segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Francisco Marcelo Cabral

“Perdemos nosso amigo. Cabruxa partiu há meia hora”. Vindo do Rio, o telefonema da última quarta-feira, 20 de agosto, era da poeta Lina Tâmega Peixoto, e a notícia – embora esperada, mas não tão cedo – me deixou a nocaute. Cabruxa era como Lina denominava o seu, o nosso grande amigo, o poeta Francisco Marcelo Cabral, que eu aprendi desde a juventude a chamar de Chico-Chiquinho Cabral. Eu estivera no Rio até a véspera, gravando uma entrevista para TV e, naquele momento, já me encontrava em Cataguases, envolvido com um projeto que precisava enviar para Belo Horizonte até sexta-feira. Parei tudo. Minha mulher, a Patrícia, encontrava-se em uma audiência no Fórum. Esperei que ela voltasse, ainda meio sem saber o que fazer. Já era final de tarde, eu ainda meio a nocaute. Patrícia sugeriu que seguíssemos logo para o Rio.
Noite alta – e, por ironia, “céu risonho”–, fomos estrada afora, eu me lembrando de meu amigo maior. E veio o fragmento de um de seus primeiros poemas: É hora de sol/ lá fora/ e noite, no coração./ Milhares de estrelas,/ borrões/ que as nuvens carregarão. E outro, de seu mais que admirável livro “Inexílio”: Amar menos/ é morrer/ como o rio sendo freado pela areia/ como tirar os óculos, desligar o telefone,/ guardar a máquina de escrever e sair de casa/ para nada. E logo outro, vindo lá de 1949, de seu primeiro livro, O Centauro, editado em Cataguases: Me matei de sombra/ Me pintei de roxo/ Fiz um metro, um canto// Para o meu amor./  Que lucrei?/ Um verso./ Que fazer? cantar./ Mas se há dor? que importa!/ A dor é só instrumento.

Cidade Interior
O carro corria na noite e me lembrei de um bilhete que mandei pro Chiquinho, quando ele lançou Cidade Interior (Rio, 2007):O seu despojamento, essa sua dicção absolutamente particular – que não consigo identificar em nenhum dos poetas que conheço – esses seus “poemeus” de antitergi/versar que me comovem, que me locomovem a cada vez que os releio, meu caro Chico Marcelo, e que pro seu universo (re)torno – mesmo “que” com todos esses “quês” –, para essa sua Cidade Interior. E confesso ser cada vez mais tomado pela alta tensão de sua “escritura” (merci bien et voilà, M´sieu Derrida), esses poemas que tanto me tocavam a cada releitura, e que hoje guardo e guardarei sempre: é onde às noites os medos / .../ cortam as luzes das ruas / .../ as pisadas no tambor dos pesadelos / .../ (e onde os mortos rumorejam pelas grotas) / .../ uma cidade para sempre estacionada/ no poema/ – falsa e inesquecivel”.
Esses poemas – escrevia eu naquela ocasião – sobre os quais não sei ainda o que dizer agora, numa primeira e rápida e mais que prazerosa leitura. A não ser o óbvio, aquilo que sempre digo: além de tudo, do grande poeta, você é também "il miglior fabbro da Dr. Sobral" (a rua de Cataguases onde nascemos). E aquele poema então, aquele insight, coisa de poeta maior:

Todo poema é celebração
mesmo não lido.
Todo poema é de amor
mesmo perdido.
Todo poema fica por aí
mesmo esquecido.

Não, não ficam. Não os desta Cidade Interior, não se poemas como aqui, nesta em si clari/cidade: antes que o sol mergulhe e se apague no mar”. Daqui, poema nenhum, nenhum sol será apagado.

Campo Marcado
Em abril de 2008, abri a apresentação que escrevi para seu livro Campo Marcado (Rio, 2010) com um pequeno poema que Manuel Bandeira lhe dedicou.

Ao poeta de Cataguases,
Autor do belo Centauro,
O Poeta Manuel Bandeira
Envia um ramo de lauro,
Saudando-o desta maneira
Ás futuro entre outros ases!

“O poemeto de Bandeira é de 1949, ano da publicação de O Centauro, o livro de estreia do jovem poeta Francisco Marcelo Cabral, então com 19 anos. São na verdade “antenados” os poetas, mesmo aqueles que se dizem “menores”, enquanto grafam na maior, e com maiúscula, o seu epíteto.
         Ás futuro entre outros ases! – saúda um muito do exclamante Bandeira, antecipando a rica trajetória de FMC nas próximas seis décadas.  Poucos livros publicou o poeta desde então, mas todos definitivos. E eles o colocaram ombro a ombro com os melhores poetas desta e de outras praças e, claro, no pódio dos ases de Cataguases, aqueles rapazes que fizeram a Revista Verde e marcaram a história da cidade. 
O “ramo de lauro” de Bandeira foi devidamente assentado na cabeça de Francisco Marcelo Cabral, que o ostenta com toda a dignidade do poeta singular, poeta maior que é.  Poucas vezes – nenhuma! – vi gente tão culta, de tão grande sensibilidade e inteligência como Francisco Marcelo Cabral. Brinco de chamar o poeta de brilhante, mas brilhante é pouco quando se trata dele.
Brinco também chamá-lo de “meu guru” (e não é?) desde que – lá se vão quantos anos? – ele me levou, no Rio, à casa de Alexandre Eulálio, então leitor oficial da Biblioteca de Veneza, para que eu conhecesse “uma das pessoas mais cultas do Brasil”. Pois é, Alexandre e eu ficamos arrebatados por aquela noite inteira a ouvir o poeta que sabia de tudo um muito mais que tudo. 
Francisco Marcelo Cabral é um poeta-perguntador e por isso mesmo capaz de articular respostas essenciais, de nos propor descobertas: as palavras são portas de saída mas não de entrada. A emoção ou conceito, presentes num texto, são de quem o lê e não mais apenas de quem o escreveu.
         Que o diga agora este Campo Marcado. Melhor, que nele possamos (re)ler e (re)assumir a emoção que ressurge a cada poema:


A luz e o silêncio em mim sabem a vida
e quando respiro
tudo o que não entendo faz sentido.

Com seus metapoemas mais que luminosos, com sua grande intensidade, Chico Cabral faz de Campo Marcado pedra de grande quilate, que há de rolar sempre entre seus (muitos) fiéis leitores. Escrevo a língua do meu avô/ sem permissão. Ora, por quem sois, meu poeta! Vosmicê tem mais que toda permissão!”.
No Rio de meados da década de 1960, Chiquinho Cabral e eu erámos redatores de um escritório de planejamento econômico, Leone e Associados (um dos associados era o próprio poeta, sem controvérsias o “cérebro” do escritório). Um dia, chegou um projeto de cemitério vertical e ele, como numa premonição, foi seu maior defensor. No Rio, na manhã da última quarta-feira, o corpo do poeta foi colocado – ao lado de seus irmãos, Edvar e Pedrinho – numa das gavetas do Memorial do Carmo, aquele mesmo cemitério cuja verticalidade tanto defendia o redator Francisco Marcelo Cabral. Estava lá Chiquinho Cabral, com a fisionomia tranquila, como se voasse após meses de sofrimento.
Alguém leu um poema de seu Livro dos Poemas (Rio, 2003), um de seu cantos para o Maharaji: Meu mestre dança como os pássaros./ E canta com os claros tímpanos da aurora./ Ele caminha como a brisa sobre as rosas./ E eu sou a almofada sob seus pés quando repousa. A seguir, o ritual fúnebre, mesmo não sendo católico o poeta. Foi quando mais uma vez, como em todos os muitos velórios a que já fui, voltei a assustar-me – talvez por “ler” errado – com aquele trecho da Ave Maria: “E agora e na hora de nossa morte, amém”. A poesia vem do susto, do espanto:

O leitor se assenta.
O poeta puxa a cadeira
a poesia é o tombo.
O leitor se enleva
o poeta o empurra no abismo
a poesia é o voo.

Voando, me vou
Logo depois da cerimônia, eu e Patrícia voltamos para Cataguases. Um dia belíssimo, de sol e céu azul, que me fez lembrar um mês de maio de não sei quando em que eu e Chiquinho Cabral viajávamos por essa mesma estrada. Estava contente e alegre como sempre o meu poeta, que dizia preferir, entre todas, as manhãs de maio e céu azul. Tinha razão: mesmo de sol e céu azul, costumam ser traiçoeiras as manhãs de agosto.

Quando essa respiração vem
com renovada força de vida
não perguntes nada
simplesmente a recebe e aceita
e gratidão seja a música de tua alegria.

Já em Cataguases, debrucei-me sobre o famigerado projeto, que consegui enviar a tempo para Belo Horizonte. Mas por todo o tempo em que escrevia, a presença de Chiquinho Cabral permanecia em mim – e os poemas de Francisco Marcelo Cabral assomavam, saltavam de meu ser, como se voassem:

Temo jamais ter merecido
as asas dos meus versos.
Às vezes eu as desprendo – é noite, é Minas –

E como quem espreguiça
num largo espasmo
alço-as e me vou, ou sou levado
voando, me vou.

Ronaldo Werneck

domingo, 24 de agosto de 2014

domingo, 24 de agosto de 2014

JCC, HISTÓRIA PESSOAL José Cândido de Carvalho



JCC, HISTÓRIA PESSOAL

A bem dizer, fui inaugurado em 1914, vinte quatro horas depois de rebentar a Primeira Guerra Mundial. Era agosto e chovia em Campos dos Goitacazes. Comecei com jeito de grandeza.  Meu ideal era ser usineiro, viver no último andar de trezentas sacas de açúcar. Como isso não foi possível, tratei de realizar o subideal que era ser funcionário da Leopoldina. Sempre tive admiração toda especial por chefes de estação, espécie de donos de trem. Como esse subideal também não veio, tratei de escrever para os jornais de minha terra. Uma tarde, em plena década de trinta, entrava este José parra a redação da Folha do Comércio por uma porta e Raimundo Magalhães Júnior saía por outra. Eu para escrever notinhas de aniversários  e de casamentos de comerciantes locais e Magalhães Júnior para iniciar sua prodigiosa carreira de grande jornalista e grande escritor. De jornal em jornal realizei o sonho de todo o pai brasileiro    do começo do século: ver o filho bacharel, fotografado de beca e de óculos . E bacharel saí na fornada de 1937, depois de passar, como o diabo pela cruz, através de lombadas de livros de alto saber jurídico. E uma ocasião, com a sacola soltando leis e parágrafos pelo ladrão, fui extrair da unha de um subdelegado um pobre diabo qualquer. Foi quando constatei, para desencanto do meu canudo de bacharel, que mais vale ter a chave da cadeia do que ser Rui Barbosa. Aborrecido, dei de mão numa resma de papel e escrevi meu primeiro romance, Olha para o céu Frederico! Uns elogiaram, outros malharam. Embrulhado em suas páginas arrumei, no Rio de Janeiro, o cargo de redator da velha e saudosa A Noite. E em seu manso seio fiquei até que o governo a poder de bofetões, fechou o jornal em 1957. Dos cacos de A Noite pulei para os Diários Associados. Nesse meio tempo, entre uma coisa e outra, caí no serviço público, com escrivaninha no Ministério da Indústria e Comércio, onde procuro tirar o país à beira do abismo a poder de relatórios que ninguém lê. Quando à ficção. É mato brabo no qual raramente  circulo, temente que suo de mordida de cobra e dente de lobisomem. Vejam que não exagero. Publiquei o primeiro livro em 1939 e o segundo precisamente vinte e cinco anos depois. Entre  Olha para o céu Frederico!e O Coronel e o Lobisomem o mundo  mudou de roupa. Apareceu o imposto de renda, apareceu Hitler e o enfarte apareceu. Veio a bomba atômica e veio o transplante. E a lua deixou de ser dos namorados. Sobrevivi a todas essas catástrofes. E agora, não tendo mais o que inventar, inventaram a tal da poluição, que é doença própria de máquinas e parafusos. Que mata os verdes da terra e o azul do  céu. Esse tempo não foi feito para mim. Um dia vai haver mais azul, não vai haver mais pássaros e rosas. Vão trocar o sabiá pelo computador. Estou certo que esse monstro, feito de mil astúcias e mil ferrinhos, não leva em consideração o canto do galo nem o brotar das madrugadas. Um mundo assim, primo, não está mais por conta de Deus. Já está agindo por conta própria.
Niterói, setembro de 1970
José Cândido de Carvalho

O cinza sempiterno e o nascimento de quase uma flor - o/s/t - 60 x 70 cm - 2014


O cinza sempiterno e o nascimento de quase uma flor - o/s/t - 60 x 70 cm - 2014

O cinza sempirteno e o vórtice - o/s/t - 70 x 100 cm - 2014


O cinza sempirteno e o vórtice - o/s/t - 70 x 100 cm - 2014