quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

O tempo, as ideias, o sujeito: um ensaio sobre o tema “opressões”

O tempo, as ideias, o sujeito: um ensaio sobre o tema “opressões”

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Há uma linha tênue entre sustentar a impraticabilidade de representar a totalidade e afirmar sua inexistência.”
(Terry Eagleton. As ilusões da Pós-modernidade)
Por Paula Farias, de Fortaleza, CE e Sonara Costa, de Niterói, RJ
Apresentação
Pós-modernidade, pós-estruturalismo, pós-marxismo, anticapitalistas, são muitas as vertentes que existem no movimento de opressões, todas vinculadas de alguma forma a correntes de pensamentos que expressam uma visão de mundo, que apresentam diferentes respostas ao combate das opressões e que travam uma batalha de morte em prol de suas estratégias.
Ao longo do século XX o acirramento da luta de classes impactou as elaborações dos intelectuais das mais variadas áreas, a ascensão das lutas identitárias longe de ser um capítulo a parte foi profundamente marcada por ela. Os debates, as conquistas e os interesses das ondas do feminismo servem de exemplo para acompanhar a coincidência entre a produção dos intelectuais e as vitórias, e derrotas, da luta de classes.
Para compreender a marginalidade do marxismo, e a origem de algumas ideologias que encontramos no movimento hoje, é preciso voltar no tempo, e relembrar algumas elaborações características das duas primeiras ondas do feminismo, e situá-las num contexto mais geral de desenvolvimento da luta de classes. O período que corresponde a terceira onda do feminismo, já com as características de um mundo pós-queda do leste merece um texto a parte.
Preâmbulo: As revoluções burguesas e a 1ª onda do feminismo.
As revoluções burguesas, e sua disputa com a Aristocracia decadente, foram as responsáveis por forjar as ideias fundantes do mundo moderno. Seus filósofos cumpriram um papel de disputa ideológica contra sua classe antagônica. As noções de liberdades individuais, controle sobre o Estado, universalidade, igualdade, verdade, racionalidade, o papel da educação e do meio ambiente na formação do ser humano etc, tiveram como efeito tangencial o questionamento de uma suposta natureza feminina.
Durante a Revolução Francesa as mulheres foram parte importante dos protestos, participando das assembleias e clubes independentes, mas, embora os limites políticos e institucionais ao desenvolvimento das mulheres, enquanto indivíduos, fossem expostos, o ideal da época – mesmo dentre àquelas mais avançadas, como Mary Wollstonecrafft – ainda era o da “maternidade republicana”, portanto, com seu trabalho subordinado ao papel de esposa e mãe. Em 1789 a participação política das mulheres foi oficialmente proibida na França, e em 1804 todas as recentes liberdades legais acerca do divórcio, filhos nascidos fora do casamento, e acesso a propriedade foram cassadas no Código civil de Napoleão. Nunca coube as mulheres na República da liberdade, igualdade e fraternidade.
A revolução industrial, e o desenvolvimento do capitalismo, transformou o papel das mulheres ao torná-las assalariadas independentes, em geral por remunerações menores, o que levou inicialmente a uma luta visceral no interior da classe, o “antifeminismo proletário”.(1) Enquanto Stuart Mill e as liberais aceitavam e promoviam a tradicional divisão sexual do trabalho, coube aos socialistas se debruçarem sobre a questão da mulher trabalhadora. Os trabalhos de Marx e Engels compreendiam a entrada da mulher nas fábricas como um fato consumado, combateram o antifeminismo proletário e a reivindicação por “salário familiar”. Também dentro da Internacional, desnaturalizaram a ideia de família, questionaram a divisão sexual do trabalho e inseriram a opressão num contexto histórico, e, portanto mutável, abrindo caminho para um real movimento de transformação social.
Revolução Russa: a disputa ideológica
Uma das mais importantes defensoras do marxismo sobre o tema da libertação das mulheres, na virada do século, foi Clara Zetkin, dirigente do Partido Social-Democrata Alemão. Zetkin opôs à bandeira do “salário familiar” a reivindicação “salário igual para trabalho igual”, e foi a primeira a reconhecer a ligação entre as diferentes estratégias feministas a diferentes classes. Seus trabalhos sobre a família foram essenciais para compreender as manifestações da opressão dentro da família da classe trabalhadora. É Zetkin quem convence a Internacional, a reconhecer o direito das mulheres ao trabalho, a necessidade da auto-organização delas dentro dos partidos, e a defesa ao voto para as mulheres. Zetkin, Lenin, Kollontai, Kruspkaya e Armand, defendem no interior do partido a necessidade de atuação específica sobre as mulheres, com políticas, organização e materiais próprios, para fazê-las avançar às ideias socialistas, incorporando-as ao movimento operário.
Mas é com a Revolução Russa de 1917 que o programa marxista de libertação das mulheres ganha materialidade. Desde o século XIX que existia um movimento de mulheres na Rússia. As feministas socialistas tinham que encarar sempre uma dupla batalha: contra o machismo dentro do movimento operário e de seus próprios partidos, e contra os setores burgueses dentro do movimento de mulheres.
O movimento avança com as organizações e publicações de mulheres, chegando ao ápice no início do século XX, especialmente entre 1905 e 1917, combinando a participação crescente em mobilizações, congressos e protestos. Temas, como igualdade de direitos, sufrágio, condições das operárias e camponesas, amor livre, casamento e divórcio, tarefas domésticas, religião; foram tratados por vozes femininas de diversas vertentes e organizações políticas distintas.
O movimento feminino era disputado, palmo a palmo. Tanto os bolcheviques quanto os mencheviques tinham jornais especiais para a mulher trabalhadora, como o Rabotnitsa, publicada pelos bolcheviques e o Golos Rabotnitsy, pelos mencheviques. Os Social-Revolucionários (SR), que lutavam por uma democracia burguesa na Rússia, por sua vez, propuseram a criação de uma “União das Organizações Democráticas de Mulheres” que reuniria os sindicatos e os partidos sob a bandeira de uma República Democrática. Surgiu a “Liga por Direitos Iguais para a Mulher” exigindo o direito ao voto para as mulheres, acompanhando a batalha que elas travavam, no mundo inteiro, por seus direitos civis. Outras organizações surgiram nessa disputa ideológica. A “Sociedade de Filantropia Recíproca”, “Sociedade Russa de Defesa das Mulheres”, “Partido Progressista das Mulheres”, “União das Mulheres” e o Jenotdiél (Departamento de Mulheres do Secretariado do Comitê Central do PCURSS, criado em 1919).
Destacam-se a “União pela Igualdade das Mulheres”, maior organização feminista da Rússia surgido após a Revolução de 1905, e a “Liga da Igualdade de Direitos das Mulheres”, responsáveis, segundo Schneider(2), por organizar a marcha das mulheres em Fevereiro de 1917. A luta por conquista de espaço e voz no movimento, nas organizações e na sociedade, foi temperando e destacando muitas mulheres na vanguarda da classe trabalhadora. Suas preocupações ligam a função da mulher a todas as amarras que foram colocadas nelas e a necessidade de romper os grilhões, participando ativamente da política.
Entre essas mulheres destacam-se Nadiédja Krupskaia, Aleksandra Kollontai e Inessa Armand, marxistas. Maria Pokróvskaia e Ariadna Tirkóva-Williams, liberais; Anna Kalmánovitch, radical; Olga Chapír, de origem camponesa. Apesar de todas serem mulheres, o programa que defendiam as separava.
Kalmánovitch, feminista judia radical, defendia (em texto de 1908, quando crescia a influência dos socialistas socialdemocratas) que as mulheres não poderiam depositar esperanças em nenhum partido (Schneider, 2017; p.35), nem mesmo nos socialdemocratas e que elas deveriam fazer como as inglesas: organizarem-se entre si e recrutar amigos em todos os partidos, onde quer que eles se encontrem. Tirkóva-Williams, escritora, jornalista, parte da terceira geração de ativistas feministas russas, foi do partido Kadete. Em 1917, após a Revolução de Fevereiro, ela fez parte da comissão que reuniu com o príncipe Lvov para reivindicar o direito das mulheres votarem na assembleia constituinte, marcada para dezembro daquele ano. A marcha de fevereiro das mulheres exigiu pão e paz e Tirkóva-Williams acreditava que o mais importante era o direito das mulheres votarem!
O debate em torno das questões das mulheres era vivo dentro das organizações e no movimento real. Existiu uma disputa ideológica e de classe antes e depois da revolução. Mas, muitas destas feministas se opuseram ao regime dos soviets e suas medidas de emancipação das mulheres. Para estas, restou o exílio após a revolução de outubro.
Em um país atrasado, em relação às questões morais e culturais, como a Rússia, com uma enorme carga de preconceitos arraigados há séculos, – o que caracteriza em geral os países predominantemente camponeses – a questão da emancipação da mulher assumia, naqueles momentos difíceis para o jovem Estado operário, contornos tão complexos quanto muitos dos outros aspectos relativos à transição para o socialismo.
Goldman (2014), partindo de um vasto e volumoso conjunto de documentos, localiza o debate sobre a questão da mulher, depois de 1917, como o novo Código da Família implementado, em 1918, com vistas a conduzir uma transição entre a situação de profunda opressão e desigualdade de gênero e a libertação e autoafirmação feminina.
A autora, citada acima, visualiza, na Revolução, um momento de superação do antifeminismo nas classes e organizações proletárias. Isso porque a construção do Estado Operário representou um avanço da agenda feminista para a época, talvez o mais importante da modernidade, dada sua radicalidade e alcance, envolvendo a vida popular em mudanças profundas na estrutura, em valores e em hábitos sociais.
A aprovação do direito ao divórcio, o fim do princípio da ilegitimidade para reconhecimento dos filhos e da pensão alimentícia, a legalização do aborto, o pressuposto do papel do Estado na criação e educação infantil, a garantia de lavanderias e restaurantes públicos e populares foram medidas deste período. A revolução socialista na Rússia, em 1917, significou uma mudança também na situação da mulher no mundo inteiro. Pela primeira vez, um país legislava a favor da igualdade entre homens e mulheres.  A mulher russa tomou parte ativa em todo o processo revolucionário, apesar (e, quem sabe, por isso mesmo) da enorme carga de opressão, secular e brutal, que pesava sobre os ombros femininos, sobretudo entre as mulheres camponesas. As medidas tomadas pelos bolcheviques, nos primeiros anos, para emancipar as mulheres eram as mesmas que as mulheres socialistas do restante do mundo levaram décadas reivindicando em seus próprios países.
As mulheres no campo, por outro lado, submetiam-se ao Código de Terras, aprovado em 1922, que outorgava às mulheres camponesas, pela primeira vez na história, a igualdade no acesso à terra, à propriedade, o direito de deixar a família, se assim o desejasse e à participação nas decisões comunais; mesmo que isso fosse difícil de ser realizado na prática.  Ainda assim, o Partido estimulava as mulheres a fazer parte do governo local para que suas reivindicações pudessem ser ouvidas. Krupskaia (2017) dedica vários escritos sobre a questão da agitação e propaganda entre as camponesas como forma de avançar na luta ideológica contra as seitas religiosas que utilizavam diversas táticas para atrair fiéis às suas igrejas. Vários escritos e discursos de Lenin (1980) dedicam-se ao desenvolvimento e fortalecimento das medidas do jovem Estado Operário para ganhar as camponesas.
A experiência bolchevique, partindo das concepções marxistas sobre a emancipação da mulher e seu papel na luta pelo socialismo, foi transformada em teses e resoluções durante o terceiro Congresso da III Internacional Comunista, reunido em 1921. Esse evento histórico para o movimento socialista mundial traçou um programa e uma orientação para o trabalho entre as mulheres que, por sua clareza e concordância com os princípios do marxismo, até hoje não foram superados por nenhuma outra organização operária.
Goldman (2014), em seu estudo, apresenta as contradições e dificuldades vividas no processo de estabilização das condições de vida das mulheres na Rússia: à medida que o isolamento internacional do processo soviético se prolonga no tempo, em que a crise e os embargos econômicos trazem a fome e pobreza para largas parcelas da população, as mulheres e crianças são as primeiras atingidas pelo desemprego, pela miséria extrema e pela prostituição. Para estes setores a marginalidade social volta a ser uma realidade, com milhares de jovens consumidos pela fome, doenças e pela alienação extrema em relação à vida social e ao trabalho, nas cidades e no interior.
A introdução da Nova Política Econômica (NEP), em 1921, teve um impacto na vida das mulheres. Na prática, os dados do período e os relatos nos encontros e congressos soviéticos mostram que o fechamento de creches, restaurantes e lavanderias, bem como as demissões em massa entre os operários, efeitos da liberalização dos mercados de produtores agrícolas e urbanos, afetou imediatamente e principalmente as mulheres.
Nas cidades, o desemprego, a prostituição e o aumento da população de rua foram os efeitos mais visíveis; no campo, a dificuldade em fazer triunfar as novas leis sobre a família, mais favoráveis às mulheres, em contradição à sobrevivência em muitos aspectos da família patriarcal, dificultava a edificação da independência e autonomia das mulheres camponesas.
Apesar de todas as dificuldades, os anos 1920 foram de luta para garantir as conquistas revolucionárias que haviam mudado profundamente a vida das trabalhadoras e trabalhadores. Estes avanços perdem força e passam a regredir, a partir dos anos 1930, com a ascensão da política stalinista, sendo a proibição do aborto em 1936 (que era legalizado desde 1920), um marco importante.
As perseguições e expurgos políticos passaram a combinar com o processo de burocratização estatal e o que havia sido executado, como recuo momentâneo na economia da região, passa a vigorar de maneira permanente. O Jenotdiél é dissolvido, os centros que promoviam os encontros e congressos de mulheres foram desarticulados paulatinamente, gerando o “fim do movimento proletário feminino”. A III Internacional também é dissolvida e, dessa forma, as resoluções de seus congressos engavetadas.
No marco de uma reversão política e ideológica, a política stalinista, no que toca às conquistas das mulheres e ao direito familiar, passa a ser aplicada de acordo com uma nova agenda, explícita no Edito da Família de 1944. Este Edito da Família retira o reconhecimento do casamento de fato, proíbe julgamentos pela paternidade, reestabelece a categoria de ilegitimidade e transfere o divórcio novamente aos tribunais. Esta orientação tinha, como objetivo, “poupar o homem e sua família legal dos choques financeiros e emocionais” resultante do divórcio ou julgamento de paternidade. Era, portanto, a derrota das disposições revolucionárias que passaram a vigorar a partir de 1918.
A política stalinista atuou para derrotar definitivamente a luta das mulheres, restabelecendo seu papel reprodutivo como algo “natural”, fazendo com que “socialismo” e “libertação” das mulheres fossem confundidos com a vocação para o trabalho doméstico e a maternidade inevitável.
A reversão imposta pelo regime stalinista constituiu uma ruptura com uma tradição secular de pensamento e práticas revolucionárias. E dessa forma a batalha das ideias ganha panos novos em remendo de roupas velhas.
A primeira onda do feminismo corresponde a todo esse período, é, portanto, a mais longa. Inicia-se ainda no século XIX e decorre até o início do século XX. Restringe-se a luta contra o “direito” masculino sobre as mulheres, contra casamentos arranjados, pelo direito ao divórcio, à educação, pela igualdade de direitos entre homens e mulheres, e por fim, à disputa em torno a participação política.
É fundamentalmente uma luta em torno à igualdade. Todas essas reivindicações foram atendidas em primeiro lugar na Rússia revolucionária. Depois o capitalismo incorporou parcialmente as reivindicações nos países centrais. Não à toa o estalinismo, e a política da terceira internacional, privilegiam medidas que rompam a ligação entre o movimento de mulheres e o movimento operário. Com a tomada do poder pelos sovietes, em outubro de 1917, a questão da mulher enfrentou o duro embate com a realidade. Pela primeira vez na história, passou-se do plano da discussão para a prática.
Do Pós-Guerra a pós-modernidade.
As guerras mundiais reordenaram o mundo do ponto de vista político e econômico. Após o fim da II Guerra Mundial foi necessário promover a reconstrução dos países destruídos. Foi posto em vigor o Plano Marshall, uma aplicação de vultosas quantias de dinheiro que permitiram um boom econômico na Europa e EUA, por duas décadas consecutivas e que financiaram o estado de bem-estar social (welfare state) nos países centrais e a concessão sucessiva de direitos ao proletariado das grandes potências.
A existência da União Soviética pressionava a burguesia internacional, toda a segunda metade do século XX passa pela polarização entre EUA e União Soviética, no que se chamou de Guerra Fria. O acordo mútuo de não agressão militar resultou numa coexistência tensa, onde o estalinismo agiu para enterrar todos os ascensos revolucionários do período, bem como, mantendo seu domínio sobre o Leste Europeu, e os EUA. Ao mesmo tempo em que garantia seu desenvolvimento econômico, cooptava o proletariado dos países centrais, promovia golpes militares preventivos nos países subdesenvolvidos, e punha em prática uma duríssima guerra ideológica contra o Socialismo.
Os anos 1960 marcam o fim do crescimento econômico, e abertura de um ciclo de crise na década de 1970 que, com a queda na taxa de lucro, atinge o welfare state, a social-democracia, e o Estado Keynesiano. Se por um lado vemos retomadas as lutas contra o imperialismo, contra o poder institucionalizado, contra o autoritarismo, e de crítica à vida cotidiana, o ascenso da luta de setores oprimidos; de outro a burguesia inicia um projeto de reestruturação produtiva e ataques a direitos.
A derrota do maio de 1968, da greve dos mineiros ingleses, e o fim do Leste permitiu que uma burguesia vitoriosa aprofundasse seus ataques, acarretando a cristalização dos debates em torno ao fim da história, e das alternativas políticas, e o nascimento de um novo tempo “pós-moderno”.
Ruptura Pós-moderna: Lyotard e o combate ao Marxismo.
No final dos anos 1960 torna-se comum denúncia dos ideais do Iluminismo e uma recusa obstinada a qualquer projeto que buscasse a libertação da humanidade. Desconfia-se do conhecimento científico, e se valoriza “outros saberes”. Os conceitos de verdade, razão, objetividade, progresso e universalidade são profundamente questionados. O mundo passa a ser visto como caótico, instável, fragmentário, imprevisível, inextrincável. Para este pensamento se há verdade universal ela não pode ser alcançada. Às metanarrativas – teorias de explicação totalizantes – é contraposto os “jogos de linguagem”.
Ihab Hassan ilustra a tendência do período que tem como alvo primordial o marxismo. Para Hassan “esquerda e direita, base e superestrutura, produção e reprodução, materialismo e idealismo são inúteis, a não ser para perpetuar o preconceito”.(3)
Porém, aquele que dá a contribuição definitiva, conferindo ao termo “pós-modernidade” legitimidade, é François Lyotard.
Em 1973, em “Derive a partir de Marx et Freud”, Lyotard escreve “a razão já está no poder com o capital. Queremos destruir o capital não porque não é racional, mas porque é. A razão e o poder são uma coisa só. Não há no capitalismo, nenhuma dialética que o leve a sua superação e sucessão pelo socialismo: está agora claro para todos que o socialismo é idêntico ao capitalismo”. Em “Economie libidinale” (1974) ele diz “que a representação é desejo; que a encenação, em uma gaiola, na prisão, na fábrica, na família, é desejada. Essa dominação e exclusão são desejadas”.
Em 1979, em “A condição pós-moderna”, obra em que ele anuncia uma mudança geral na condição humana, definindo:
“pós-moderna” a incredulidade em relação aos metarrelatos. É, sem dúvida, um efeito do progresso das ciências; (…) A função narrativa perde seus atores (functeurs), os grandes heróis, os grandes perigos, e a grande narrativa. Ela se dispersa em nuvens de elementos de linguagem narrativos, mas também denotativos, prescritivos, descritivos etc., cada um veiculando consigo validades pragmáticas sui generis.
Lyotard anuncia desta forma a dispersão do poder em múltiplos jogos de linguagem, dentro dos quais o sujeito se movimenta, não tendo as instituições o monopólio da legitimação e limitação dela. Busca-se subverter a própria linguagem, fonte criadora de instituições, que tendo sua origem em jogos de linguagem, se fragmentam em determinismos locais. Em 1982 ele apresenta a tese do Capitalismo como representação, o resultado da infinitude da vontade humana, que não pode ser circunscrita às classes sociais.
Sua obra sofre mudanças a cada revés da conjuntura, e continua em mutação ao longo da década de 1990, ele migra de uma posição de apoio às lutas estudantis no maio de 1968 para a negação do proletariado como sujeito revolucionário – substituído inicialmente pelas juventudes – até a deserção do projeto socialista, celebrando o fim da pretensão por um projeto coletivo de emancipação humana.
A fragmentação das lutas e a 2ª onda do feminismo.
A segunda onda do feminismo ocorre quando já começou o declínio do movimento contra a guerra do Vietnan, do movimento estudantil e concomitante a perseguição brutal ao movimento Black Power. As referências teóricas do movimento feminista estavam de acordo com o espírito da época e toma o caminho, de certa forma, oposto ao da primeira onda. Abre-se um período de novas investigações em busca da origem da opressão e as consequências da “diferença”.
Simone de Beauvoir chama a atenção para a construção social da mulher como o outro do homem, o ‘tornar-se’. A limitação da liberdade da mulher sendo historicamente justificadas pelo seu papel reprodutivo. Para ela era importante a reafirmação da mulher como uma “alteridade autônoma”, se referenciado em si mesmas, e por meio dos próprios desejos, elas reescreveriam suas histórias de um ponto de vista individual.
Algumas autoras questionam o projeto de emancipação baseado na igualdade, visto como um projeto falocêntrico, pois, escondido atrás de um conceito pretensamente universal de indivíduo, estaria o homem apenas. As organizações e métodos da classe foram decretados insuficientes para abarcarem as reivindicações política e pessoal – que ganha nova importância -, específicas das mulheres. O direito à participação política alcançado nos anos anteriores não teria levado a superação das relações de poder entre os sexos, de onde se segue análises sobre a natureza patriarcal das estruturas e sua criação dos estereótipos existentes. As experiências machistas experimentadas por mulheres que se incorporavam aos diversos movimentos do ascenso anterior – estudantil, pelos direitos civis, contra a guerra –, bem como a política dos PC’s, provocaram uma resposta extrema de ruptura do feminismo com o restante do movimento, dando origem ao feminismo radical.
A prática do separatismo nos EUA não coincidiu apenas como divórcio das organizações mistas do movimento estudantil e operário, mas também com as da própria classe operária e, por conseguinte, das mulheres da classe. O novo feminismo radical difundia-se essencialmente entre a pequena burguesia intelectualizada e as classes médias, através do nascimento de uma miríade de pequenos grupos que, na maioria dos casos, se dedicaram à prática da autoconsciência. De facto, o centro de gravidade tinha-se deslocado para o percurso necessário para reconhecer e, logo, liberta-se dos condicionantes masculinos mais profundamente enraizados para a análise das próprias relações pessoais, familiares, sexuais a partir da convicção de que a emancipação e a transformação pessoal eram o pressuposto para uma mudança generalizada”.(4)
O sexo e a sexualidade foram alçados à centralidade da organização social, em substituição à classe, conformando um movimento em separado. As feministas radicais defenderam que a contradição primeira da sociedade é a divisão sexual e que seria impossível a unificação da luta com os homens, pois embora exista distinções econômicas, o patriarcado seria um sistema autônomo e separado do capitalismo.
Em “Sisterhood is powerfull”, um conjunto de ensaios, Robin Morgan, defende a necessidade de feminismo radical, a partir da análise da discriminação das mulheres por parte dos homens da esquerda, e o sexismo no local de trabalho, sendo àquele a origem de todas as formas de opressão. Sua proposta é conformação de uma irmandade universal entre as mulheres. Nestes ensaios também figura Kate millet, a autora defendeu:
a redistribuição da riqueza, que era o objetivo do socialismo (e que teve até repercussões nos países capitalistas), e, finalmente, as grandes alterações efetuadas pela Revolução Industrial e pelo surto da tecnologia, não tiveram, e até certo ponto não têm hoje, senão um efeito marginal e contingente na vida daquela maioria da população constituída por mulheres. O conhecimento deste caso deve chamar-nos a atenção para o facto de que as distinções sociais e políticas não estão baseadas na riqueza ou na posição social, mas no sexo. Porque é evidente que a base da nossa civilização é o patriarcado (5)
A majoritariedade do feminismo radical não impediu que, na década de 70, houvesse tentativas de relacionar classe e gênero. Porém, mesmo dentre aquelas que reconheciam tal ligação, havia divergências. O feminismo materialista teve como um de seus expoentes Christine Delphy. No seu panfleto “the main enemy”, Delphy ao mesmo tempo que critica a política levada a cabo pelos PC’s, reivindica o marxismo como método de análise. No entanto, ela apresenta uma leitura própria da família, como um local de exploração econômica das mulheres. O trabalho doméstico produziria valor que seria apropriado por outros, que não a mulher que o produziu. A apropriação desse trabalho se daria pelo chefe da família, a  mulher, nesta visão, é explorada pelo homem.
A existência de dois modos de produção em nossa sociedade é estabelecida: (1) a maioria dos produtos são produzios no modo industrial; (2) serviços domésticos, criação dos filhos e certo número de mercadorias são produzidos no modo familiar. O primeiro modo de produção dá origem à exploração capitalista. O segundo dá origem a familiar ou, mais precisamente, a exploração patriarcal.(6)
Para Delphy o casamento é uma relação de produção, e as mulheres conformariam uma só classe. As implicações políticas da ideia de Delphy, que seriam os homens àqueles a se beneficiarem da exclusão das mulheres, ficam nítidas na sua comparação das burguesas com os escravos, “é tão preciso dizer que as esposas dos homens burgueses são burguesas quanto dizer que o escravo de um dono de plantação é ele próprio proprietário de plantação.”, não seriam elas inimigas, pois estariam fora do processo produtivo. A falsa consciência de classe que as mulheres pertenceriam antes à classe referente ao modo de produção capitalista, do que a classe da produção patriarcal, deveria ser combatida.
Numa direção diversa estava o feminismo da diferença ou French Feminism. Os textos de Julia Kristeva e Luce Irigaray – no terreno da psicanálise, de crítica à idéia da inveja e ausência do pênis como símbolo de poder, autoridade e exclusão – inspirarão Adriana Cavarero a defenderem que a necessidade de uma nova ordem simbólica, livre da linguagem excludente masculina que se estende aos diferentes discursos.
Neste período toma fôlego as críticas ao próprio feminismo por mulheres negras e lésbicas, acusando-o de uma visão excessivamente branca e heterossexual que não explicava as situações de opressão vivenciadas por elas. Ocorre a explosão do multiculturalismo e a inversão do universal pelo local. Suas elaborações
transformou os “produtores” culturais em “consumidores” culturais, transtornou as identidades em meras diferenças textuais, discursivas; exaltou os valores , as experiências e mesmo as opiniões dos grupos subordinados, assumindo que eram em si mesmos progressistas, e que surgiam diretamente da experiência de subordinação. Os estudos sobre a vida cotidiana são a expressão acadêmica, por exemplo, da concepção de “dar voz” aos oprimidos, pois essa voz, ao ter sido silenciada mediante os mecanismos da opressão, da subordinação e da exclusão dos discursos dominantes é, em si mesma, autêntica por definição. (Pão e Rosas. Andrea D’atri. Pg 131)
Um só sistema, um só sujeito.
A questão das opressões apareceu em diferentes momentos da História, e então novas facetas foram demonstradas. Inúmeras teorias tentaram analisar e apresentar saídas às diversas formas de marginalização. Surgiram propostas diversas, cada qual ligada a uma visão de mundo: coletivização do cuidado das crianças entre as mulheres da comunidade, círculos de conscientização feminina, acesso à cidadania, conformação de coletivos, luta pelo poder, reformulação da linguagem etc. Algumas dessas saídas, de uma forma ou outra, ainda podem ser vistas no movimento.
A capacidade de influência do marxismo sobre a vanguarda da luta contra as opressões esteve intimamente ligada a uma conjuntura mais geral, que impunha uma correlação de forças mais ou menos favorável, sobre o conjunto da classe trabalhadora.
Além disso, as traições do estalinismo, bem como seu legado teórico, foram um verdadeiro desserviço para a classe, especialmente para os oprimidos, deixando uma herança maldita contra a qual temos que lutar e nos diferenciar. Esta visão disseminou várias ideologias no interior do movimento, corroborando para a fragmentação atual: o economicismo, o etapismo, a ideia de que a luta contra as opressões divide a classe etc.
Marx e Engels buscaram compreender o impacto do capitalismo sobre o conjunto das relações sociais. Desde o princípio buscaram demonstrar que a forma como os indivíduos compreendem o mundo são limitadas e determinadas por fatores alheios a sua vontade e fora do seu controle. A história, a economia, e a sociedade moldam o meio dentro do qual os homens reproduzem a vida. A consciência média é limitada pela concorrência que os indivíduos são obrigados a promover para vender sua força de trabalho, isolando e colocando os trabalhadores uns contra os outros. Essa consciência média só pode dar saltos quando os indivíduos são obrigados a se mover como uma só classe, na luta contra outra classe, só desta maneira a classe trabalhadora se livra do atraso herdado.  
No cotidiano a classe trabalhadora está sujeita a um bombardeio ideológico que a segue em todos os espaços de convívio social – seja na escola, no trabalho, na igreja, no terreiro, no bar, no shopping – jogando uns contra os outros.
Ao longo da História, algumas teorias buscaram realçar as diferenças existentes no interior da classe, e demonstrá-las como “provas” da existência de divisões originárias, fruto da coexistência de sistemas autônomos, paralelos ao capitalismo. Nesta visão, o patriarcado configuraria sistema de relações sociais anterior ao capitalismo, com causas próprias, dentro do qual há aqueles que se beneficiam da opressão e àqueles que sofrem com ela, concluindo daí que as mulheres seriam os sujeitos da luta contra esses sistemas. A classe aqui se reduz aos aspectos econômicos.
Em Marx, o capitalismo é uma totalidade onde produção e reprodução se articula, não sendo possível reduzi-lo apenas a economia. Esta articulação não é obvia e se dá de diversas maneiras de modo que o central, a sustentação do modo de produção capitalista, seja preservado. Um exemplo: ao mesmo tempo que @s negr@s são a grande maioria dos desempregados, mantidos a margem do mercado de trabalho ou restritos ao subemprego, é possível haver a incorporação no âmbito do consumo, seja pela difusão de elementos culturais “exóticos”, seja através da negociação de produtos específicos para pele negra e cabelos cacheados.
A teoria unitária, proposta por Cinzia Arruzza, busca justamente compreender as relações de dominação, exploração e alienação como um todo articulado e contraditório. As formas de reprodução social – aqui incluídas desde o trabalho doméstico e cuidado com idosos até a sexualidade – são resultados de contextos históricos e lutas feministas que impactam a divisão sexual do trabalho e as políticas do Estado.
O sistema capitalista é entendido não como um sistema estritamente econômico, mas como uma relação social, um processo de reprodução social por meio de produção de mercadorias, que transforma a organização social ininterruptamente. Sua natureza imperialista o capacita a englobar todos os aspectos da vida social, destruindo e criando novos desejos e necessidades, se esgueirando nos diversos espaços.
A profundidade desse enraizamento não pode ser totalmente superada de um só golpe, mesmo Trotsky reconhecia esse fato. Em “Questões do modo de vida” ele adverte sobre as dificuldades enfrentadas pelo Estado Soviético no que dizia respeito a superação dos hábitos herdados do passado,  a mudança nas relações familiares, no cotidiano e na cultura se mostraram ainda mais difíceis que as transformações econômicas, após a tomada do poder.
A nossa vida é totalmente contraditória tanto no plano econômico como no cultural. (…) podemos com frequência realçar contrastes psíquicos no interior de um mesmo indivíduo, de uma mesma consciência. (…) Deve-se isso ao fato de que os diferentes campos da consciência não se transforma e não evoluem paralela e simultaneamente. Deparamo-nos aqui também com um arranjo peculiar. O psiquismo é flagrantemente conservador; na consciência só se transforma os elementos diretamente submetidos às exigências da vida. (…)seria injusto pensar que a confusão e a desorganização reinem unicamente na produção ou no aparelho do Estado. Não; há que se confessar, agem também sobre as mentalidades, em que se combinam convicções de vanguarda sinceras e refletidas, com estados de humor, hábitos e opiniões diretamente herdados de Dmostroj.
Para Trotsky nivelar os diferentes níveis de consciência na classe era uma tarefa colocada para a revolução, que não seria resolvida apenas pela educação escolar. Uma vez que há uma relação complexa entre consciência e modo de vida será preciso combater a questão de diversas maneiras. A tomada do poder seria uma passo essencial, apenas o primeiro, na construção de outra organização social.
Notas:
1- A queda dos salários provocou a organização dos homens contra a entrada da mulher nas fábricas, sindicatos chegaram a se organizar em torno da bandeira do “salário familiar”.
2- SCHNEIDER, Graziela (Org.). A revolução das mulheres. Emancipação feminina na Rússia Soviética. Artigos, atas, panfletos, ensaios. São Paulo, Boitempo Editorial, 2017.
3- As origens da Pós- modernidade. Perry Anderson. Pg 27
4- Feminismo e Marxismo: Entre casamentos e divorcios. Cinzia Arruza. Pg 78.
5- A política dos Sexos. Kate Millett, pg 14.
6- The main enemy. Christine Delphy. In Feminist Issues/Summer 1980. Pg 33.
Referências
ANDERSON, Perry. Os primórdios da Pós-Modernidade.
ARRUZA, Cinzia. Feminismo e Marxismo: Entre casamentos e divórcios.
_____________. Considerações sobre gênero: reabrindo o debate sobre patriarcado e/ou capitalismo.
D´ATRI, Andrea. Identidade de gênero e antagonismo de classe no capitalismo.
EAGLETON, Terry. As ilusões da pós-modernidade.
GOLDMAN, Wendy. Mulher, Estado e Revolução. São Paulo, Boitempo Editoral, Edições Iskra, 2014.
HARVEY, David. Condição pós-moderna.
LENIN, V. I. Sobre a emancipação da mulher. São Paulo, Editora Alfa-Omega, 1980.
LYOTARD, Jean François. A condição pós-moderna.
KRUPSKAIA, Nadiédja. A trabalhadora e a religião. In: SCHNEIDER, Graziela (Org.). A revolução das mulheres. Emancipação feminina na Rússia Soviética. Artigos, atas, panfletos, ensaios. São Paulo, Boitempo Editorial, 2017.
SCHNEIDER, Graziela (Org.). A revolução das mulheres. Emancipação feminina na Rússia Soviética. Artigos, atas, panfletos, ensaios. São Paulo, Boitempo Editorial, 2017.
https://filosinsentido.files.wordpress.com/2013/06/32335564-economia-libidinal-jean-francois-lyotard.pdf

domingo, 11 de junho de 2017

A estrutura subjacente do suporte . Michael Palmer



Um suporte retangular tem uma estrutura subjacente formada por suas diagonais, e passando pelo ponto central, o eixo vertical e a horizontal. Considerando essa estrutura Matisse afirma: Se tenho uma folha de papel com uma dimensão dada, farei um desenho que tenha uma relação necessária com seu formato.
No esboço para um quadro nessa assemblage as duas formas à esquerda e à direita criam uma desarmonia em relação àquela estrutura. subjacente. Entre elas um colorido no qual se manifesta o cinza sempiterno que harmoniza o espaço plástico criado. O eixo vertical se instabiliza ou cria um serpenteamento,, uma margem de uma imagem ou o limite instável de um corpo. Miguel Ângelo sobre esse limite q ele é no finito.  
Cito um poema de Michael Palmer e aqui enfatizo os versos:
No zero das ruas e das janelas
Um braço na geometria
De um nada ou zero potencializado um fato plástico é criado. O vir a ser de uma geometria é criada, ou seja, a possibilidade de um espaço, forma e cores.
Braque diz que explicar uma coisa e substituir a coisa pela explicação. Contentei.me, então, em apenas traduzir  para a linguagem plástica esse instigante poema de Michael Palmer
José Maria Dias da Cruz, Florianópolis, 2017


segunda-feira, 20 de março de 2017

Carlos Berriel: A origem da “superioridade racial” dos paulistas



Carlos Berriel: A origem da “superioridade racial” dos paulistas

06 de agosto de 2013 às 21h16


Planalto garantiu “preservação” dos paulistas contra invasão, pensava Paulo Prado
Da ficção historiográfica ao paulista
 como ‘raça superior’
por Carlos Orsi, no Jornal da Unicamp, sugerido por Ana Cláudia Romano Ribeiro, no Facebook
A Semana de Arte Moderna de 1922 foi, no plano ideológico, a iniciativa de uma “oligarquia racista, reacionária e ao mesmo tempo modernista”, para servir aos interesses de classe da elite cafeicultora e a um projeto de hegemonia paulista, que via o Brasil como uma colônia a ser explorada pela metrópole de Piratininga.
Mesmo autores como Mário de Andrade foram próximos a esse projeto, cuja justificativa é construída no livro Retrato do Brasil, de Paulo Prado, cafeicultor, historiador e grande mecenas da Semana de 22. Isso é o que afirma o professor do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp Carlos Berriel, autor de Tietê, Tejo, Sena: a obra de Paulo Prado, livro sobre a trajetória e a obra de Prado.
Publicado originalmente em 2000, o livro, nascido de uma tese de doutorado defendida em 1994, foi relançado neste ano, em edição revista e ampliada, pela Editora Unicamp.
Em entrevista ao Jornal da Unicamp, Berriel falou não apenas sobre a trajetória intelectual de Paulo Prado e a influência de seu pensamento, mas também sobre a necessidade de se rever o lugar do modernismo paulista no cânone da literatura brasileira.
A festa de lançamento do livro, em Campinas, acontece no próximo dia 15, no Empório do Nono, em Barão Geraldo, a partir de 18 horas.
Abaixo, os principais trechos da entrevista, na qual o autor defende também a ideia de que o modernismo paulista sofreu influências inclusive da visão colonialista desenvolvida por intelectuais portugueses no fim do século 19.
Jornal da Unicamp – O senso comum sobre a Semana de Arte Moderna de 22 diz que os artistas de vanguarda engabelaram a elite do café, fazendo os barões pagarem por um espetáculo que eles não entendiam e que, no fundo, os afrontava. Seu livro indica que não foi bem isso… No fim, quem estava usando quem? Os artistas usaram os cafeicultores, ou vice-versa?
Carlos Berriel – Acho que o enfoque correto não é esse. O modernismo paulista é a estética da elite do café, é praticamente a sua visão de mundo. Não se trata de dois partidos que, com consciência limitada, andaram juntos durante um tempo. Isso não é verdade. A tese que defendo, nesse livro, é muito mais ampla: o meu trabalho avalia o modernismo do ponto de vista da sua gênese enquanto consciência de classe social, enquanto projeto político. É um estudo de consciência de classe. A classe de origem do modernismo paulista é a do baronato cafeicultor.
JU – Mas tem a questão do Oswald de Andrade, que depois virou comunista…
Berriel – Oswald de Andrade se separa do núcleo duro do modernismo, do grupo do café, de 28 para 29. Aliás, ele não se separou, ele foi expulso desse grupo porque, como editor da Revista de Antropofagia, permitiu que fosse publicado um artigo tratando, de forma muito desrespeitosa, o Retrato do Brasil, o livro de Paulo Prado que tinha acabado de sair. E Oswald tem uma origem de classe um pouco diferente.
Embora o lado materno seja sim, da aristocracia do café, o pai era um empresário moderno, que foi quem instalou o sistema de bonde em São Paulo e quem urbanizou o que hoje são os Jardins. Mas mesmo sendo membro do Partido Comunista, Oswald manteve sua teoria da Antropofagia, que é modernista.
Mas nós não podemos falar do modernismo como uma coisa unívoca – cada caso é um caso, cada obra existe em si mesma e tem sua razão própria. No fundo, cada autor e dada obra possuem um percurso diferente. E também é importante considerar que existe o modernismo paulista, e existem as letras modernas, que não são a mesma coisa. O modernismo é moderno, mas nem todos os modernos são modernistas.
Há a tendência, de uma historiografia marcada pelo próprio modernismo, de trazer para as águas do modernismo autores e obras que não têm nada a ver com esse movimento, como por exemplo Graciliano Ramos, José Lins do Rêgo e outros. Então, existem as letras modernas em Minas, no Rio de Janeiro, no Nordeste, etc., e existe o modernismo paulista, que são coisas diferentes. Essa distinção é essencial, e sua ausência é muito danosa para a compreensão da época.
JU – Em uma das notas de seu livro aparece José Lins do Rêgo, reclamando dos modernistas paulistas.
Berriel – Ele dizia: nós do Nordeste não temos nada a ver com isso. E ele é super hostil ao movimento. Graciliano Ramos não chega a escrever sobre isso, mas pelo depoimento de pessoas que foram muito próximas a ele sabemos que a sua opinião de que o modernismo paulista era a pior possível.
Acho que é fundamental tomar autor por autor e ler o que cada um escreveu, e não o que nós achamos que eles disseram. Meu livro busca manter a disciplina de ler exatamente o que o autor disse, exatamente o que ele está dizendo.
Procurei evitar – e espero ter conseguido – acrescentar qualquer coisa minha, a favor ou contra. Procurei manter uma disciplina de objetividade diante do que o texto efetivamente diz. Quis apenas colocar o discurso em pé: ele disse isso. Quais os pressupostos? São esses aqui, conforme está na obra. Foi uma coisa muito difícil, mas não se pode fugir dessa prática.
JU – Algo que chama muito a atenção na obra de Paulo Prado é a questão do racismo, ou racialismo, que em certos pontos me fez lembrar das polêmicas recentes em torno da obra de Monteiro Lobato. Essa questão de raça era uma coisa muito forte na cultura paulista daquela época?
Berriel – As teorias raciais eram uma coisa muito forte da época, e não apenas no Brasil. O final do Império, a libertação dos escravos, ainda era uma coisa recente…
No Brasil temos a tradição de que classe social é raça, que vem do problema da escravidão. E é algo de que não se livra do dia para a noite. E já que estamos falando da elite rural, eles eram ex-escravocratas, e o fato de alguns serem abolicionistas não implicava necessariamente que não fossem racistas. Isso é uma coisa muito presente na cultura brasileira, e aquele foi um período no qual o Brasil ia buscar as suas teorias, os seus arcabouços teóricos, no exterior. Foi comum, nessa época, ir buscar as teorias raciais e trazê-las para cá – teorias que depois deram no que deram.
Para sermos justos com esses autores, precisamos lembrar que nem Paulo Prado, nem Monteiro Lobato ou qualquer outra pessoa, sabia que daí viriam os campos de concentração, por exemplo. Eles não sabiam nem tinham como saber. Então, não podem ser responsabilizados por uma coisa que ainda viria a ocorrer. Porém, eles beberam da mesma fonte teórica do racismo “científico”, e isso precisa ser levado em consideração.
JU – Qual o propósito de se trazer essas ideias ao Brasil?
Berriel – Há um sentido muito prático: o que é que está em jogo no Brasil? Aqui se constituiu, desde a proclamação da República – principalmente na chamada República Velha –, a hegemonia de um setor econômico sobre o conjunto do país. Ou seja, a oligarquia do café, que monopolizava o Estado através da política do café-com-leite, transformou o Brasil em um sistema caudatário de São Paulo, através do chamado Convênio de Taubaté, de 1906, que instituiu no país um sistema semicolonial, em que São Paulo age como metrópole e o resto do Brasil submete-se como colônia.
O sistema funcionava da seguinte forma: São Paulo poderia produzir quanto café quisesse, pois o Estado brasileiro compraria, através de um empréstimo internacional a ser pago com as finanças de toda a nação.
Na prática significa que todos os Estados compravam o café paulista – e não o recebiam – cotado em libras esterlinas. Mais tarde ele poderia ser exportado ou não. Poderia ser queimado ou jogado no mar, tanto fazia.
Na lógica econômica, trata-se de um sistema colonial interno, com um sangramento da economia de todos os Estados brasileiros, que repassam seus recursos para a oligarquia do café – que em decorrência enriqueceu extraordinariamente, e se imaginou uma locomotiva puxando 20 vagões vazios.
Esse sistema durou um terço de século, e quando acabou por decreto de Vargas, em 1932, São Paulo promoveu uma guerra civil pelo retorno de seus privilégios.
O modernismo, a Semana de 22, é a manifestação, no plano artístico, da mentalidade do Convênio de Taubaté – e mesmo Oswald denunciou isso. A política do café e o movimento modernista veem São Paulo como uma entidade capaz de sintetizar o país como um todo, de dar ao Brasil uma lógica histórica que lhe falta e um projeto realista.
JU – Mas parece que, em vez de ser uma síntese, São Paulo se define em oposição ao país como um todo.
Berriel – É o que está na obra de Paulo Prado. Toda essa absurda ficção historiográfica, que não tem pé nem cabeça, que instala os bandeirantes como construtores do Brasil, por exemplo, faz parte de um discurso que preside o ano de 1922. Isso está na lógica fundante do Museu do Ipiranga, também de 1922.
Paulo Prado é o maior produtor e exportador de café do mundo, e ao mesmo tempo a consciência mais lúcida e ousada da oligarquia. E ele é o grande organizador da Semana de Arte Moderna, e sabemos disso pelo depoimento do Oswald, do Mário, de Menotti del Picchia, da Tarsila do Amaral: ele é o cara.
JU – E qual a teoria dele sobre São Paulo e o Brasil?
Berriel – É uma teoria de que existiriam no Brasil duas mestiçagens distintas. Ele elimina a ideia de raça pura, o que não existe mesmo, ele não cai nessa. Então, no Brasil existiriam duas mestiçagens, ligadas à história de Portugal. Aliás, quando se diz que o modernismo foi uma ruptura com a herança portuguesa, na verdade é o oposto: acho que nada, na cultura brasileira, foi mais ligado a Portugal do que o modernismo.
JU – Qual é essa influência portuguesa?
Berriel – Há uma teoria, que vem da chamada Geração de 70 – o grupo do historiador Oliveira Martins, de Eça de Queirós, de Ramalho Ortigão – de que Portugal contou com uma raça heroica que promoveu as navegações, os descobrimentos, e essa raça heroica vai até 1580, que é quando Portugal cai sob o domínio espanhol. Queda da qual não se recuperará jamais, e a partir dela a raça portuguesa entra em decomposição, em decadência.
Então é uma teoria também de base racial, segundo a qual há uma raça portuguesa que degenera, de modo que o português depois de 1580 é um decadente, degenerado e inútil. Paulo Prado absorve essa teoria, que vem de Antero de Quental, que vem de Oliveira Martins – este aliás é a grande referência dele, sob vários aspectos.
Ao mesmo tempo em que Paulo Prado descobre Oliveira Martins, com quem ele convive em Paris na casa do tio, Eduardo Prado, acontece o chamado Ultimatum inglês, em 1889. Na época, Angola e Moçambique formavam um território contínuo de possessão portuguesa. Quando é descoberto ouro no Transvaal, no meio do caminho entre Angola e Moçambique, a Inglaterra ordena que Portugal se retire, e é obedecida: Portugal entrega o território.
Aquilo foi uma crise tremenda em Portugal, e foi, por coincidência, o momento em que Paulo Prado chegava a Paris para morar com o tio na casa frequentada por Oliveira Martins, pelo Eça de Queirós e muitos outros. No mesmo mês, acontecem várias coisas: a queda do império no Brasil, o rei de Portugal morre, vem o Ultimatum, Paulo Prado está chegando a Paris e há a coroação do novo rei de Portugal, que assume um país desmoralizado.
O novo rei, íntimo da Geração de 70, chama Oliveira Martins para reorganizar as colônias, a política colonial. E é esse historiador e essa preocupação que captam o interesse de Paulo Prado: uma teoria sobre colônias. O modernismo paulista começa a nascer a partir de uma teoria do reordenamento das colônias de Portugal.
JU – E a ideia da raça heroica portuguesa, com as duas mestiçagens no Brasil?
Berriel – Paulo Prado observa que São Paulo é o único local que não foi fundado no litoral, mas no planalto, “protegido” do contato exterior pela Serra do Mar. E quem funda São Paulo são os portugueses de antes de 1580, a dita raça heroica. Daí por diante São Paulo fica inacessível aos portugueses da decadência pós 1580.
Ao resto do Brasil, sem a barreira da Serra do Mar, os portugueses apodrecidos chegaram também. E acabam sendo maioria. Então, no Brasil forma-se um amálgama racial com o elemento apodrecido do português pós-1580, com a depravação do escravo negro e a lascívia do índio. Isso então gera o brasileiro, que não serve para nada. É um horror. E é o que explica, na teoria dele, por que o Brasil é a calamidade que é.
São Paulo, ao contrário, vai ser o resultado de outra mescla racial, em que não comparece o negro. E o índio, em São Paulo, inexplicavelmente não é lascivo. O índio que se mistura ao português heroico, gerando o paulista, é alguém que tem o perfeito domínio da natureza e do território. Possibilitando, portanto, o surgimento do bandeirante, que é o português que mantém o espírito das navegações (agora terrestres ou fluviais), e que ao mesmo tempo tem o domínio do ambiente natural, trazido pelo índio.
Essa construção, bastante – digamos – poética e livre de Paulo Prado, serve como diagnóstico que é lido com respeito por muita gente, lido como verdade.
Paulo Prado chega a dizer que o paulista já é uma raça. Então, temos no Brasil uma raça superior e uma raça inferior. E o Estado brasileiro deveria seguir essa lógica. Esse paulista é o único capaz de produzir uma arte autêntica – a modernista –, enquanto o brasileiro rasteja no romantismo, no parnasianismo, etc.
JU – Essa ideia de excepcionalismo paulista é algo que se vê ainda hoje, não? É uma ideia que nasce com Paulo Prado, ou ele foi apenas um vetor?
Berriel – Essa ilusão, essa ideologia, vinha sendo constituída em simultaneidade com o crescimento da importância do café na economia brasileira. Paulo Prado transforma essas ideias num movimento artístico, com a Semana de 22. Quando o café se torna importante, o Brasil já é um sistema político organizado na Corte, no Rio de Janeiro. São Paulo tem uma luta contínua – política, econômica e cultural – para romper com a síntese cultural e política consubstanciada no Rio de Janeiro.
O modernismo é, digamos assim, um sistema cultural em formação que se dispõe contra o sistema cultural dominante até então. Consubstanciado no Rio de Janeiro, na Academia Brasileira de Letras, na Corte, na capital do Império e da República.
O modernismo, quando desautoriza esse sistema, joga no ridículo toda a literatura anterior. Na verdade o que temos é uma disputa de hegemonias. O modernismo luta pela transferência da hegemonia política, cultural e econômica do Rio para São Paulo. É um movimento indissociável da política, portanto, e a desautorização das formas estéticas e literárias dominantes é a outra face da desautorização do sistema político brasileiro, em que todas as províncias possuíam direitos equivalentes.
Dizer que a poesia de Olavo Bilac ou de Coelho Neto não tem qualidade é uma estupidez, como Mário reconhecerá mais tarde. Eliminar, ridicularizar o simbolismo, ou o parnasianismo, como eles fizeram, na verdade é um momento da disputa pela hegemonia política.
A ação iconoclasta dos modernistas buscava cortar os vínculos nacionais com a sua própria tradição, já acumulada. O Brasil não deveria mais se reconhecer pela tradição cultural já constituída, mas seria necessário refundar o país a partir da experiência exclusivamente paulista. Este é o sentido mais profundo da Semana.
JU – Retrato do Brasil faz um diagnóstico dos problemas brasileiros que parece muito atual: corrupção, incompetência, ineficiência… Paulo Prado acertou o problema, mas errou a causa?
Berriel – Parece que esse livro, de repente, ficou muito atual. Esse rol de queixas, muito justas aliás, você vai encontrar em todos os lugares e em todas as épocas, e não só no Brasil. A questão é: se o projeto político modernista tivesse sido vitorioso, os problemas seriam resolvidos? Esse projeto, segundo o que sugere o Retrato do Brasil, passaria pelo fim da igualdade jurídica entre os Estados, e mesmo entre os cidadãos. Um Estado baseado no privilégio racial é eficiente e competente? Seria a solução para os problemas elencados?
Aventou-se o controle da movimentação dos indivíduos, sendo cogitado inclusive o uso de passaportes internos. Os nordestinos não poderiam vir para São Paulo livremente, por exemplo. Isso, no fundo, é o apartheid como o que se implantou na África do Sul. E no fundo, isso não é o sonho inconfessado da direita brasileira? Mas o apartheid resolveu algum problema de corrupção no mundo? O Convênio de Taubaté não seria a mãe de todas as corrupções brasileiras?
JU – Essas questões parecem fazer parte de uma pauta conservadora…
Berriel – Toda vez que a direita paulista se sente um pouco acuada, bate sempre na mesma tecla: a revolução de 32. O que foi a revolução de 32? Havia o Convênio de Taubaté. O país faliu por causa do crack da bolsa de Nova York em 29. São Paulo continua a cobrar este Convênio, sendo que o Brasil produzia café que não tinha mais consumidor.
Mesmo com o sistema internacional falido, a oligarquia cafeicultora quer que o Estado brasileiro mantenha a compra do café, com ou sem comprador internacional. Getúlio anuncia que em 32 não vai mais manter o acordo e dissolve o Convênio de Taubaté.
E aí a oligarquia de São Paulo se levanta pelo respeito “à Constituição”. Que Constituição? Agora, tem todo o discurso ideológico: São Paulo se levanta contra a ditadura de Vargas. Mário de Andrade, Paulo Prado e Alcântara Machado fundam a Revista Nova, que incita à luta armada contra Vargas. Por quê?
Porque de repente “os paulistas”, isto é, os barões do café, se tomaram de amores pela Constituição? Não. Foi pelo Convênio de Taubaté. Estava esfacelado o projeto de São Paulo metrópole de um Brasil colônia. O país estava se desmantelando por causa de uma oligarquia racista, reacionária e – não há como negar — modernista.
JU – Mesmo levando em conta as particularidades de cada autor, pode-se dizer que, de modo geral, o modernismo paulista abraça essa visão de São Paulo grande, bandeirante, condutora da nação?
Berriel – Sim. Mário de Andrade mesmo escreve uma carta a Manuel Bandeira em 1932 onde diz: “eu não sou mais brasileiro, sou paulista”. Mas, em 1942, Mário fez uma grande autocrítica e denuncia os salões da aristocracia como corruptora do movimento. Muito corajoso e lúcido.
JU – Mas isso é curioso, porque a esquerda brasileira abraçou os modernistas. Ou não?
Berriel – Em grande parte, sim. Isso mostra que a esquerda precisa construir sua própria interpretação do Brasil, e não aceitar uma interpretação do país que vem do núcleo da reação. Esse é um dos problemas da esquerda brasileira: ela precisa interpretar o Brasil não só no plano econômico, ou através da história dos partidos políticos, mas precisa entrar na representação simbólica da identidade nacional.
A esquerda brasileira raramente considera relevante a vida literária e artística, e acaba, por decorrência, endossando concepções da direita que nasceram na literatura e nas artes. O importante não é tanto ler os comentadores – como eu mesmo –, mas ler os próprios autores.
Foi o que procurei fazer aqui: estudei o modernismo sem considerar os intérpretes do modernismo, mesmo tendo-os lido. Para que pudesse chegar ao texto. Porque senão eu seria atravancado por essa coisa que o modernismo virou no beabá das escolas, aquelas frases, como “a Semana de Arte Moderna ocorre no ano em que se fundou o Partido Comunista no Brasil”. É verdade.
E não tem nada a ver uma coisa com a outra. Eu poderia dizer, da mesma forma, que a Semana de Arte Moderna ocorreu no mesmo mês em que Mussolini tomou o poder na Itália. É verdade? É. Você tira o que quiser daí, inclusive significados vazios. E perde o país.
JU – E as consequências reais do modernismo paulista para a literatura brasileira: foi tudo isso mesmo que se vende? Ou o pessoal que estava começando a escrever no Nordeste teria feito a mesma coisa sem a Semana?
Berriel – Não teria feito a menor diferença. Para os escritores do Nordeste não faria a menor diferença ter ou não ter existido a Semana. Por outro lado, por exemplo, Carlos Drummond de Andrade: mineiro, vem de outra tradição, ele foi sim influenciado pelo Mário de Andrade. Manuel Bandeira, não, Manuel Bandeira já estava pronto.
Na Semana de Arte Moderna ele já era um poeta consagrado, toda a herança dele vem do simbolismo, de outros autores. Mas há alguma influência, sim, principalmente do Mário de Andrade, que é um grande escritor, um dos maiores do Brasil.
Quando a gente vai direto aos autores, aos textos, não a interpretações prévias, mas deixa o autor falar, podemos chegar a coisas surpreendentes.
Acho que esse é um programa extremamente interessante, que pode reabrir o cânone literário brasileiro. Reabrir, estudar de novo essas coisas, porque não está funcionando mais a ideia da centralidade da Semana de 22. Há muito tempo não está funcionando mais.
JU – A ideia de que a literatura brasileira estava engessada em beletrismo vazio e aí os modernistas chegaram chutando a porta é um mito?
Berriel – Isso é um mito. E Lima Barreto, e Euclides da Cunha? É muito fácil ridicularizar um escritor, assim como é fácil improvisar um poeta futurista: junta-se um pouco de aeroplano, um torpedo, acrescenta-se uma xícara de onomatopeia de máquina, vruum, zazzz… e você tem um poeta futurista, quentinho.
Mas esse é um procedimento ilegítimo, pois desse modo não se quer compreender um problema literário, mas descartá-lo, simplesmente.
Agora, tome a poesia de verdade, a literatura que existia na época: não é de se jogar fora, não. Por causa, inclusive, desse domínio do modernismo, muita obra interessante, escritores interessantes, caíram no esquecimento. Eu cito, por exemplo, o Visconde de Taunay, um escritor lidíssimo no Brasil, com uma obra muito interessante, que publicou quase 30 livros, dos quais hoje só são conhecidos dois ou três. E os livros dele não são republicados desde 22.
Ele tem um romance que foi um grande best-seller – o que não diz muita coisa, mas diz alguma coisa – chamado Ouro Sobre Azul, que foi o livro mais vendido no fim do século 19. E é um livro de qualidade. E o último romance dele, No Declínio, é um romance de inspiração simbolista extremamente interessante. O modernismo criou uma espécie de buraco negro que escondeu boa parte da literatura brasileira, e que precisa ser redescoberta.
JU – Ligando um pouco o livro com sua área de pesquisa atual, a questão das utopias. Paulo Prado tinha a visão de uma utopia paulista?
Berriel – O Paulo Prado é muito pouco “poético”, ele é muito duro. O livro dele é um ensaio sobre a tristeza brasileira. Você tem ali uma visão racista, uma visão de degradação radical do brasileiro. Ele se utiliza, para construir a sua ideia do Brasil, dos inquéritos da inquisição. Confissões extraídas na tortura, esse é o material que ele usa para dizer o que é o Brasil. Pode ser, talvez, uma distopia. É um mundo muito feio, o que ele monta.
JU – Mas as ideias dele ainda são influentes.
Berriel – Sim, e volta e meia ressurgem. Em 1964 foi assim. Você tem agora essas manifestações na Avenida Paulista, aqueles grupos mais de direita tiram do baú algumas bandeiras que foram do modernismo, impregnadas de naftalina, e as usam para combater um governo, como o da Dilma, que se assemelha muito ao de Vargas: nacionalismo econômico, ampliação do mercado interno através da distribuição de renda, empresas estatais, Estado forte. E aí você tem manifestações que tiram do baú da oligarquia as ditas velhas tradições paulistas. Mas é preciso distinguir a ideologia da oligarquia do café dos reais interesses do homem comum de São Paulo.
JU – Isso é o modernismo?
Berriel – Isso é o modernismo paulista de Paulo Prado. Cada autor deverá ser estudado em si mesmo, e as similitudes e diferenças com o pensamento de Paulo Prado naturalmente aparecerão. Só temos a ganhar com isso.

sexta-feira, 10 de março de 2017

Troca de emails entre a poetisa Ângela de Barros Montez e José Maria Dias da Cruz



Troca de emails entre a poetisa Ângela de Barros Montez e José Maria Dias da Cruz
José Maria:
Te mando meu poema novo, pra compartilhar.
Beijos, saudades, Ângela

Identidade
entro no podre passeio no escuro
me agarro ao jasmim das entranhas
mesmo o que está estragado
aqui
se foi bonito um dia
serve
porque existo no caótico e no intraduzível
porque resido no não mundo
e no acidente de ser ocidental
mesmo não sendo
assisto a cheiros existências alentos
há tanta carne e tanta luz
no chão enquanto rumo
entre os meus
que me emociono por ter a mesma pele
mesmo não tendo
ainda que meu andar seja torto
e minhas veias apontem para outro corpo
longínquo
sou semelhante
e o que eu não sei (e que é muito)
preencho com que é desfeito
descosturo o que somos nós
nos fazendo
em nossos linhos de fios
negros
sou tanto fogo que incendeio
por isso o rasgo o esquecimento
reconheço o que não entendo
enquanto caminho
passo atrito espinho
essa flor úmida com verbo e voz
e des(crio)
e todo o limo e todo o limbo
em que vivo
percebo
fazem parte da parte em que estou
− nas entranhas − de nós
no podre do outro de mim
no jasmim do chão no acorde no ouvido
e o estremecer suave delicado
de um corpo
caído
gozando
no Rio
Ângela
Li e reli e estou pensando, mas logo te direi o seguinte. Perece-ne q vc trabalha simultaneamente com as palavras imediatas e remotas. Há, naturalmente um intervalo entre elas e aí ocorre o serpenteamento, ou seja, dá vida ao poema. Ou, se vc quiser, evita que o poema morra por uma segunda vez, na medida em que, ao realizá-lo, matou por uma primeira vez. Daí estende-se à questão de vida, morte e ressurreição com um sentido metafórico, claro. Vou tentar desenvolver mais tudo isso. Mas gostei imensamente desse poema. Lindo!
Bjs
JM
Ângela
Cada releitura mais descobertas. Não especifiquei tal ou qual verso, mas o que escrevi, pouco, espero que vc me entenda. Me pareceu uma grande sacada vc trabalhar simultaneamente tanto com as palavras imediatas e com as remotas. Foi realmente uma surpresa vc pensar na morte, vida e ressurreição com tal maestria. Vou desenvolver essas pequenas observações, se vc achá-las pertinentes. Pretendo falar tbm dos contrastes. Depois até posto em meu blog se vc permitir.
Mostreio-o a minha filha e ela adorou!
Bjs
JM
Oh, José Maria, adorei sua leitura! Nunca pensei nisso! Obrigada!
Beijos, Ângela
Ângela
Que bom q tenho gostado do q pretendo desenvolver. Sobre a questão de vida, morte e ressurreição percebi na primeiro estrofe. Vou até citar um biólogo, Hanry Atlan.
"[...] a organização dos seres vivos não é estática, nem tampouco um processo que se oponha a forças e desorganização. Mas antes um processo de desorganização permanente seguida de reorganização, com o aparecimento de propriedades novas, quando a desorganização pode ser suportada e não mata o sistema. Em outras palavras, a morte do sistema faz parte da vida, não apenas por sob a forma de uma potencialidade dialética, mas como uma parte intrínseca de seu funcionamento e sua evolução: sem perturbações ao acaso, sem desorganização, não há reorganização adaptativa ao novo; sem um processo de morte controlada, não há processo de vida."
Veja, parece q vai na mosca. E tem ainda a palavra aqui, simultaneamente imediata e remota e q tambem é uma palavra de passagem que justifica o que citei acima.
entro no podre passeio no escuro
me agarro ao jasmim das entranhas
mesmo o que está estragado
aqui
se foi bonito um dia
serve
E tem outra estrofe:
e o que eu não sei (e que é muito)
preencho com que é desfeito
A partir dessa penso me referir ao enigma e citar Braque: "Em arte somente uma coisa tem valor, o que não se pode explicar."
Não sou poeta, mas tentarei escrever algo com alguma carga poética e por aí posso me apoiar em um terreno no qual me entendo menos mal, a pintura.
Assim, em cada e-mail vou desenvolvento o que seu poema me tocou, ou se vc quiser, me afetou. Acho que é por isso que gostamos de trocar idéias. Nada daquele blá blá blá acadêmico. Aliás outro dia vi um vídeo que tinha uma passagem bem interessante. e engraçada. O palestrante dizia que os acadêmicos usam o corpo somente como meio de transporte para suas respectivas cabeças. Acrescento: iluminadas por uma luz artificial. Transportam-nas para diversas conferências. Achei engraçado. Claro, não podemos generalizar.
Bjs
M
Ah, José Maria, pra mim é uma honra ter a sua leitura! Esse poema não vai entrar nesse livro que eu te mandei, vai fazer parte de um futuro. Você deve ter percebido que eu mudei de fase e de dicção. É espontâneo, você sabe.
Gostei do que você falou sobre os acadêmicos. A frase é perfeita! Geralmente, os veículos estão arruinados pelas cabeças!
Beijos, Ângela