grupo do historiador Oliveira Martins, de Eça de Queirós, de Ramalho Ortigão – de que Portugal contou com uma raça heroica que promoveu as navegações, os descobrimentos, e essa raça heroica vai até 1580, que é quando Portugal cai sob o domínio espanhol. Queda da qual não se recuperará jamais, e a partir dela a raça portuguesa entra em decomposição, em decadência.
Então é uma teoria também de base racial, segundo a qual há uma raça portuguesa que degenera, de modo que o português depois de 1580 é um decadente, degenerado e inútil. Paulo Prado absorve essa teoria, que vem de Antero de Quental, que vem de Oliveira Martins – este aliás é a grande referência dele, sob vários aspectos.
Ao mesmo tempo em que Paulo Prado descobre Oliveira Martins, com quem ele convive em Paris na casa do tio, Eduardo Prado, acontece o chamado Ultimatum inglês, em 1889. Na época, Angola e Moçambique formavam um território contínuo de possessão portuguesa. Quando é descoberto ouro no Transvaal, no meio do caminho entre Angola e Moçambique, a Inglaterra ordena que Portugal se retire, e é obedecida: Portugal entrega o território.
Aquilo foi uma crise tremenda em Portugal, e foi, por coincidência, o momento em que Paulo Prado chegava a Paris para morar com o tio na casa frequentada por Oliveira Martins, pelo Eça de Queirós e muitos outros. No mesmo mês, acontecem várias coisas: a queda do império no Brasil, o rei de Portugal morre, vem o Ultimatum, Paulo Prado está chegando a Paris e há a coroação do novo rei de Portugal, que assume um país desmoralizado.
O novo rei, íntimo da Geração de 70, chama Oliveira Martins para reorganizar as colônias, a política colonial. E é esse historiador e essa preocupação que captam o interesse de Paulo Prado: uma teoria sobre colônias. O modernismo paulista começa a nascer a partir de uma teoria do reordenamento das colônias de Portugal.
JU – E a ideia da raça heroica portuguesa, com as duas mestiçagens no Brasil?
Berriel – Paulo Prado observa que São Paulo é o único local que não foi fundado no litoral, mas no planalto, “protegido” do contato exterior pela Serra do Mar. E quem funda São Paulo são os portugueses de antes de 1580, a dita raça heroica. Daí por diante São Paulo fica inacessível aos portugueses da decadência pós 1580.
Ao resto do Brasil, sem a barreira da Serra do Mar, os portugueses apodrecidos chegaram também. E acabam sendo maioria. Então, no Brasil forma-se um amálgama racial com o elemento apodrecido do português pós-1580, com a depravação do escravo negro e a lascívia do índio. Isso então gera o brasileiro, que não serve para nada. É um horror. E é o que explica, na teoria dele, por que o Brasil é a calamidade que é.
São Paulo, ao contrário, vai ser o resultado de outra mescla racial, em que não comparece o negro. E o índio, em São Paulo, inexplicavelmente não é lascivo. O índio que se mistura ao português heroico, gerando o paulista, é alguém que tem o perfeito domínio da natureza e do território. Possibilitando, portanto, o surgimento do bandeirante, que é o português que mantém o espírito das navegações (agora terrestres ou fluviais), e que ao mesmo tempo tem o domínio do ambiente natural, trazido pelo índio.
Essa construção, bastante – digamos – poética e livre de Paulo Prado, serve como diagnóstico que é lido com respeito por muita gente, lido como verdade.
Paulo Prado chega a dizer que o paulista já é uma raça. Então, temos no Brasil uma raça superior e uma raça inferior. E o Estado brasileiro deveria seguir essa lógica. Esse paulista é o único capaz de produzir uma arte autêntica – a modernista –, enquanto o brasileiro rasteja no romantismo, no parnasianismo, etc.
JU – Essa ideia de excepcionalismo paulista é algo que se vê ainda hoje, não? É uma ideia que nasce com Paulo Prado, ou ele foi apenas um vetor?
Berriel – Essa ilusão, essa ideologia, vinha sendo constituída em simultaneidade com o crescimento da importância do café na economia brasileira. Paulo Prado transforma essas ideias num movimento artístico, com a Semana de 22. Quando o café se torna importante, o Brasil já é um sistema político organizado na Corte, no Rio de Janeiro. São Paulo tem uma luta contínua – política, econômica e cultural – para romper com a síntese cultural e política consubstanciada no Rio de Janeiro.
O modernismo é, digamos assim, um sistema cultural em formação que se dispõe contra o sistema cultural dominante até então. Consubstanciado no Rio de Janeiro, na Academia Brasileira de Letras, na Corte, na capital do Império e da República.
O modernismo, quando desautoriza esse sistema, joga no ridículo toda a literatura anterior. Na verdade o que temos é uma disputa de hegemonias. O modernismo luta pela transferência da hegemonia política, cultural e econômica do Rio para São Paulo. É um movimento indissociável da política, portanto, e a desautorização das formas estéticas e literárias dominantes é a outra face da desautorização do sistema político brasileiro, em que todas as províncias possuíam direitos equivalentes.
Dizer que a poesia de Olavo Bilac ou de Coelho Neto não tem qualidade é uma estupidez, como Mário reconhecerá mais tarde. Eliminar, ridicularizar o simbolismo, ou o parnasianismo, como eles fizeram, na verdade é um momento da disputa pela hegemonia política.
A ação iconoclasta dos modernistas buscava cortar os vínculos nacionais com a sua própria tradição, já acumulada. O Brasil não deveria mais se reconhecer pela tradição cultural já constituída, mas seria necessário refundar o país a partir da experiência exclusivamente paulista. Este é o sentido mais profundo da Semana.
JU – Retrato do Brasil faz um diagnóstico dos problemas brasileiros que parece muito atual: corrupção, incompetência, ineficiência… Paulo Prado acertou o problema, mas errou a causa?
Berriel – Parece que esse livro, de repente, ficou muito atual. Esse rol de queixas, muito justas aliás, você vai encontrar em todos os lugares e em todas as épocas, e não só no Brasil. A questão é: se o projeto político modernista tivesse sido vitorioso, os problemas seriam resolvidos? Esse projeto, segundo o que sugere o Retrato do Brasil, passaria pelo fim da igualdade jurídica entre os Estados, e mesmo entre os cidadãos. Um Estado baseado no privilégio racial é eficiente e competente? Seria a solução para os problemas elencados?
Aventou-se o controle da movimentação dos indivíduos, sendo cogitado inclusive o uso de passaportes internos. Os nordestinos não poderiam vir para São Paulo livremente, por exemplo. Isso, no fundo, é o apartheid como o que se implantou na África do Sul. E no fundo, isso não é o sonho inconfessado da direita brasileira? Mas o apartheid resolveu algum problema de corrupção no mundo? O Convênio de Taubaté não seria a mãe de todas as corrupções brasileiras?
JU – Essas questões parecem fazer parte de uma pauta conservadora…
Berriel – Toda vez que a direita paulista se sente um pouco acuada, bate sempre na mesma tecla: a revolução de 32. O que foi a revolução de 32? Havia o Convênio de Taubaté. O país faliu por causa do crack da bolsa de Nova York em 29. São Paulo continua a cobrar este Convênio, sendo que o Brasil produzia café que não tinha mais consumidor.
Mesmo com o sistema internacional falido, a oligarquia cafeicultora quer que o Estado brasileiro mantenha a compra do café, com ou sem comprador internacional. Getúlio anuncia que em 32 não vai mais manter o acordo e dissolve o Convênio de Taubaté.
E aí a oligarquia de São Paulo se levanta pelo respeito “à Constituição”. Que Constituição? Agora, tem todo o discurso ideológico: São Paulo se levanta contra a ditadura de Vargas. Mário de Andrade, Paulo Prado e Alcântara Machado fundam a Revista Nova, que incita à luta armada contra Vargas. Por quê?
Porque de repente “os paulistas”, isto é, os barões do café, se tomaram de amores pela Constituição? Não. Foi pelo Convênio de Taubaté. Estava esfacelado o projeto de São Paulo metrópole de um Brasil colônia. O país estava se desmantelando por causa de uma oligarquia racista, reacionária e – não há como negar — modernista.
JU – Mesmo levando em conta as particularidades de cada autor, pode-se dizer que, de modo geral, o modernismo paulista abraça essa visão de São Paulo grande, bandeirante, condutora da nação?
Berriel – Sim. Mário de Andrade mesmo escreve uma carta a Manuel Bandeira em 1932 onde diz: “eu não sou mais brasileiro, sou paulista”. Mas, em 1942, Mário fez uma grande autocrítica e denuncia os salões da aristocracia como corruptora do movimento. Muito corajoso e lúcido.
JU – Mas isso é curioso, porque a esquerda brasileira abraçou os modernistas. Ou não?
Berriel – Em grande parte, sim. Isso mostra que a esquerda precisa construir sua própria interpretação do Brasil, e não aceitar uma interpretação do país que vem do núcleo da reação. Esse é um dos problemas da esquerda brasileira: ela precisa interpretar o Brasil não só no plano econômico, ou através da história dos partidos políticos, mas precisa entrar na representação simbólica da identidade nacional.
A esquerda brasileira raramente considera relevante a vida literária e artística, e acaba, por decorrência, endossando concepções da direita que nasceram na literatura e nas artes. O importante não é tanto ler os comentadores – como eu mesmo –, mas ler os próprios autores.
Foi o que procurei fazer aqui: estudei o modernismo sem considerar os intérpretes do modernismo, mesmo tendo-os lido. Para que pudesse chegar ao texto. Porque senão eu seria atravancado por essa coisa que o modernismo virou no beabá das escolas, aquelas frases, como “a Semana de Arte Moderna ocorre no ano em que se fundou o Partido Comunista no Brasil”. É verdade.
E não tem nada a ver uma coisa com a outra. Eu poderia dizer, da mesma forma, que a Semana de Arte Moderna ocorreu no mesmo mês em que Mussolini tomou o poder na Itália. É verdade? É. Você tira o que quiser daí, inclusive significados vazios. E perde o país.
JU – E as consequências reais do modernismo paulista para a literatura brasileira: foi tudo isso mesmo que se vende? Ou o pessoal que estava começando a escrever no Nordeste teria feito a mesma coisa sem a Semana?
Berriel – Não teria feito a menor diferença. Para os escritores do Nordeste não faria a menor diferença ter ou não ter existido a Semana. Por outro lado, por exemplo, Carlos Drummond de Andrade: mineiro, vem de outra tradição, ele foi sim influenciado pelo Mário de Andrade. Manuel Bandeira, não, Manuel Bandeira já estava pronto.
Na Semana de Arte Moderna ele já era um poeta consagrado, toda a herança dele vem do simbolismo, de outros autores. Mas há alguma influência, sim, principalmente do Mário de Andrade, que é um grande escritor, um dos maiores do Brasil.
Quando a gente vai direto aos autores, aos textos, não a interpretações prévias, mas deixa o autor falar, podemos chegar a coisas surpreendentes.
Acho que esse é um programa extremamente interessante, que pode reabrir o cânone literário brasileiro. Reabrir, estudar de novo essas coisas, porque não está funcionando mais a ideia da centralidade da Semana de 22. Há muito tempo não está funcionando mais.
JU – A ideia de que a literatura brasileira estava engessada em beletrismo vazio e aí os modernistas chegaram chutando a porta é um mito?
Berriel – Isso é um mito. E Lima Barreto, e Euclides da Cunha? É muito fácil ridicularizar um escritor, assim como é fácil improvisar um poeta futurista: junta-se um pouco de aeroplano, um torpedo, acrescenta-se uma xícara de onomatopeia de máquina, vruum, zazzz… e você tem um poeta futurista, quentinho.
Mas esse é um procedimento ilegítimo, pois desse modo não se quer compreender um problema literário, mas descartá-lo, simplesmente.
Agora, tome a poesia de verdade, a literatura que existia na época: não é de se jogar fora, não. Por causa, inclusive, desse domínio do modernismo, muita obra interessante, escritores interessantes, caíram no esquecimento. Eu cito, por exemplo, o Visconde de Taunay, um escritor lidíssimo no Brasil, com uma obra muito interessante, que publicou quase 30 livros, dos quais hoje só são conhecidos dois ou três. E os livros dele não são republicados desde 22.
Ele tem um romance que foi um grande best-seller – o que não diz muita coisa, mas diz alguma coisa – chamado Ouro Sobre Azul, que foi o livro mais vendido no fim do século 19. E é um livro de qualidade. E o último romance dele, No Declínio, é um romance de inspiração simbolista extremamente interessante. O modernismo criou uma espécie de buraco negro que escondeu boa parte da literatura brasileira, e que precisa ser redescoberta.
JU – Ligando um pouco o livro com sua área de pesquisa atual, a questão das utopias. Paulo Prado tinha a visão de uma utopia paulista?
Berriel – O Paulo Prado é muito pouco “poético”, ele é muito duro. O livro dele é um ensaio sobre a tristeza brasileira. Você tem ali uma visão racista, uma visão de degradação radical do brasileiro. Ele se utiliza, para construir a sua ideia do Brasil, dos inquéritos da inquisição. Confissões extraídas na tortura, esse é o material que ele usa para dizer o que é o Brasil. Pode ser, talvez, uma distopia. É um mundo muito feio, o que ele monta.
JU – Mas as ideias dele ainda são influentes.
Berriel – Sim, e volta e meia ressurgem. Em 1964 foi assim. Você tem agora essas manifestações na Avenida Paulista, aqueles grupos mais de direita tiram do baú algumas bandeiras que foram do modernismo, impregnadas de naftalina, e as usam para combater um governo, como o da Dilma, que se assemelha muito ao de Vargas: nacionalismo econômico, ampliação do mercado interno através da distribuição de renda, empresas estatais, Estado forte. E aí você tem manifestações que tiram do baú da oligarquia as ditas velhas tradições paulistas. Mas é preciso distinguir a ideologia da oligarquia do café dos reais interesses do homem comum de São Paulo.
JU – Isso é o modernismo?
Berriel – Isso é o modernismo paulista de Paulo Prado. Cada autor deverá ser estudado em si mesmo, e as similitudes e diferenças com o pensamento de Paulo Prado naturalmente aparecerão. Só temos a ganhar com isso.

sexta-feira, 10 de março de 2017

Troca de emails entre a poetisa Ângela de Barros Montez e José Maria Dias da Cruz



Troca de emails entre a poetisa Ângela de Barros Montez e José Maria Dias da Cruz
José Maria:
Te mando meu poema novo, pra compartilhar.
Beijos, saudades, Ângela

Identidade
entro no podre passeio no escuro
me agarro ao jasmim das entranhas
mesmo o que está estragado
aqui
se foi bonito um dia
serve
porque existo no caótico e no intraduzível
porque resido no não mundo
e no acidente de ser ocidental
mesmo não sendo
assisto a cheiros existências alentos
há tanta carne e tanta luz
no chão enquanto rumo
entre os meus
que me emociono por ter a mesma pele
mesmo não tendo
ainda que meu andar seja torto
e minhas veias apontem para outro corpo
longínquo
sou semelhante
e o que eu não sei (e que é muito)
preencho com que é desfeito
descosturo o que somos nós
nos fazendo
em nossos linhos de fios
negros
sou tanto fogo que incendeio
por isso o rasgo o esquecimento
reconheço o que não entendo
enquanto caminho
passo atrito espinho
essa flor úmida com verbo e voz
e des(crio)
e todo o limo e todo o limbo
em que vivo
percebo
fazem parte da parte em que estou
− nas entranhas − de nós
no podre do outro de mim
no jasmim do chão no acorde no ouvido
e o estremecer suave delicado
de um corpo
caído
gozando
no Rio
Ângela
Li e reli e estou pensando, mas logo te direi o seguinte. Perece-ne q vc trabalha simultaneamente com as palavras imediatas e remotas. Há, naturalmente um intervalo entre elas e aí ocorre o serpenteamento, ou seja, dá vida ao poema. Ou, se vc quiser, evita que o poema morra por uma segunda vez, na medida em que, ao realizá-lo, matou por uma primeira vez. Daí estende-se à questão de vida, morte e ressurreição com um sentido metafórico, claro. Vou tentar desenvolver mais tudo isso. Mas gostei imensamente desse poema. Lindo!
Bjs
JM
Ângela
Cada releitura mais descobertas. Não especifiquei tal ou qual verso, mas o que escrevi, pouco, espero que vc me entenda. Me pareceu uma grande sacada vc trabalhar simultaneamente tanto com as palavras imediatas e com as remotas. Foi realmente uma surpresa vc pensar na morte, vida e ressurreição com tal maestria. Vou desenvolver essas pequenas observações, se vc achá-las pertinentes. Pretendo falar tbm dos contrastes. Depois até posto em meu blog se vc permitir.
Mostreio-o a minha filha e ela adorou!
Bjs
JM
Oh, José Maria, adorei sua leitura! Nunca pensei nisso! Obrigada!
Beijos, Ângela
Ângela
Que bom q tenho gostado do q pretendo desenvolver. Sobre a questão de vida, morte e ressurreição percebi na primeiro estrofe. Vou até citar um biólogo, Hanry Atlan.
"[...] a organização dos seres vivos não é estática, nem tampouco um processo que se oponha a forças e desorganização. Mas antes um processo de desorganização permanente seguida de reorganização, com o aparecimento de propriedades novas, quando a desorganização pode ser suportada e não mata o sistema. Em outras palavras, a morte do sistema faz parte da vida, não apenas por sob a forma de uma potencialidade dialética, mas como uma parte intrínseca de seu funcionamento e sua evolução: sem perturbações ao acaso, sem desorganização, não há reorganização adaptativa ao novo; sem um processo de morte controlada, não há processo de vida."
Veja, parece q vai na mosca. E tem ainda a palavra aqui, simultaneamente imediata e remota e q tambem é uma palavra de passagem que justifica o que citei acima.
entro no podre passeio no escuro
me agarro ao jasmim das entranhas
mesmo o que está estragado
aqui
se foi bonito um dia
serve
E tem outra estrofe:
e o que eu não sei (e que é muito)
preencho com que é desfeito
A partir dessa penso me referir ao enigma e citar Braque: "Em arte somente uma coisa tem valor, o que não se pode explicar."
Não sou poeta, mas tentarei escrever algo com alguma carga poética e por aí posso me apoiar em um terreno no qual me entendo menos mal, a pintura.
Assim, em cada e-mail vou desenvolvento o que seu poema me tocou, ou se vc quiser, me afetou. Acho que é por isso que gostamos de trocar idéias. Nada daquele blá blá blá acadêmico. Aliás outro dia vi um vídeo que tinha uma passagem bem interessante. e engraçada. O palestrante dizia que os acadêmicos usam o corpo somente como meio de transporte para suas respectivas cabeças. Acrescento: iluminadas por uma luz artificial. Transportam-nas para diversas conferências. Achei engraçado. Claro, não podemos generalizar.
Bjs
M
Ah, José Maria, pra mim é uma honra ter a sua leitura! Esse poema não vai entrar nesse livro que eu te mandei, vai fazer parte de um futuro. Você deve ter percebido que eu mudei de fase e de dicção. É espontâneo, você sabe.
Gostei do que você falou sobre os acadêmicos. A frase é perfeita! Geralmente, os veículos estão arruinados pelas cabeças!
Beijos, Ângela

terça-feira, 7 de março de 2017

Cores, formas e coloridos, o.s.t, 70 x 100 cm, 2017


Cores e o azul

“Para vermos o azul, olhamos para o céu. A Terra é azul para quem a olha do céu. Azul será uma cor em si, ou uma questão de distância? Ou uma questão de grande nostalgia? O inalcançável é sempre azul.”
Clarice Lispector
“Um fim de mar colore os horizontes.”
Manoel de Barros

“A Terra é azul como uma laranja.”
Éluard

domingo, 5 de março de 2017

Kátia Regina Assis Prancha de aulas do mestre.

Prancha de aulas do mestre.

Olá amigo!
Hoje almocei com a família e comentei sobre você com a minha filha que é restauradora de obras de arte e trabalhou no MAC de Niteroi. Ela disse-me que teve acesso as suas pranchas de aulas no Parque Lage e que tinha ficado impressionada não só com a beleza da sua letra mas o método que usava para explanar as aulas . Disse que tinha vontade de ficar lendo tudo e que estas pranchas já eram em si uma obra de arte. Ela, apesar de ter sido concursada, pediu demissão, alem de ser longe , pois na época morava em Niterói, havia as guerrinhas políticas. Hoje ela trabalha na Casa de Rui mas está saindo para dedicar-se  ao doutorado. Fiquei feliz com as observações dela em reconhecer a importância das teorias e métodos de aula do mestre Jm Dias da Cruz.
Um abraço

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Kátia Regina Assis

14:41 (Há 5 minutos)


quarta-feira, 1 de março de 2017

Ivan Hegen. Permanência da pintura

Permanência da pintura


Não é o bastante, para haver pintura,
que o pintor retome os pincéis. Ainda
 é necessário demonstrar que a pintura
é algo que não podemos dispensar, e que
seria loucura – ou pior, um erro histórico –
deixá-la desaparecer. (Hubert Damisch)
                 Não basta pintar uma ótima tela e colocar na parede. Em qualquer exposição panorâmica de arte contemporânea, a pertinência da pintura é irremediavelmente posta em dúvida. O próprio Greenberg, maior entusiasta da pintura moderna, criou os precedentes para a ruína dessa técnica. Por mais que a amasse, impingia-lhe critérios tão estreitos que fariam com que a pintura em pouco tempo parecesse obsoleta. Para Greenberg, a pintura deveria falar apenas sobre si mesma, sobre seus materiais, e quanto mais autoconsciente de sua forma (a começar pela planaridade), mais se afastaria de seus aspectos “literários” (referenciais). O conteúdo de uma obra de arte não poderia ser alusivo, deveria remeter à sua própria realidade material. Não demorou para que, a partir daí, os pós-modernos acusassem toda pintura de pecar pelo ilusionismo,  pois mesmo o mais austero Mondrian resguarda algo da perspectiva. Se há a sensação de que as cores quentes se aproximam do espectador e que as cores frias recuam, a planaridade não chega até as últimas consequências, tampouco a “verdade dos materiais” de uma pintura.
        
    Questões formais, portanto, tornaram a arte cada vez mais conceitual – ironicamente, para horror dos formalistas. Uma vez dado o pontapé inicial de Greenberg, os lances seguintes, nos anos 60, seriam os da pop art, do minimalismo, da arte povera, do happening, da instalação e das aproximações entre a arte e a sociologia. Por mais diversificadas que fossem tais tendências, e por mais que tenham momentos interessantes, é preciso ter em mente o ponto comum: anti-ilusionismo.  Um de seus efeitos mais incontornáveis continua sendo o xeque à pintura. Se até Mondrian, de formas tão econômicas, tem sua credibilidade ameaçada, as pinturas mais figurativas, mais “literárias”, como as da Transvanguarda Italiana dos anos 80, por exemplo, são completamente incompatíveis com o projeto anti-ilusionista. Um modelo pressupõe a derrocada do outro – não se trata de uma guerra étnica ou social, mas de uma guerra cognitiva.
          





A pintura nos convida a apreciarmos suas relações internas. Não necessariamente um tema retratado, mas principalmente a composição das linhas com as cores, a textura e a gestualidade.  Quem combate a pintura tenta condicionar o olhar para fora, para o mundo, tornando-o refratário àquelas relações. A ênfase pós-moderna é no materialismo – tanto no sentido empregado pela sociologia quanto na ênfase da “verdade dos materiais”. As duas acepções têm se combinado: por exemplo, quando os anti-ilusionistas denominam o contorno do chassi, pejorativamente, de grade, nos induzem a pensar que uma pintura nada mais é do que matéria colorida sufocada por um perímetro. Para eles, a pintura se afasta do “espaço da vida”, onde deveriam se travar as verdadeiras batalhas da arte. Perdeu-se completamente a confiança em qualquer luta no campo da sensibilidade; veem apenas um quadrilátero mistificador que pretende desviar o olhar da realidade. Cessa o poder da ilusão: a tinta é apenas um produto esparramado sobre um plano, que por sua vez é apenas lona estendida. Não haveria mais expressão em uma pintura do que em uma casual mancha na parede.

Acusa-se a arte autônoma de impor silêncio, de não se misturar a discursos mais amplos. Não pode haver acusação mais fútil contra a pintura. A começar, porque a comunicação não-verbal é tão importante quanto a comunicação verbal, e não se dá apenas com a arte mas a todos os instantes, percebamos ou não. O fato de a pintura não se deixar codificar inteiramente pelo discurso é uma vitória sua, o que, infelizmente, é esquecido em um ambiente artístico que privilegia a retórica. Traços mnemônicos que transportamos das telas para o mundo, pensamento intuitivo, e mesmo uma noção mais refinada do Real não podem ser esgotados pelas palavras, aceitem ou não os artistas conceituais mais intransigentes. Quando a pintura se coloca como alteridade, estabelece diálogos abertos, e tanto melhor que não possam ser descritos verbalmente, pois é assim que seu assunto nunca termina. A ânsia pós-moderna por esquadrinhar a arte deixou a pintura de lado justamente por sua frustração em não conseguir esgotá-la pelo discurso.

Quando, aqui e ali, um crítico pós-moderno resolve tornar Mondrian, ou qualquer outro pintor, “aceitável”,  não o faz sem dispendiosos exercícios de contorcionismo, tais como os de Yve Alain Bois. O crítico da revista October enfatiza o programa de Mondrian, que pretendia levar suas cores e formas para a arquitetura e para o design de uma nova sociedade. De fato, o pintor holandês visava um futuro utópico onde a “consciência universal” triunfaria por toda parte, não apenas na “grade”, mas isso levou Alain Bois a ver em Mondrian um destruidor da pintura, o que é no mínimo um comentário afetado. Mondrian tinha, pelo contrário, uma confiança na pintura maior do que a da maioria de nós, pois a via de maneira essencialista, onde o universal era representado. Dizia que, de todas artes, a pintura era a “menos limitada por contingências”. Mondrian tinha na pintura sua liturgia, onde estabelecia o que denominava “relações primordiais”. Equilibrava formas e cores em correspondências internas, do contrário deixaria o chassi de lado e enveredaria para a arquitetura sem pestanejar. A despeito da inteligência de Yve Alain Bois, pretender que Mondrina iria assassinar a arte é mais uma entre tantas bobagens pós-modernas. Tais bobagens costumam ser proferidas porque somente com muita distorção se fazem enxertos em um paradigma que vem se provando pequeno.

Batalha cognitiva

Se, dos anos 60 para os 70, praticamente nenhum artista intelectual acreditava que a pintura pudesse sobreviver, algo estava ocorrendo que ultrapassava as variações do modismo. O próprio Yve Alain Bois, em seus textos, passa a impressão de gostar da pintura, no entanto nunca foi tão difícil defender uma obra apenas pelo gosto pessoal. Pois se trata de uma batalha cognitiva (ver Condição cognitiva). Para que uma tela pendurada em uma exposição possa ser percebida, é preciso antes estabelecer qual a relação figura-fundo: se a obra vai se vista em sua autonomia, ou se vai ser reduzida sob o olhar materialista, que vê na pintura um objeto entre tantos outros. Se o fundo é o fundo pintado, “ilusório”, temos uma obra; se querem considerar como fundo o amplo espaço físico onde todos os objetos estão expostos, a tela recua consideravelmente, como uma simples figurinha que não tem sentido fora do álbum. Se o fundo que a retina deve considerar é do tamanho do mundo, com todas suas relações sociais e paisagens como cenário macro, aí é que uma pintura se torna mesmo diminuta, e com isso o olhar contemporâneo tem tido dificuldades para enxergá-la. Tais relações não dependem exclusivamente da vontade do pintor, pois a competição é brutal.

O minimalismo chegou muito perto de assassinar a pintura quando propôs um realinhamento do olhar. Não mais as relações internas de linhas e cores num plano pictórico, como em Kandinsky, mas as relações entre uma escultura e o complexo arquitetônico ao seu redor, ou entre a obra e o skyline de uma cidade. Do zoom in ilusionista para o zoom out de um campo expandido. Kandinsky dizia que um pequeno ponto sobre o plano de uma tela criava tensão mútua entre ambos os elementos. Uma escultura de Morris pode se apresentar como ponto mínimo a criar tensão sobre um “plano” muito maior, como o de um pavilhão inteiro do espaço expositivo. Nesta mudança de paradigma, a tela de Kandinsky enfrenta maiores dificuldades para ser vista em autonomia, já que a atenção para suas relações internas se dispersa em um plano grande demais. Se em momento histórico algum foi experiência fácil investir em experiências de imersão e de alteridade tal como uma pintura exige, quando esta compete com obras que insistem no campo expandido, a tendência é que as telas passem a ser vistas como objetos quaisquer.


                                Instação de Robert Morris na Green Gallery, 1964

Apesar das batalhas cognitivas, tivemos nos anos 80 a chamada Volta à Pintura. A essa altura, o mercado já absorvia tranquilamente a arte conceitual mais refratária, mais “antiartística”, porém não há dúvidas de que uma nova safra de pintores foi bem recebida por boa parte dos colecionadores. Para os críticos mais exigentes, porém, apesar de a pintura ter dominado a cena por toda a década de 80, ainda havia algo de pouco convincente nesta virada. A pintura reaparecia como fenômeno de mercado, em reação à arte demasiado cerebral e materialista que se vinha realizando. De modo geral, no entanto, a pintura dessa época ainda carecia de vigor. Nenhum dos obstáculos anteriores havia sido superado, nem na prática nem na teoria. A pintura ressurgia ainda mais ilusionista do que na época de Greenberg; não parecia estabelecer um diálogo dos mais intensos com a vida; não demonstrava muitas novidades técnicas ou uma poética que abrisse novos caminhos. Havia exceções, como Polke, David Salle, Luis Zerbini, Gerhard Richter e Anselm Kiefer, mais atentos ao seu tempo. No entanto, todos eles, e em especial os dois últimos, mantiveram uma postura bastante dúbia com a pintura, mantendo-a sob suspeita, sob certo desprezo. O virtuose Richter se apropriava de fotografias e descaracterizava a pintura, alegando que toda expressividade seria um engodo; ao passo que Kieffer carregava no discurso, ora sacralizando, ora demonizando a pintura. Que a inquietude e o questionamento ocorram, é fundamental, mas a neurose era tanta que a arte se ensimesmava, hipocondríaca, com sérios problemas de auto-estima.

O principal crítico a defender a pintura, nessa fase de ressurgimento, foi Achille Bonito Oliva. Apesar da tentativa, não apresentava nem um time de artistas nem argumentos convincentes o bastante para encerrar a discussão. O italiano soube dialogar com o mercado, soube se impor, e obteve simpatia ao denunciar o anti-ilusionismo como moralista e masoquista, em um momento em que seus adversários também mostravam fadiga. Porém, não foi capaz de revelar um solo epistemológico onde a pintura garantisse sua potência contra seus incansáveis detratores, e em menos de dez anos a pintura estaria novamente sob perigo de morte. Ainda hoje, aliás, somos carentes de uma teoria que situe a pintura na contemporaneidade. O mais frequente são contemporizações e pactos forçados entre alguns pintores e seus opositores, como vimos em Alain Bois.  No máximo, a pintura é tolerada, dificilmente se acredita que ela esteja à altura de nosso tempo.
Podemos admitir, um pouco a contragosto, que não foi totalmente despropositada a perda de influência da pintura nos anos 60. É difícil negar que após o expressionismo abstrato tenha havido um hiato, uma falta de novos talentos que assegurassem a vitalidade da técnica. Por mais que se goste de Olistky ou de Richard Diebenkorn, é preciso admitir que após Andy Warhol, o minimalismo e a arte conceitual, a maior parte das pinturas saia sangrando do combate. Não é à toa que Agnes Martin, pintora de uma sutileza sublime, se retrairia, se desinteressaria por todas as discussões do universo da arte, apesar de inicialmente ter sido associada ao minimalismo.  Havia uma incompatibilidade, um novo olhar que não conseguia mais fechar o foco em pintura alguma, o qual ameaçava a sensibilidade que havia até então. Vieira da Silva, mais tarde Phillipe Cognée ou Michael Raedecker podiam apresentar telas mais interessantes do que qualquer capricho anti-artístico, mas a questão insistia como um trauma: boa ou não, a arte está viva?
              
                Retomada
                Para responder, há que se considerar os problemas do outro lado do front. A obra anti-ilusionista do campo expandido requer, em algum momento, um corte, um limite, do contrário a arte engole a realidade toda. Se o campo se expande indefinidamente, o espaço da arte se equivale ao da vida, resultando em uma falsificação dos gestos cotidianos, em uma estetização total da vida. O crítico Rodrigo Naves é um dos raros a dizer expressamente que isto não poderia ser mais alienante. Com o tempo, a tendência é que outros percebam e o digam. Sob o paradigma da antiarte, somente a afirmação dos artistas e dos críticos nos faz aceitar que aquele pôr-do-sol na Iugoslávia é uma exibição de arte, que o simples copo d’água oferecido ao público é performance ou que uma inserção comercial na televisão difere das demais por ter sido feita por um artista. A pintura foi desacredita por ter a “grade” como limite; por outro lado, o limite da arte no campo expandido surge, inevitavelmente, do superego. Requer uma figura de autoridade, seja um artista ostentando o semblante do saber, seja a de um crítico abalizador. Mesmo para as incursões mais “radicais”, a mediação tem se dado principalmente pelo superego, sem o qual não se destaca uma obra de arte de seu entorno.

Como vimos, esparsos elogios ou boas telas não puderam garantir um olhar atento para a pintura, do contrário não teria durado tanto tempo sua sentença fatal. As pinturas continuarão ameaçadas de morte pelas obras com que têm dividido espaços expositivos, ao menos até se perceber o quanto a arte requer confiança na virtualidade, na ilusão. E é justamente neste ponto que a teoria pós-moderna, por mais “atenta a nosso tempo” que  busque ser, está mais distante da nossa sensibilidade do que uma boa pintura. Não se trata de corporativismo, de defesa fanática por uma técnica. Se a pintura vai sobreviver no século XXII, por exemplo, é impossível de prever. Pode ser que simplesmente não apareça mais nenhum pintor bom o bastante para torná-la vibrante. No entanto, dizer hoje que a pintura está morta não pode ser visto como a constatação de uma morte por velhice – seria um assassinato frio e sem sentido. Ainda há gente apontando-lhe a arma, mas felizmente têm uma péssima pontaria. Mais feliz será o dia em que nem precisarmos explicar o por que de a pintura estar viva. No momento, ainda é questão de autodefesa, portanto sejamos rápidos no gatilho.

Em primeiro lugar, como defesa, pode-se dizer que os limites físicos da pintura não a impedem de infinitizar-se em variações livres que não atribuem primazia ao superego. Em segundo lugar, basta que a crítica contemporânea reconheça o impacto da internet para que a morte da pintura tenha que ser repensada. O formato que se chama pejorativamente de grade não deve ser mais problemático do que o monitor de computador, onde o mundo se virtualiza porém se abre para nós. Em um espaço de poucas polegadas, são estabelecidas as mais amplas conexões e o olhar ganha um terreno amplo – podendo se abrir com mais amplitude do que o skyline que certas obras antiartísticas tomam por seu horizonte. Diferentemente de uma obra minimalista – que de concisa não tem nada, pois cobiça o espaço inteiro, todo seu entorno – o espaço da pintura se virtualiza. Estamos ainda em transição, mas não me parece coincidência que já se note nas gerações mais novas de artistas uma confiança renovada no virtualismo, de que se vale não só a internet, como todo espaço fantástico. Quanto mais a interface para a realidade virtual for desenvolvida e se mostrar instigante, menor a tendência de se reprimir a pintura em nome de relações com o espaço expandido. Muitas de nossas conexões mais proveitosas vêm se fazendo em universos paralelos, imaginados, virtualizados.

Não é tão casual que ainda hoje a arte digital tenha permanecido um tanto à parte da teoria pós-moderna ortodoxa, pois não é muito compatível com a paixão pelo zoom out, pela concretude do materialismo. Observando artistas digitais recentes, como David Sullivan, é nítido que ele recorre mais a um repertório pictórico do que ao da arte mais estritamente pós-moderna. Da mesma maneira, notamos que alguns pintores, como Udomsak Krisanamis, Julie Mehretu ou Torben Giehler, se apropriam com muita naturalidade e competência da linguagem dos computadores. Porém, não são apenas eles que nos dizem algo em plena era da informática. A bem dizer, a pintura sempre se atualizou e se virtualizou simultaneamente, fazendo coincidirem matéria e ilusão. Uma cena de Velasquez ou de Rembrandt não nos impede de admirarmos a fatura, de analisarmos o pictórico como trabalho consciente. Toda pintura tem algo de tão virtual quanto uma tela de plasma, no entanto oferece a contrapartida de sua materialidade. É este jogo que a faz tão rica e que a faz perdurar ao longo de tantas transformações históricas e tecnológicas. Sua própria obsolescência tecnológica, o artesanato com que a ilusão da pintura se constroi, será seu maior trunfo para resistir, pois nos preserva o elo entre as experiências digitais e o mundo concreto. Se, inevitavelmente, grande parte de nossas experiências se repartirá entre o virtual e o material, a pintura seguirá como uma síntese desse trânsito. As arestas da pintura deixarão de ser motivo para vergonha, por marcarem uma zona de possibilidades infinitas. Que os antiartistas reformulem seus pobres discursos, pois o futuro da pintura tende a ser longevo. Ao contrário de todas as previsões, não encontrará sua decadência em nosso tempo, mas uma nova vitalidade.