“Perdemos
nosso amigo. Cabruxa partiu há meia hora”. Vindo do Rio, o telefonema da última
quarta-feira, 20 de agosto, era da poeta Lina Tâmega Peixoto, e a notícia –
embora esperada, mas não tão cedo – me deixou a nocaute. Cabruxa era como Lina
denominava o seu, o nosso grande amigo, o poeta Francisco Marcelo Cabral, que
eu aprendi desde a juventude a chamar de Chico-Chiquinho Cabral. Eu estivera no
Rio até a véspera, gravando uma entrevista para TV e, naquele momento, já me
encontrava em Cataguases, envolvido com um projeto que precisava enviar para
Belo Horizonte até sexta-feira. Parei tudo. Minha mulher, a Patrícia,
encontrava-se em uma audiência no Fórum. Esperei que ela voltasse, ainda meio
sem saber o que fazer. Já era final de tarde, eu ainda meio a nocaute. Patrícia
sugeriu que seguíssemos logo para o Rio.
Noite alta –
e, por ironia, “céu risonho”–, fomos estrada afora, eu me lembrando de meu
amigo maior. E veio o fragmento de um de seus primeiros poemas: É hora de sol/ lá fora/ e noite, no coração./
Milhares de estrelas,/ borrões/ que as nuvens carregarão. E outro, de seu
mais que admirável livro “Inexílio”: Amar
menos/ é morrer/ como o rio sendo
freado pela areia/ como tirar os
óculos, desligar o telefone,/ guardar a máquina de escrever e sair de casa/
para nada. E logo outro, vindo lá de 1949, de seu primeiro livro, O Centauro, editado em Cataguases: Me matei de sombra/ Me pintei de roxo/ Fiz
um metro, um canto// Para o meu amor./
Que lucrei?/ Um verso./ Que fazer? cantar./ Mas se há dor? que importa!/
A dor é só instrumento.
Cidade
Interior
O carro corria
na noite e me lembrei de um bilhete que mandei pro Chiquinho, quando ele lançou
Cidade Interior (Rio, 2007): “O seu
despojamento, essa sua dicção absolutamente particular – que não consigo identificar
em nenhum dos poetas que conheço – esses seus “poemeus” de antitergi/versar que
me comovem, que me locomovem a cada vez que os releio, meu caro Chico Marcelo,
e que pro seu universo (re)torno – mesmo “que” com todos esses “quês” –, para
essa sua Cidade Interior. E confesso ser cada vez mais tomado pela alta tensão
de sua “escritura” (merci bien et voilà,
M´sieu Derrida), esses poemas que tanto me tocavam a cada releitura, e que
hoje guardo e guardarei sempre: é onde às
noites os medos / .../ cortam as luzes das ruas / .../ as pisadas no tambor dos
pesadelos / .../ (e onde os mortos rumorejam pelas grotas) / .../ uma cidade
para sempre estacionada/ no poema/ – falsa e inesquecivel”.
Esses poemas –
escrevia eu naquela ocasião – sobre os quais não sei ainda o que dizer agora,
numa primeira e rápida e mais que prazerosa leitura. A não ser o óbvio, aquilo
que sempre digo: além de tudo, do grande poeta, você é também "il miglior fabbro da Dr. Sobral" (a rua de Cataguases onde nascemos). E aquele poema então, aquele insight,
coisa de poeta maior:
Todo poema é celebração
mesmo não lido.
Todo poema é de amor
mesmo perdido.
Todo poema fica por aí
mesmo esquecido.
Não, não ficam. Não os desta Cidade
Interior, não se poemas como aqui, nesta em si clari/cidade: antes que o sol mergulhe e se apague no
mar”. Daqui, poema nenhum, nenhum sol será apagado.
Campo Marcado
Em abril de 2008, abri a apresentação que escrevi para seu livro Campo Marcado (Rio, 2010) com um pequeno
poema que Manuel Bandeira lhe dedicou.
Ao
poeta de Cataguases,
Autor
do belo Centauro,
O
Poeta Manuel Bandeira
Envia
um ramo de lauro,
Saudando-o
desta maneira
Ás
futuro entre outros ases!
“O poemeto de
Bandeira é de 1949, ano da publicação de O
Centauro, o livro de estreia do jovem poeta Francisco Marcelo Cabral, então
com 19 anos. São na verdade “antenados” os poetas, mesmo aqueles que se dizem
“menores”, enquanto grafam na maior, e com maiúscula, o seu epíteto.
Ás futuro entre outros ases! – saúda um
muito do exclamante Bandeira, antecipando a rica trajetória de FMC nas próximas
seis décadas. Poucos livros publicou o
poeta desde então, mas todos definitivos. E eles o colocaram ombro a ombro com
os melhores poetas desta e de outras praças e, claro, no pódio dos ases de
Cataguases, aqueles rapazes que fizeram a Revista Verde e marcaram a história
da cidade.
O “ramo de
lauro” de Bandeira foi devidamente assentado na cabeça de Francisco Marcelo
Cabral, que o ostenta com toda a dignidade do poeta singular, poeta maior que
é. Poucas vezes – nenhuma! – vi gente
tão culta, de tão grande sensibilidade e inteligência como Francisco Marcelo
Cabral. Brinco de chamar o poeta de brilhante, mas brilhante é pouco quando se
trata dele.
Brinco também chamá-lo
de “meu guru” (e não é?) desde que – lá se vão quantos anos? – ele me levou, no
Rio, à casa de Alexandre Eulálio, então leitor oficial da Biblioteca de Veneza,
para que eu conhecesse “uma das pessoas mais cultas do Brasil”. Pois é,
Alexandre e eu ficamos arrebatados por aquela noite inteira a ouvir o poeta que
sabia de tudo um muito mais que tudo.
Francisco
Marcelo Cabral é um poeta-perguntador e por isso mesmo capaz de articular
respostas essenciais, de nos propor descobertas: as palavras são portas de saída mas não de entrada. A emoção ou
conceito, presentes num texto, são de quem o lê e não mais apenas de quem o escreveu.
Que
o diga agora este Campo Marcado. Melhor,
que nele possamos (re)ler e (re)assumir a emoção que ressurge a cada poema:
A
luz e o silêncio em mim sabem a vida
e
quando respiro
tudo
o que não entendo faz sentido.
Com seus metapoemas mais que
luminosos, com sua grande intensidade, Chico Cabral faz de Campo Marcado pedra de grande quilate, que há de rolar sempre entre
seus (muitos) fiéis leitores. Escrevo a
língua do meu avô/ sem permissão. Ora, por quem sois, meu poeta! Vosmicê
tem mais que toda permissão!”.
No Rio de meados da década de
1960, Chiquinho Cabral e eu erámos redatores de um escritório de planejamento
econômico, Leone e Associados (um dos
associados era o próprio poeta, sem controvérsias o “cérebro” do escritório).
Um dia, chegou um projeto de cemitério vertical e ele, como numa premonição,
foi seu maior defensor. No Rio, na manhã da última quarta-feira, o corpo do
poeta foi colocado – ao lado de seus irmãos, Edvar e Pedrinho – numa das
gavetas do Memorial do Carmo, aquele mesmo cemitério cuja verticalidade tanto
defendia o redator Francisco Marcelo Cabral. Estava lá Chiquinho Cabral, com a
fisionomia tranquila, como se voasse após meses de sofrimento.
Alguém leu um poema de seu Livro dos Poemas (Rio, 2003), um de seu
cantos para o Maharaji: Meu mestre dança
como os pássaros./ E canta com os claros tímpanos da aurora./ Ele caminha como
a brisa sobre as rosas./ E eu sou a almofada sob seus pés quando repousa. A
seguir, o ritual fúnebre, mesmo não sendo católico o poeta. Foi quando mais uma
vez, como em todos os muitos velórios a que já fui, voltei a assustar-me –
talvez por “ler” errado – com aquele trecho da Ave Maria: “E agora e na hora de
nossa morte, amém”. A poesia vem do susto, do espanto:
O
leitor se assenta.
O
poeta puxa a cadeira
a
poesia é o tombo.
O
leitor se enleva
o
poeta o empurra no abismo
a
poesia é o voo.
Voando, me vou
Logo depois da cerimônia, eu e
Patrícia voltamos para Cataguases. Um dia belíssimo, de sol e céu azul, que me
fez lembrar um mês de maio de não sei quando em que eu e Chiquinho Cabral
viajávamos por essa mesma estrada. Estava contente e alegre como sempre o meu
poeta, que dizia preferir, entre todas, as manhãs de maio e céu azul. Tinha razão:
mesmo de sol e céu azul, costumam ser traiçoeiras as manhãs de agosto.
Quando essa respiração vem
com renovada força de vida
não perguntes nada
simplesmente a recebe e aceita
e gratidão seja a música de tua alegria.
Já em Cataguases, debrucei-me sobre
o famigerado projeto, que consegui enviar a tempo para Belo Horizonte. Mas por
todo o tempo em que escrevia, a presença de Chiquinho Cabral permanecia em mim
– e os poemas de Francisco Marcelo Cabral assomavam, saltavam de meu ser, como
se voassem:
Temo jamais ter merecido
as asas dos meus versos.
Às vezes eu as desprendo – é noite, é Minas –
E como quem espreguiça
num largo espasmo
alço-as e me vou, ou sou levado
voando, me vou.
Ronaldo
Werneck
domingo, 24 de agosto de 2014